Atropelamentos podem antecipar extinção de espécies da fauna brasileira
Além da caça e do tráfico ilegais, animais de médio e grande porte como onças, antas, tatus e tamanduás são mortos diariamente nas rodovias do país. Só no estado de São Paulo, a polícia rodoviária registrou quase 29 mil acidentes do tipo em uma década.
Quem segue pela BR-262 pode ver de perto o resultado da principal causa de morte crônica de animais silvestres no Brasil: o atropelamento. Carcaças e ossadas de antas, cachorro-do-matos, tamanduás-bandeira, tatus-de-rabo-mole e emas, entre outras espécies, muitas em risco de extinção, desintegram-se à beira da rodovia, uma das mais perigosas do país para a fauna.
São mais de 2 mil quilômetros que ligam Vitória, no Espírito Santo, a Corumbá, Mato Grosso do Sul. A rodovia corta o Pantanal, um dos mais importantes biomas brasileiros, o que torna a ameaça ainda mais preocupante. E essa rodovia não é a única – muitas configuram enorme risco para a fauna, como a BR-163, a BR-267 e a MS-040. A maioria dos atropelamentos acontece à noite, por causa de hábitos noturnos das espécies e a falta de visibilidade do motorista.
O problema é especialmente grave quando se considera o alarmante relatório publicado pela Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos, da ONU, em maio de 2019. A publicação estima que 1 milhão de espécies da fauna e da flora correm risco de extinção e muitas delas devem desaparecer nas próximas décadas.
“Com certeza podemos dizer que o atropelamento de animais silvestres é a principal causa de perda crônica de fauna no Brasil, junto com a caça ilegal e o tráfico de animais”, diz Fernanda Abra, bióloga vencedora do prêmio Future for Nature Awards 2019, um dos mais importantes do mundo para iniciativas voltadas à proteção de animais silvestres. Essa retirada em grande quantidade de animais da natureza tem impacto ainda maior em espécies em risco de extinção, de reprodução lenta – que não aguentam fortes pressões do meio externo – e aquelas consideradas topo de cadeia, das quais muitas outras dependem para sobreviver.
Ecologia de estradas
Biólogos passaram a relatar e se preocupar com os problemas da malha viária sobre a vida selvagem ainda em 1970. Como forma de consolidar os estudos nesse campo, o ecologista norte-americano Richard T. T. Forman cunhou, em 1998, o termo “ecologia de estradas/rodovias”.
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No Brasil, a maior base de dados de atropelamentos de fauna silvestre foi publicada em janeiro deste ano na revista científica Ecology. O resultado do estudo, que compilou 21.512 registros extraídos de publicações científicas e relatórios de administradores de rodovias, deve servir para cruzar dados de espécies e regiões afim de guiar políticas de conservação da biodiversidade.
Mas, apesar da amplitude da pesquisa, ainda é difícil relacionar os números de atropelamentos com volume de tráfego de veículos. Clara Grilo, pesquisadora da Universidade de Lisboa, colaboradora da Universidade Federal de Lavras (UFLA) e uma das líderes do trabalho, conta não ser possível estabelecer relação direta com o número de atropelamentos porque não há dados de toda malha viária brasileira. “A nível internacional, ainda não está clara a relação exata entre tráfego rodoviário e o número de atropelamentos de uma forma geral. Pensa-se que, à medida que o tráfego aumenta, o risco de mortalidade aumenta, mas até um certo nível. Há situações em que o tráfego é tão elevado que os indivíduos nem tentam atravessar e as taxas de mortalidade começam a decrescer”, diz Grilo. Ela explica que o comportamento frente ao tráfego varia de acordo com a espécie. “Cada uma responde de forma diferente ao perigo: umas ignoram o tráfego e morrem mais à medida que este aumenta, outras evitam infraestruturas humanas, portanto, têm baixas taxas de mortalidade.”
Outro estudo importante estampou manchetes em diferentes jornais no começo de setembro. O pesquisador Alex Bager, do Centro Brasileiro de Estudos em Ecologia de Estradas, da UFLA, percorreu quase 30 mil km, em 93 parques nacionais e outras unidades de conservação, entre agosto de 2018 e junho de 2019. Durante a expedição, ele documentou atropelamentos em estradas, rodovias e ferrovias em 20 estados do Brasil. Foram encontrados 529 animais de médio e grande porte. A espécie mais frequente foi o cachorro-do-mato, seguido por tamanduá-mirim, tatu, tamanduá-bandeira e capivaras. Anta, lobo-guará e cachorro-vinagre também foram registrados.
