Ordem espiritual transgênero é aceita em festival hindu pela primeira vez
“Devo ter feito algo bom em minha vida passada para ver este dia chegar,” afirma uma líder do grupo. Mais importante peregrinação espiritual da Índia, o Kumbh Mela é a maior concentração de humanos do mundo.
Pavitra Nimbhorakar afirma que, em seus 43 anos de vida, nunca tinha recebido o tipo de amor e respeito que recebeu no início deste ano durante os 49 dias do Ardh Kumbh Mela: o maior festival espiritual da Índia e a maior congregação de pessoas do planeta.
Realizado a cada três anos, o Kumbh Mela se desloca por quatro cidades indianas: Haridwar, Nashik, Ujjain e Prayagraj (Allahabad), todas próximas à confluência de três rios (Ganges, Yamuna e o mítico Saraswati). É nessa confluência que, segundo os textos religiosos, a essência da imortalidade foi derramada de uma urna durante uma briga entre deuses e demônios. Os cerca de 250 milhões de devotos que participam do Kumbh acreditam que mergulhar no Ganges durante o festival espiritual pode purificá-los de seus pecados e influências negativas.
Como uma das líderes da Kinnar Akhada, ordem hindu asceta formada em 2015 pela ativista transgênero Laxmi Narayan Tripathi, Nimbhorakar cuidava das obrigações administrativas e garantia o conforto dos cerca de 2,5 mil membros da ordem (composta em sua maioria por mulheres transgêneros) durante o Kumbh.
Ao mesmo tempo, ela passou horas fazendo discursos sobre o espaço ocupado pelos kinnars (transgêneros) na religião hindu. “Somos chamados de semideuses nos textos religiosos hindus e recebemos o poder da bênção do Deus Ram”, disse ela, enquanto legiões de visitantes da barraca da assembleia de akhada ouviam atentamente.
Em cada um dos 49 dias do festival, realizado neste ano entre janeiro e fevereiro, cerca de 20 mil a 30 mil visitantes invadem a Kinnar Akhara. Após ver a ativista no YouTube, na televisão ou no jornal, visitantes de várias partes do país vieram com o desejo de conhecê-la e a chamam de Mataji (mãe) ou Maharajji (guru). Às vezes, lhe confidenciam problemas familiares, na esperança de que a ativista encontre uma solução; em outras ocasiões, querem apenas pôr as mãos nela ou abraçá-la para sentir a energia da santa que a consideram ser.
É um contraste gritante em relação à antiga vida de Nimbhorakar. Das provocações por sua feminilidade aos espancamentos pelos irmãos por sua orientação sexual e abusos públicos, ela avançou muito. “Devo ter feito algo bom em minha vida passada para ver este dia chegar”, diz ela, contendo a emoção.
Akhadas são historicamente um baluarte masculino, não existem akhadas lideradas por mulheres cisgêneros (com o gênero de nascença) e apenas poucas mulheres ascetas em alguns grupos. No entanto, a ordem religiosa de transgêneros foi aceita na Juna Akhada, a mais antiga e maior das 13 seitas que armam acampamento a cada Kumbh para orar e oferecer palestras religiosas e bênçãos a seus visitantes. Fazer parte da Juna Akhada deu a seus membros transgêneros o direito ao banho sagrado real (shahi snan) nos auspiciosos dias da confluência dos rios em Prayagraj, diante dos milhões de outros visitantes que entraram nas águas.
Apesar da participação da Kinnar Akhada no Kumbh de 2016 em Ujjain, o direito ao banho sagrado real foi recusado a seus membros pela All India Akhara Parishad, organização religiosa que supervisiona a gerência de shahi snans. Tudo que conseguiram foi um lote para seu acampamento durante o período. Em Prayagraj, entretanto, puderam aproveitar as mesmas instalações que as demais ordens, com barracas com banheiros privados, energia e água grátis.
A população transgênero da Índia é de meio milhão de pessoas (das quais 38.325 puderam votar pela primeira vez nas eleições gerais de 2019 com identidade de transgênero) e não tinha espaço na sociedade até a Suprema Corte indiana reconhecer formalmente o terceiro gênero em abril de 2014. Ainda assim, a luta contra o preconceito social, a discriminação e assédio e pela autoimagem continua. O projeto de lei revisado de pessoas transgêneros de 2016, atualmente parado no parlamento, recusa qualquer apoio a transgêneros nas áreas de educação, saúde e emprego. Ele torna crime a mendicância e o trabalho sexual, que são o ganha-pão de muitos transgêneros. Um relatório da Comissão Nacional de Direitos Humanos da Índia divulgado em 2018 estima que 92% dos indianos transgêneros pedem esmolas ou fazem trabalhos sexuais devido à incapacidade de participar de qualquer outra atividade econômica. Menos da metade tem acesso à educação, 62% sofrem abuso e assédio e quase todos já passaram por rejeição social diversas vezes.
Tripathi, ativista e fundadora da Kinnar Akhada, afirma que a religião é uma boa maneira de integrar pessoas transgêneros à sociedade.
Contudo, ela enfrentou a resistência da comunidade LGBTQ quando, em nome da Kinnar Akhada, apoiou pressões por uma lei para construir um templo hindu em Ayodhya, no suposto local de nascimento do Deus Ram, onde fundamentalistas hindus demoliram uma mesquita islâmica que existia lá em 1992. A destruição da mesquita provocou tumultos sectários no país inteiro e resultou na morte de mais de 2 mil pessoas, na maioria, muçulmanos. Em novembro passado, transgêneros emitiram uma declaração condenando as aspirações políticas de Tripathi e seu apoio à construção de um templo hindu em Ayodhya como “um chamado implícito para o ódio da comunidade”.
K Rashi Badalia Kumar, jornalista cidadã de Prayagraj que cobriu o último Kumbh, afirma que a religião está trazendo respeito aos transgêneros. “Os transgêneros agora estão sendo encarados como líderes espirituais em vez de pessoas que dançam nas ruas e pedem esmolas”, afirma ela.
“A religião é uma fonte de retrocesso, mas também é o único apoio aos mais fracos”, afirma Ashok Row Kavi, Presidente da Humsafar Trust, a mais antiga organização indiana que luta pelos direitos LGBT e editor da Bombay Dost, a primeira revista LGBT registrada da Índia. “É louvável utilizá-la para eliminar preconceitos e integrar transgêneros à sociedade.”