Lotação é apenas um dos problemas responsáveis pelas mortes no Everest
Conforme as últimas equipes deixam a montanha, alpinistas e especialistas discutem como e por que as coisas deram errado; veja novas fotos exclusivas.
Kathmandu, Nepal Na segunda-feira, Christopher Kulish, advogado de 62 anos de Boulder, Colorado, nos Estados Unidos, morreu no Acampamento 4, localizado no Colo Sul, a quase 8 mil metros, após retornar do cume do Monte Everest. De acordo com o irmão de Kulish, uma avaliação inicial indica que Kulish morreu de parada cardíaca e não do mal da montanha.
A morte dele eleva o número de fatalidades no Everest nesta temporada para 11 e aumenta a contagem total de mortes em picos de 8 mil metros do Himalaia nesta primavera para 21. Restando ainda muitos dias até o final da temporada de escalada (que acaba, na prática, quando chegam as monções por volta da primeira semana de junho), é possível que o número continue a subir.
Uma fotografia tirada na semana passada por Nirmal Purja Magar, montanhista nepalês, mostrou uma fila quase contínua de centenas de alpinistas em um engarrafamento no cume do Everest: todos tentavam aproveitar o curto intervalo de condições climáticas favoráveis. A imagem se tornou viral, despertando um debate imediato sobre a superlotação da montanha e forçando uma discussão difícil, embora já conhecida, sobre a correlação entre o elevado número de mortes e o excesso de alpinistas.
A maioria dos guias e clientes retratados na fotografia já deixou o acampamento-base e agora está começando a dar seus relatos. Não existe um consenso.
Por um lado, Elia Saikaly, cinegrafista canadense, publicou o seguinte relato no Instagram: “Não pude acreditar no que vi lá: morte, carnificina, caos, filas, corpos na trilha e em barracas no acampamento quatro, gente que tentei mandar de volta e que acabou morrendo, pessoas arrastadas, gente andando sobre corpos. tudo o que você lê nas manchetes sensacionalistas aconteceu na noite em que chegamos ao cume.” A mensagem foi apagada em seguida.
Outros emitiram uma nota mais trivial: “Foi como ficar na fila de um resort de esqui em um fim de semana movimentado”, afirma Dirk Collins, cinegrafista de Wyoming que trabalha com a National Geographic Society. “É frustrante, mas, acima de tudo, entediante – e inusitado – ter que esperar na fila no Everest.” A equipe liderada pela National Geographic Society tinha planejado chegar ao topo, mas voltou devido às multidões.
Ainda assim, alguns guias experientes estão refutando a alegação de que as filas estão matando pessoas e afirmam que a fila é um sintoma de problemas maiores e não a causa direta da maioria das mortes.
“Essa narrativa é simplesmente falsa”, afirma Ben Jones, guia norte-americano da Alpine Ascents International. “Nenhuma das mortes de que eu soube foram atribuídas à espera na fila. Foram devidas, na maior parte, a erros nas tomadas de decisões.”
Fila nas alturas
O problema não se restringiu a apenas um dia. Jones ajudou a liderar sua equipe comercial ao cume em 23 de maio, o dia seguinte ao que foi tirada a infame fotografia. “Havia duas pessoas atrasando uma fila de 50 pessoas. Foi o único problema que tivemos", afirma. "Eles não avançavam e não deixavam ninguém passar.” Jones estima que o atraso custou aproximadamente duas horas extras à maior parte dos que aguardavam.
“Foi uma espera interminável até que duas pessoas avançassem, o que não faziam”, continuou Jones. Em uma publicação recente, Alan Arnette, blogueiro do Everest de longa data, calculou que cinco das 11 mortes desta temporada no Everest podem estar relacionadas à superlotação.
“Continuar a subir até o topo sem oxigênio suficiente para a volta é uma péssima decisão”, afirmou Eric Murphy, guia da Alpine Ascents e colega de Jones. “Enquanto esperávamos as pessoas avançarem, abaixamos o fluxo de oxigênio um pouco para garantir que não esgotasse”, contou Murphy, ao descrever como a equipe dele conservou o tão necessário oxigênio dos cilindros para os trechos mais elevados da montanha.
Segundo Murphy, as vagarosas filas são principalmente um problema de liderança. “Se os alpinistas lentos estão acompanhados de membros da etnia xerpa, cabe a esse xerpa dizer: ‘vamos sair do caminho, descansar um pouco e deixar as pessoas passarem’”, afirmou e acrescentou: “Isso põe muita responsabilidade nas costas de vários xerpas.”
Murphy ainda ressaltou detalhes nas técnicas de escalada que atrasaram os avanços. “Alguns se prendem em todas as cordas com um ascensor, mesmo em terrenos planos”, disse. Um ascensor é preso a uma corda fixa e impede o escalador de escorregar – quando o terreno é plano, um mosquetão comum é mais rápido e também relativamente seguro. O processo de acoplar e desacoplar um ascensor pode acrescentar 10 ou 15 segundos a cada transição. Um alpinista do Everest estima que há cerca de 500-600 transições, o que equivale a uma média de duas horas ou mais, e seria possível poupar parte desse tempo com um processo mais simples. “É bem mais lento que prender a corda apenas com um mosquetão.”
“As multidões viraram notícia, além da falta de experiência das pessoas na montanha”, afirma Mark Fischer, guia experiente que também é membro da equipe de ciências da National Geographic Society. “Ao que parece, as pessoas não sabiam cuidar de si mesmas, não tinham habilidades eficientes de escalada e não souberam se preparar adequadamente para o ambiente.”