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O pesquisador também reparou que há muitos atropelamentos fora de unidades de conservação, às vezes até em maior número. “Monitorei a região [Estação Ecológica do Taim, no Rio Grande do Sul] por dois anos e encontrei dois exemplares de Leopardus geoffroy [nome científico do gato-do-mato-grande] atropelados dentro da área da unidade", diz Bager. "E 19 nos 100 km no entorno. A conclusão é que os animais iam se alimentar da palha do arroz plantado nas proximidades, onde tinha muito rato. E, ao cruzar a rodovia, eram mortos.”
Grandes mamíferos em risco
Arnaud Desbiez coordena o projeto Bandeiras e Rodovias e estuda atropelamentos de mamíferos de médio e grande porte, sobretudo tamanduás, em estradas do Mato Grosso do Sul. Em sua pesquisa, acompanhou sistematicamente, por dois anos e meio, um total de 1.337 km. Apenas nesses trechos foram registrados 8.894 atropelamentos no período. O estudo também monitorou mais de 40 tamanduás-bandeira, o que possibilitou levantar a extensão do habitat e das relações com as paisagens do entorno das rodovias. Os dados obtidos permitiram estimar taxas de mortes, analisar os padrões temporais e espaciais dos acidentes e ajudar a calcular o risco de atropelamento para uma variedade de espécies e os prováveis impactos em populações. Entre os mais atingidos estão o tatu-peba, o cachorro-do-mato, o tatu-galinha e o próprio tamanduá-bandeira.
No caso dos tamanduás-bandeira, Desbiez estima que as rodovias são responsáveis por cortar pela metade a taxa de crescimento das populações. “Isso significa que eles têm mais dificuldade de se recuperar de outras ameaças, como perda de habitat, conflito com cachorros, fogo, entre outras”, explica ele.
A anta é outro grande mamífero ameaçado. “A MS-040 é a estrada em que temos a maior taxa de mortalidade de antas, o maior mamífero brasileiro terrestre”, alerta Desbiez. “Isso é terrível porque o acidente com um carro pequeno e uma anta leva à morte dos passageiros. É muito perigoso.”
Em 2015, uma van com nove ocupantes tentou desviar de uma anta na BR-267, no município de Nova Alvorada do Sul (MS) e capotou. Por sua vez, uma carreta carregada de glifosato que vinha no sentido contrário atingiu a van. Oito pessoas, além da anta, morreram, e duas ficaram feridas no mais grave acidente com fauna silvestre já registrado no Brasil. Os veículos pegaram fogo e houve derramamento de produto perigoso na pista.
A legislação brasileira prevê, tanto na Constituição Federal quanto no Código do Consumidor, que o administrador rodoviário seja o responsável por acidentes com animais. Entre 2003 e 2013, a Polícia Militar Rodoviária do Estado de São Paulo registrou 28.724 ocorrências do tipo, 3,3% do total das colisões. Por ano, em média, foram 20 vítimas humanas fatais e mais de 100 feridas gravemente. Entre 2005 e 2014, R$ 24 milhões foram gastos em compensações financeiras às vítimas em acidentes com fauna no estado.
Estradas paulistas
Em São Paulo – estado que abriga a maior frota veicular do país e a maior malha rodoviária, com 24 mil km – uma orientação estadual tenta pelo menos diminuir a recorrência de um retrato comum no resto do Brasil – os animais mortos no acostamento. Em agosto de 2018, Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) determinou que carcaças fossem removidas das estradas a cada 24h.
Os cadáveres devem ser incinerados, enterrados próximo ao local do acidente, ou destinados a centros de pesquisa, sempre sob uma série de normas ambientais. “É um avanço, já que se perdia muito material genético”, diz a bióloga Fernanda Abra. Animais sobreviventes devem ser resgatados e encaminhados para institutos de reabilitação parceiros. O órgão também exige o registro das mortes por espécie, sempre que possível, o que não é tarefa simples. Além da necessidade de conhecimentos específicos o estado putrificado de muitas carcaças dificulta a identificação. O objetivo é da coleta de dados é sempre a mesma – produzir informações que guiem políticas de conservação.
Outras medidas do órgão, previstas no licenciamento de obras e aberturas de novas rodovias, exigem passagens de fauna associadas a cercas direcionadoras, adequação de pontes, túneis e galerias de drenagens para travessia, placas sinalizadoras e instalação de redutores e radares de velocidade.
