Esses raros antílopes correm um duplo risco: doença e caça ilegal

Nas estepes da Ásia Central, antílopes do tipo saiga sobrevivem a uma doença misteriosa. Mas a caça ilegal por seus chifres é uma ameaça constante.

Por John Wendle
Publicado 13 de set. de 2018, 18:31 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Animal de focinho longo remanescente da última Era Glacial, os antílopes saiga machos das estepes da ...
Animal de focinho longo remanescente da última Era Glacial, os antílopes saiga machos das estepes da Ásia Central são caçados ilegalmente por conta de seus chifres, valorizados na medicina tradicional asiática.
Foto de Nature Picture Library, Alamy

Rugindo em alta velocidade, o jipe da era soviética dos guardas-florestais estrondeia sobre as planícies quentes da estepe cazaque, trepidando violentamente. No banco de trás, pilhas de jaquetas sujas de camuflagem, fuzis oleosos, binóculos desgastados e sacos de macarrão voam a cada solavanco. Esse é o equipamento básico que uma patrulha anticaça precisa para incursões com duração de uma semana no interior da Ásia Central para impedir que caçadores matem antílopes do tipo saiga em busca de seus chifres finos e reforçados, que são altamente valiosos na medicina tradicional asiática.

De repente, Bakhytzhan Kubanov grita com o motorista, que derrapa o jipe para fora da trilha até parar. O guarda-florestal de 59 anos salta de seu assento, agitando os braços para os guardas que seguiam atrás pararem também.

“Ah! Foi por pouco!” ele grita para os seus colegas indo em direção à van deles. Quase em frente aos pneus do veículo, ele se abaixa e arranca um espeto de cerca de 20 centímetros do chão rachado.

Um guarda-florestal segura um “espinho”, como são chamados esses espetos feitos à mão. Caçadores ilegais os utilizam para estourar os pneus dos veículos dos patrulheiros.
Foto de John Wendle

“Os caçadores colocaram essa armadilha para nós”, explica Kubanov, segurando uma haste de aço suja com uma farpa triangular soldada na parte superior. O “espinho”, como ele chama, é afiado com a ponta de uma faca e tem a forma de um grande dente de tubarão enferrujado. “Quando os perseguimos, eles colocam isso nas trilhas”, diz Kubanov. “Se passarmos por cima deles, o pneu estoura.” Não faço ideia de como Kubanov avistou o espeto, pois estávamos muito rápido - mas ele passou os últimos 11 anos aperfeiçoando suas habilidades patrulhando a reserva natural de Irgiz-Turgay com seus 7.200 quilômetros quadrados, no centro do Cazaquistão, a alguns 650 quilômetros a sudoeste da capital de Astana.

Esse é um jogo de gato e rato muitas vezes perigoso entre guardas-florestais e caçadores ilegais em suas corridas conflitantes para proteger uma espécie da extinção e ganhar dinheiro. “Eles atiram nos saigas e, então, cortam os chifres para vendê-los no mercado negro”, afirma Kubanov.

Hoje a caça ilegal continua, tendo sido comprovada pela necessidade de cães especialmente treinados, embora Akan Tursynbaev, diretor executivo do centro de treinamento de cães farejadores do serviço aduaneiro em Almaty, a maior cidade do Cazaquistão, afirme que as coisas estão melhores agora.

“Eu posso dizer que até agora as leis têm sido rígidas”, segundo ele. “Acredito que não haja nenhuma corrupção óbvia.” Mas quando questionado sobre quais leis têm sido rígidas, ele não conseguiu descrever nenhuma.

No campo de treinamento do centro na periferia de Almaty, Tursynbaev demonstrou as habilidades de Ginny e Duck (pastores alemães) e Cherry (um pastor belga). Ele montou uma fila de malas vazias, com uma delas contendo chifres de saiga inteiros e em pó. Os cães indicaram a mala e sentaram esperando serem parabenizados por ele com algum petisco.

Esses três são os únicos cães do mundo inteiro treinados para detectar chifre de saiga, e Tursynbaev os considera os melhores dissuasores.

