Exclusivo: Por dentro de uma controversa fazenda de leões na África do Sul
A National Geographic investiga o destino de leões encontrados em péssimas condições no início de 2019.
LICHTENBURG, ÁFRICA DO SUL Trinta e quatro leões foram amontoados em um recinto imundo destinado a apenas três animais. Pedaços de boi e carcaças de frango em decomposição espalhavam-se pelo chão. Fezes amontoavam-se nos cantos. Algas cresciam nos recipientes de água. Vinte e sete dos leões estavam tão afetados pela sarna, uma dolorosa doença de pele causada por ácaros parasitas, que haviam perdido quase toda a pelagem. Três filhotes se contorciam na terra, um deles caído sobre a perna enegrecida de uma vaca, com o casco visível. Choramingado, eles tentavam — em vão — se arrastar para frente. Um quarto filhote observava, imóvel.
“É de cortar o coração”. É assim que Douglas Wolhuter, inspetor sênior do Conselho Nacional de Sociedades para a Prevenção da Crueldade contra Animais (NSPCA, na sigla em inglês) da África do Sul, descreve a cena na fazenda Pienika, na província Noroeste, em 11 de abril de 2019. A NSPCA é responsável por aplicar a Lei de Proteção aos Animais do país, e Wolhuter fazia uma inspeção em Pienika, uma das mais de 250 fazendas de leões de propriedade privada na África do Sul.
“Desde que eu era criança, o leão é conhecido como o rei da selva”, afirma Wolhuter. “E então você o vê basicamente sujeitado à exploração intensiva — desprovido de toda a sua realeza e nobreza.”
Ele afirma que a cena o deixou se sentindo vazio.
Pienika entregou dois dos quatro filhotes. Um terceiro foi sacrificado e o quarto permaneceu na fazenda, junto com os leões adultos doentes com sarna. Mais tarde, a NSPCA prestou queixa contra Jan Steinman, o proprietário da fazenda, e sua equipe por violar a Lei 71 de Proteção aos Animais de 1962, que proíbe manter animais em “condições sujas ou parasitárias”, permitindo que “se infestem por parasitas externos” e abstendo-se de “procurar tratamento veterinário ou outro tratamento médico” para um animal doente.
A ação da NSPCA contra Steinman ainda está em andamento: segundo a lei sul-africana, a polícia deve conduzir sua própria investigação, e a promotoria está analisando o caso.
Embora o número de leões em cativeiro na África do Sul esteja atualmente estimado entre 6 mil e 8 mil, podem existir até 10 mil, segundo Ian Michler, conservacionista protagonista do documentário Blood Lions, de 2015, que mostra os bastidores da indústria de fazendas de leões do país. Nas instalações voltadas para turistas, os visitantes pagam para acariciar os animais, alimentá-los com mamadeira, tirar selfies com os filhotes e até mesmo caminhar ao lado de animais adultos. Críticos afirmam que a indústria voltada à interação com filhotes leva ao abuso, à reprodução comercial e ao descarte de animais exóticos. À medida que os leões envelhecem, tornam-se perigosos demais para interagir com os visitantes e geralmente são vendidos para centros de criação e caça como Pienika, fechados ao público. “É uma indústria macabra e pavorosa, muito, muito lucrativa e com diversas pequenas fontes de receita”, afirma Michler.
Alguns ranchos chegam a oferecer caçadas “confinadas”, nas quais os leões permanecem em áreas cercadas. Caçadores esportivos podem pagar até US$ 50 mil para matar leões, a fim de manter a pele e a cabeça como troféus. Os ossos e outras partes indesejadas podem ser exportados para a Ásia, onde são usados na medicina tradicional chinesa. A África do Sul define uma cota para o número de esqueletos de leões que podem ser exportados legalmente todos os anos.
Para conservacionistas e defensores do bem-estar animal, Pienika sintetiza tudo o que há de errado nas fazendas de leões da África do Sul. A indústria de leões em cativeiro foi criticada por ser amplamente desregulamentada: o Ministério do Meio Ambiente, Florestas e Pesca da África do Sul não monitora regularmente o número de leões em cativeiro, a demanda por ossos de leão só tem crescido e o monitoramento do bem-estar dos animais é deixado a cargo da NSPCA, que tem falta de pessoal e recursos escassos. O que começou como uma pequena indústria alcançou uma dimensão que alguns, como Karen Trendler, que gerencia a unidade de comércio e tráfico de animais selvagens da NSPCA, descrevem como incontrolável: “foi criado um monstro e agora ele precisa ser alimentado”, diz ela.