Renata Ramos Mendonça, assessora da Diretoria de Avaliação de Impacto Ambiental da Cetesb, trabalha com os resultados do primeiro semestre de avaliação. “A gente ainda está no meio da análise, mas já começamos a perceber onde ocorre mais acidente. E aí vamos conseguir saber, por exemplo, se tem mais atropelamentos em época de colheita de cana ou em época de seca com fogo. A gente vai conseguir ter essa gestão, além de saber a ocorrência de animais, onde se achava que não tinha.” O gerente da diretoria, Camilo Fragoso Giorgi, diz que se surpreendeu com os dados: “os resultados ainda são muito preliminares, mas, por exemplo, a gente viu que atropelamento de onça-parda não se restringe as unidades de conservação (UC)”, diz Giorgi. “A gente já pensa ‘tem essa UC aqui, tem que proteger’. Mas [o ponto com mais atropelamentos] está na área de cana.”
Giovanni Pengue Filho, diretor geral da Agência de Transporte do Estado de São Paulo (Artesp), explica que a preocupação com a biodiversidade e a segurança do usuário vem aumentando e se reflete, sobretudo, nos contratos de concessão mais recentes. “A gente percebe que nos novos contratos há um aparelhamento melhor com relação ao manejo de fauna”, diz Filho. “Nos contratos mais antigos, as condições e a legislação eram completamente diferentes.”
Para o diretor de Planejamento e Pesquisa do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), Luiz Guilherme Rodrigues de Mello, a preocupação com a vida silvestre também aumentou em estradas federais. Segundo ele, o órgão investiu R$ 60 milhões desde 2007 em ações de monitoramento e mitigação de atropelamento de fauna sendo R$ 55 milhões de 2014 para cá.
Medidas de contenção
Os jurados do Future for Nature Awards reconheceram o trabalho de Fernanda Abra em reduzir o impacto de estradas e tráfego de veículos na biodiversidade. Abra coordena mais de 30 projetos de ecologia de estrada e recebeu 50 mil euros como prêmio, dinheiro que ela pretende usar para testar um sistema que detecta a entrada do animal na rodovia e avisa motoristas.
No entanto, para mudar o cenário de mortes nas rodovias, Abra defende medidas mais expressivas. “O que reduz atropelamento de fauna é cerca. É a cerca que barra a entrada do animal na rodovia.” O cercamento serve ainda para encaminhar o animal até um ponto seguro de travessia. Já as passagens permitem a retomada das conectividades funcional e estrutural do animal. De acordo com Abra, a literatura científica aponta para diminuição de até 86% dos atropelamentos com a combinação de cercas e passagens de fauna.
Mas as medidas não podem se concentrar apenas nos pontos com mais acidentes, como geralmente é feito. “O deslocamento da fauna acompanha a dinâmica da paisagem. Assim, uma passagem feita entre dois fragmentos de mata, que após algum tempo se transformam em um condomínio ou uma fazenda, não servirá mais como alternativa”, diz Abra. “A fauna migrará em busca de novos locais e novos ‘hot spots’ surgirão.”
Como cada espécie tem um padrão próprio de comportamento, há vários tipos de passagens. Algumas exigem estruturas secas e abertas, outras só atravessam locais escuros ou com água. “Temos a mania de acreditar que uma passagem pode ser boa para todas as espécies e isso está longe de ser verdade. Normalmente, um determinado ponto, um ‘hotspot’, abrange uma, no máximo duas espécies. Então, colocar uma medida de mitigação em um ponto pode proteger algumas espécies e deixar outras importantes, de fora”, explica Bager. Há animais que sequer são contemplados. Um exemplo são os primatas. O Brasil é o país que abriga o maior número de espécies de macacos no mundo. Ainda assim, há poucas iniciativas para eles. Os habitats são cortados em pedaços pelas faixas de rolamento e os primatas, que não costumam arriscar a travessia, não se conectam com outras populações, algo imprescindível para a manutenção da biodiversidade. Tão ruim quanto o atropelamento é o chamado “efeito barreira”, o desencorajamento em atravessar a rodovia, causando o isolamento de um ou mais grupos de animais.