“Do que um cão precisa?” ele perguntou. “Um cão precisa do amor de um treinador, um prato de comida e uma bola favorita. É para isso que ele trabalha. Ele não precisa de ouro; só precisa de amor.”

Para os caçadores, o risco, e a carnificina, valem a pena. Chifres de saiga são vendidos a contrabandistas e intermediários por valores altos o suficiente para seduzir pobres aldeões cazaques, e visto que os saigas frequentemente se reúnem em grandes manadas, eles conseguem alvejar muitos de uma vez.

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    Os saigas se juntam durante os meses de outono para acasalar, tornando os machos com chifres especialmente vulneráveis à caça ilegal em grande escala.
    Foto de Nikolay Denisov, Alamy

    Os saigas são encontrados na Rússia e na Mongólia, mas principalmente no Cazaquistão. É ilegal a exportação de chifres de saiga de qualquer um desses estados dessa região, mas em países como a China, Malásia e Singapura, produtos feitos de reservas de chifre de saiga que remontam à década de 1990 são vendidos legalmente em farmácias tradicionais. Esse sistema jurídico permite que traficantes fraudem os chifres de saiga recentemente caçados e não há nenhuma maneira de saber se o que está nas prateleiras vem de chifres legais antigos ou chifres ilegais atuais.

    Os millennials, em particular, defendem produtos de chifres de saiga, consumindo bebidas em garrafas rotuladas como “água refrigerada de chifre de saiga” e apresentadas como um produto para desintoxicação. Na China, cerca de 9.500 quilos são consumidos anualmente em lascas, blocos e em pó, de acordo com Daan van Uhm, especialista em vida selvagem e crimes ambientais da Universidade de Utrecht. Os compradores pagam um alto preço, às vezes milhares de dólares, sobre os preços no Cazaquistão.

    Para um estudo publicado no jornal de conservação Oryx em março de 2018, pesquisadores entrevistaram 230 chineses de Singapura e descobriram que 13 por cento deles tinham consumido algum tipo de medicamento tradicional de saiga durante o ano passado. Desses, 25 por cento tinham entre 18 e 35 anos, surpreendente, talvez, porque os jovens são frequentemente mais conscientes da necessidade de proteger a vida selvagem. Porém, de acordo com o estudo da Oryx, “o conhecimento sobre questões de conservação e regulamentos era uniformemente baixa”.

    Não foram apenas medicamentos asiáticos tradicionais que incluíram o saiga, um animal de focinho longo remanescente da última Era Glacial, na Lista Vermelha de Extremamente Ameaçados da União Internacional para a Conservação da Natureza, que define o estado de conservação das espécies. Juntamente com a caça ilegal, o animal tem enfrentado uma praga bacteriana que matou 220.000 saigas (62 por cento da população mundial) em apenas algumas semanas em 2015.

    “Essa população que estamos monitorando aqui quase desapareceu. Aproximadamente 90 por cento morreu”, afirmou Steffen Zuther, coordenador de projetos da Iniciativa de Conservação Altyn Dala, um amplo programa na região Irgiz-Turgay. E, Zuther acrescentou, os saigas também estão ameaçados pela perda de habitat devido à construção de rodovias e ferrovias e o desenvolvimento da infraestrutura, que impedem suas migrações sazonais para novas pastagens.

    Zuther estima que a população total de saigas em 2018 nos três estados da região seja de aproximadamente 225.000, cerca de um quarto do que era há quatro décadas. (Na China, os saigas foram extintos devido à caça excessiva durante a década de 1960).

    CIÊNCIA DE SAIGA

    Nessa primavera eu me juntei a Zuther e pesquisadores do Royal Veterinary College em Londres em uma cansativa viagem de quatro dias pelas estepes isoladas até as regiões de nascimento de saigas na reserva de Irgiz-Turgay. Foi lá que Zuther apresentou-me a Kubanov e aos guardas-florestais que o acompanhavam.

    O objetivo dos pesquisadores era realizar um censo para avaliar como estavam os saigas pouco estudados e coletar amostras de tecido para compreender como bactérias mortais interagem com a população.