Outra questão que afetou o número de alpinistas no alto da montanha está relacionada a previsões meteorológicas. O Everest tem normalmente 10-15 dias de tempo relativamente calmo em maio para os alpinistas tentarem a escalada ao topo. Nesta temporada, reminiscências do ciclone Fani atingiram o Himalaia na primeira semana de maio, atrasando por alguns dias a equipe de escalada de xerpas que prende uma série de cordas fixas para chegar ao topo. Depois de aberta a rota para o topo em 14 de maio, as condições climáticas ficaram imprevisíveis, com ventanias que alcançaram uma velocidade média de 60 a 100 km/h (as velocidades seguras geralmente são menores que 50 km/h, aproximadamente) e temperaturas abaixo da média que ameaçavam reduzir muitos dos dias da janela de tempo normal para subir ao cume. Então, perto de 19 de maio, os modelos climáticos mudaram completamente e um dos melhores dias indicado para a subida nas previsões foi o dia 24 de maio, que, de repente, se tornou o pior dia. Com uma previsão de ventos constantes acima de 90 km/h, muitas equipes transferiram as tentativas de subida ao cume para 22 ou 23 de maio.
Contrafluxo
Os números finais oficiais da temporada de 2019 do Everest ainda serão divulgados, mas tudo indica que provavelmente este ano terá um recorde de escaladores. O governo do Nepal emitiu 381 permissões de subida nesta temporada, de acordo com os últimos relatórios – um recorde –, além de aproximadamente mais 140 alpinistas autorizados a tentar alcançar o pico a partir do Tibete (os xerpas alpinistas profissionais que trabalham na montanha não estão inclusos nessa contagem). Alan Arnette informa um número não oficial de mais de 700 escaladores neste ano, o que inclui xerpas alpinistas; o recorde anterior, alcançado em 2018, é de 802.
A China minimiza o problema da superlotação em seu lado do Everest, emitindo bem menos permissões, e muitos operadores mudaram para o lado da montanha da China.
O problema não está apenas nos números absolutos, mas na qualidade dos serviços de alguns guias que atendem o fluxo de alpinistas que chega pelo lado do Nepal. “Acredito que o mais grave, no Everest em geral – e muitos não vão gostar de saber disso – é que as empresas locais estão aceitando pessoas inexperientes e incompetentes e levando-as montanha acima”, afirma Jones.
Quinze dos 21 alpinistas que morreram em picos de 8 mil metros neste ano eram clientes de expedições organizadas no Nepal e não de serviços de guias internacionais em um trabalho conjunto com um estabelecimento local.
“Sempre traçamos estratégias para fugir das multidões”, explica Jones. “Sair do acampamento algumas horas mais cedo ou mais tarde pode mudar completamente o dia. É só mais uma tomada de decisão a se considerar no Everest. Os serviços de guias ocidentais se comunicam uns com os outros, os outros operadores não.”
É uma questão delicada porque a lucrativa indústria do alpinismo no Nepal é dominada há muito tempo por guias ocidentais e foi somente na última década ou um pouco antes que empresas nepalesas começaram a ter participação expressiva, sobretudo por cobrar bem menos do que seus congêneres estrangeiros. Essas empresas atendem o segmento mais barato do mercado crescente de clientes que desejam ser guiados até a montanha mais alta do mundo.
Embora a superlotação não esteja diretamente ligada à mortalidade das pessoas, ela é indubitavelmente responsável por acentuar os riscos em razão da necessidade de dias mais longos até o topo – modificando permanentemente a dinâmica da escalada do Everest.
Um dos poucos alpinistas de elite presente no lado do Nepal do Everest nesta temporada foi o alemão David Goettler, que tentou escalar a montanha sem suplementação de oxigênio, um estilo escolhido por puristas, mas que aumenta a possibilidade de lesões por congelamento e mal da montanha e requer condições perfeitas. Goettler acabou sendo forçado a retornar a cerca de 200 metros do topo. Ele não quis enfrentar os riscos de prosseguir por causa da superlotação.
“Até se eu dissesse que queria descer em um dado momento, de repente poderia ter que ficar na fila com todos os outros que estavam descendo e não poderia me movimentar rápido o bastante para me manter aquecido”, explica Goettler. “Era um risco que eu não estava disposto a correr e que poderia muito bem resultar em uma catástrofe.”
Goettler continua: “[A experiência] foi como eu esperava. Acho errado ir ao Everest e queixar-se das multidões e de suas habilidades. É evidente que isso ganha destaque na imprensa, mas vejo as mesmas coisas em Mont Blanc e Matterhorn. Nós, profissionais, contamos ao mundo como é maravilhoso explorar esses lugares e claro que as multidões virão.”
Tanto Ben Jones quanto Eric Murphy lamentam a persistente repercussão negativa ao Everest, destacando que fizeram várias escaladas com alguns clientes ao longo de uma década. “Formamos relacionamentos e camaradagem para alcançar o objetivo e isso é especial”, reflete Murphy.
“Quando voltamos, amigos e familiares nos perguntam o que acontece lá pois, todos os anos, só tomam conhecimento de reportagens negativas, o que, a meu ver, não retrata a realidade”, afirma Jones. “No montanhismo, nunca é uma decisão única que provoca um resultado negativo, é sempre uma série de decisões ruins.”