Representantes tanto do Dnit quanto da Artesp alegam que cercar totalmente as estradas envolve outros fatores, além de ser financeiramente inviável. “Falar em colocar direcionamento em toda rodovia eu acho complexo, porque existem outros aspectos: segurança, travessia de pedestre, passarelas”, diz Filho, o diretor da Artesp. Para João Felipe Cunha, coordenador de meio ambiente do Dnit, “o orçamento público é comprimido e, às vezes, a gente se vê entre fazer a roçada na lateral pra dar segurança numa curva ou colocar a cerca”.
Menores em tamanho, maiores vítimas
Campeões de atropelamento, com taxas estimadas em 90% do total de animais atingidos, répteis e anfíbios dificilmente são visualizados do carro. Os métodos mais comuns de monitoramento desses grupos costumam ser inadequados ou insuficientes. As carcaças pequenas e leves são removidas, em média, em até 11h por animais carniceiros, chuva ou fluxo de veículos. É tão rápido que fica difícil registrar.
A bióloga Júlia Beduschi, do Núcleo de Ecologia de Rodovias e Ferrovias da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), explica que anfíbios precisam migrar para reproduzir ou interagir com outros indivíduos e quando os habitats são cortados por estradas, a travessia se torna obrigatória. Além disso, eles fazem parte de um grupo de animais que não percebe que estão em perigo diante do tráfego.
Já os répteis são constantemente atraídos pelo calor das rodovias a fim de autorregular a temperatura interna. Assim como as tartarugas, que buscam locais quentes para a desova. “Muitas das tartarugas atropeladas que encontramos estavam cheias de ovos. É muito triste”, conta Beduschi, que também alerta para a importância de répteis e anfíbios no ecossistema. “Há muitos problemas em reduzir populações de anfíbios e répteis. Você pode, por exemplo, aumentar a quantidade de insetos que transmitem doenças ao homem por falta de predadores.”
Algumas medidas para esses animais estão em fase de testes, como pequenos túneis climatizados de acordo com os padrões de cada espécie, cercas inteiriças e passagens aéreas ligando copas de árvores para os arborícolas.
Rodovias do Brasil
Dos cerca de 1,7 milhão de quilômetros de malha viária existentes no Brasil, 200 mil são rodovias pavimentadas. Para licenciar novas obras rodoviárias, existe uma única instrução normativa do Ibama, de 2013. Entre as exigências estão estudos de fauna prévios à instalação, além de monitoramento posterior. Pesquisadores alegam que até hoje a aplicação não é satisfatória. Há aproximadamente 500 passagens de fauna nos mais de 60 mil quilômetros geridos pelo Dnit em todo o território nacional. Já sob concessão da Artesp, 327 passagens foram estipuladas desde o início do programa, em 1998. Passos lentos frente à ameaça.
Construída em 2015, a primeira e única passagem superior (tipo viaduto) de rodovia do Brasil fica no quilômetro 25,8 da Tamoios (SP-99), no município de Paraibuna, em São Paulo. No interior do Rio de Janeiro, um viaduto vegetado de 54 metros de comprimento está em construção sobre a BR-101, uma das mais movimentadas do país, como forma de contribuir na preservação uma espécie emblemática brasileira: o mico-leão-dourado.
Diante do cenário de atropelamentos, dois projetos de lei que tramitam no Congresso vêm causando polêmica. Ambos tratam da reabertura da Estrada do Colono, no Paraná, que corta ao meio o Parque Nacional do Iguaçu. O PL 984/2019, de autoria do deputado federal Vermelho (PSD) e o PL 61/2013, do senador Álvaro Dias (Podemos). Este último já foi aprovado na Câmara dos Deputados e aguarda parecer da segunda das três comissões temáticas do Senado, responsáveis pela avaliação. O trecho de 18 km de extensão, fechado oficialmente em 2001, já não é mais uma estrada. Foi ocupado pela mata nativa que se restabeleceu densamente. Na prática, a reabertura significa o desmatamento de 20 hectares dentro de uma UC de proteção integral, uma das últimas áreas de floresta de Mata Atlântica do país. Pesquisadores alertam para o perigo da constante ameaça que o tráfego representaria para a fauna, sobretudo às onças-pintadas, criticamente ameaçadas de extinção, além de outros impactos socioambientais.
As leis podem representar um atraso justamente para uma espécie cuja população aumentou nos últimos anos graças a esforços de conservação. Entre 2009 e 2016, o número de onças registrados ali quase dobrou, segundo dados divulgados pelo Projeto Onças do Iguaçu, o que demonstra recuperação da espécie. Uma esperança em um contexto ainda tão carente de ações.