    O pesquisador Steffen Zuther, da Iniciativa de Conservação Altyn Dala, pesa um bebê saiga. O bebê receberá uma etiqueta que faz parte de um esforço contínuo para conhecer mais sobre esses animais pouco estudados.
    Foto de John Wendle

    No calor do meio-dia tudo brilhava como se víssemos através de painéis grossos de vidro derretido. Meus olhos se ajustaram à miragem, e onde antes eu tinha visto apenas o bege da estepe, de repente avistei os saigas. Eles estavam por toda a parte e todos nos observavam. Em seguida, eles correram.

    “Era como se os saigas tivessem rodas - pareciam motocicletas passando pela estepe”, disse Zuther com um indisfarçável entusiasmo. De fato, os saigas podem atingir velocidades de 80 quilômetros por hora, uma adaptação de quando grandes felinos os caçavam por extensões planas da Europa durante a última Era Glacial.

    Na verdade, o antílope compacto, com pernas curtas e nariz de elefantinho usado para condicionar o ar e filtrar a poeira, parece mais um aspirador de pó Black & Decker dos anos 1980 do que uma motocicleta. Correndo de um lado para o outro nas estepes, eles abocanham ramos de brotos tenros de ruibarbo (alimento favorito) e sálvia (segundo favorito).

    Os mais jovens são mais fáceis de capturar do que os adultos, programados para congelar e se esconder, ao invés de correr. Usando isso a seu favor, os pesquisadores realizam a pesagem, a identificação de gênero e a medição de centenas das criaturas antes de colocar uma etiqueta numerada em suas orelhas. Zuther explicou que a esperança é que, quando esses saigas morrerem, os pesquisadores poderão encontrá-los e a partir das etiquetas descobrir quanto tempo os saigas geralmente vivem.

    Mesmo com apenas alguns dias de vida, os bebês saiga conseguem correr em alta velocidade, mas na maioria das vezes eles tentam se tornar invisíveis no local.
    Foto de John Wendle

    As fêmeas adultas se reuniram em volta de nós em um rebanho gigante de milhares deles para dar à luz seus filhotes, emitindo seu baixo som morgk para nós. Mais tarde, enquanto estava sentado sozinho filmando, eles chegaram mais perto. Sua aparência sobrenatural é indescritível e escrevi uma anotação em meu telefone, descrevendo-os como um “longo focinho de morgks”.

    Infelizmente, nem mesmo o isolamento protege os saigas da Pasteurella multocida, bactéria que foi extremamente mortal em 2015; ela aparece naturalmente nas amígdalas dos animais. Os cientistas acreditam que o bicho de alguma forma se torna mortal quando temperaturas mais quentes e mais úmidas do que o normal coincidem com o período de nascimento dos filhotes. As temperaturas na Ásia Central estão aumentando o dobro da taxa global, o que significa que o potencial de mortes por epidemias em massa poderia estar aumentando também. Mas os pesquisadores ainda estão tentando entender como ocorre o surgimento.

    Um motivo de esperança é que os saigas procriam e se recuperam rapidamente. Outra é que guardas-florestais, como Kubanov, parecem estar fazendo o trabalho deles. “A proteção contra a caça ilegal está bastante eficaz atualmente, portanto, agora as populações estão bem”, explicou Zuther. Porém, advertiu, “essas mortes por epidemia podem acontecer a qualquer momento, então precisamos nos preparar para isso”.

    Deixando de lado o otimismo de Zuther, a caça ilegal de saigas continua sendo um problema sério. O pico ocorre nos meses do outono, quando os machos entram em conflito para atrair as fêmeas. Visto que apenas os saigas machos têm chifres, as mortes alteram drasticamente a proporção sexual, às vezes deixando apenas cinco adultos machos para cada cem fêmeas, de acordo com um estudo, diminuindo as taxas de reprodução dos rebanhos.

    PRESOS EM UMA BATALHA

    De volta à reserva de Irgiz-Turgay, Kubanov e os outros guardas estacionam seus veículos em uma pequena colina, encerrando a patrulha matutina. Eles percorrem as estepes varridas pelo vento com seus binóculos. Em seguida, cozinham macarrão e carne de carneiro para o almoço, com um chá para acompanhar, em um fogão caseiro a gás. Tudo parece tranquilo o suficiente, mas esses patrulheiros estão travados em uma luta feroz com os caçadores. Na realidade, no ano passado, os criminosos queimaram sete das 20 cabanas que eles usam no inverno, de acordo com Mereke Zhubaniyaz, diretor adjunto da reserva.

    Após a refeição, eles explicam a gravidade dos problemas que enfrentam. Os três guardas mais antigos dizem que os caçadores têm armas, veículos e meios de comunicação melhores. Além disso, os guardas ganham apenas cerca de 180 dólares por mês, segundo eles, o que torna tentador se juntar aos caçadores ilegais. Somente no ano passado, uma equipe de sete guardas-florestais foi flagrada participando da caça ilegal na reserva; cada um deles foi multado em mais de 17 mil dólares, de acordo com os guardas que entrevistei.

    Para Kubanov e os outros pesquisadores, esses guardas são da pobre aldeia de Taup, uma multa alta como essa seria devastadora. Mesmo assim, todos concordam que, como diz Kubanov: “a lei é muito branda. É preciso ser ainda mais rígida. Só assim a caça ilegal acabará”.

    Visto que conter a demanda por chifres de saiga em países asiáticos é uma tarefa desanimadora, cientistas, ambientalistas e funcionários do governo acreditam que melhorar os meios de subsistência de ambos os caçadores ilegais e guardas-florestais seria uma maneira mais eficaz de reduzir a caça ilegal.

    “O trabalho dos guardas-florestais é de fato essencial”, afirma Zuther. “Ainda estamos trabalhando em um mecanismo para melhorar o status e a remuneração para que eles se sintam motivados a proteger os saigas. É um processo que está em andamento no governo.”

    “A questão é o dinheiro”, argumenta Kubanov. “O dinheiro decide tudo por nós. Você entende, é a corrupção. Há alguém sentado lá em cima que controla tudo, envia [os chifres] para a China, abre os canais em todos os lugares, organiza tudo.”

    Muitos concordam com ele. Zhubaniyaz, apesar de relutante em falar sobre isso, afirma que pessoas em diferentes ministérios estão envolvidas, mas não pôde citar detalhes. Em 2018, o Cazaquistão ficou em 122o lugar dos 180 países na lista de corrupção da Transparency International, e os cazaques dizem que costumam testemunhar e vivenciar a corrupção.

    A desregulamentação e a corrupção generalizada após a queda da União Soviética resultaram no assassinato em massa de saigas entre a década de 1990 a 2000. “No passado, os saigas estavam por toda parte, mas foram baleados durante as duas últimas décadas por caçadores profissionais em helicópteros”, um ex-caçador não identificado é citado dando depoimento a uma pesquisa de Van Uhm. “Foi organizado pela máfia cazaque que domina os funcionários do governo. Foi devido à alta demanda de medicamentos da China”, afirma o ex-caçador.

    Hoje a caça ilegal continua, tendo sido comprovada pela necessidade de cães especialmente treinados, embora Akan Tursynbaev, diretor executivo do centro de treinamento de cães farejadores do serviço aduaneiro em Almaty, a maior cidade do Cazaquistão, afirme que as coisas estão melhores agora.

    “Eu posso dizer que até agora as leis têm sido rígidas”, segundo ele. “Acredito que não haja nenhuma corrupção óbvia.” Mas quando questionado sobre quais leis têm sido rígidas, ele não conseguiu descrever nenhuma.

    No campo de treinamento do centro na periferia de Almaty, Tursynbaev demonstrou as habilidades de Ginny e Duck (pastores alemães) e Cherry (um pastor belga). Ele montou uma fila de malas vazias, com uma delas contendo chifres de saiga inteiros e em pó. Os cães indicaram a mala e sentaram esperando serem parabenizados por ele com algum petisco.

    Esses três são os únicos cães do mundo inteiro treinados para detectar chifre de saiga, e Tursynbaev os considera os melhores dissuasores.

    “Do que um cão precisa?” ele perguntou. “Um cão precisa do amor de um treinador, um prato de comida e uma bola favorita. É para isso que ele trabalha. Ele não precisa de ouro; só precisa de amor.”

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