Steinman, de acordo com seu advogado, Andreas Peens, possui duas instalações na província Noroeste de reprodução de leões em cativeiro, tigres e outros animais silvestres. Peens alega que, ao permitir a caça em Pienika, Steinman estaria promovendo a conservação. “Estamos oferecendo um leão criado para caça a fim de proibir a caça ilegal”, afirma Peens.
Essa não é a primeira vez que Steinman tem problemas com a justiça. Em 2015, ele se declarou culpado de caçar quatro leopardos na província Noroeste sem autorização. Foi multado em 7,5 mil randes (cerca de US$ 500) pelo Serviço de Polícia da África do Sul.
Até maio deste ano, Jan Steinman era listado como parte da liderança da Associação de Predadores da África do Sul (SAPA), uma organização a favor da criação em cativeiro que exige que os membros “mantenham elevados padrões éticos”. Mas Deon Swart, chefe da SAPA, nega que Steinman estivesse exercendo um papel de liderança na ocasião da inspeção da NSPCA em abril. Em um comunicado à imprensa em 6 de maio, a SAPA anunciou que “instituiria imediatamente medidas disciplinares contra o Sr. Steinman”.
A SAPA se recusou a comentar quais seriam essas medidas, mas em um e-mail de 30 de julho, Swart confirmou que Steinman ainda é membro da organização. “Ele cooperou e resolveu todas as questões que precisavam de atenção”, escreveu Swart. Em agosto, a SAPA divulgou uma declaração mais detalhada, alegando que havia conduzido uma investigação sobre a fazenda, que havia se encontrado com Steinman e que realizaria outra rodada de inspeções “após um intervalo razoável”.
Peens afirma que a péssima forma como a NSPCA retratou as condições de mais de uma centena de leões em Pienika, conforme denunciado aqui em maio, foi um mal-entendido e causou um “desentendimento” entre a NSPCA e Steinman. Ele diz que os inspetores da NSPCA exageraram ao descrever o estado dos leões. Peens também alega que os leões das imagens amplamente divulgadas da NSPCA, uma das quais foi apresentada no início de nossa reportagem, não são de Steinman. Wolhuter refuta isso e ainda reitera que as fotos são enganosas porque ocultam o verdadeiro estado dos leões. “A realidade era muito pior do que o mostrado pelas nossas fotos”, explica ele.
Por meio de Peens, Steinman convidou a equipe de Vigilância de Animais Silvestres da National Geographic para visitar sua propriedade de pouco mais de 2 mil hectares e ver como é a vida dos leões. Steinman estava ausente quando eu e a fotógrafa Nichole Sobecki chegamos, em 20 de julho, e deixamos Peens falar por ele sobre todos os assuntos. Ele e Marius Griesel, gerente da Pienika, nos receberam.
'Essa é a verdadeira realidade'
Céu azul brilhante, terra batida, um leve cheiro de esterco, telas de arame: Pienika me lembra de uma propriedade rural do Meio Oeste. Mas em vez das vacas, dos porcos, e das galinhas, é o rei dos animais que olha por trás da tela de arame verde.
Perigo! Adverte uma placa branca. Proibida a entrada sem autorização! De tempos em tempos, um rugido ameaçador interrompe nossa conversa. Em recintos feitos de terra, alguns troncos e uma plataforma de madeira para subir, os leões descansam regiamente ao sol; outros andam de um lado para o outro, mostrando seus dentes para mim.
Para meus olhos de leigo, os leões de Pienika não parecem agitados ou doentes. Dois filhotes perto da entrada da fazenda têm uma plataforma de madeira e galhos grandes para escalar, e uma bola amarela pendurada em uma árvore para brincar. As áreas que me são mostradas estão limpas — nenhum sinal de fezes, carcaças podres, recintos com lama ou água suja. Visitamos as jaulas de leões e a reserva de caça, onde vários animais andam fora de jaulas, mas não visitamos algumas partes da fazenda, como o local de armazenamento dos alimentos congelados e as moradias dos funcionários. Não sei se mais algum local não me foi mostrado.
“Essa é a verdadeira realidade”, afirma Griesel, enquanto observamos 11 leões descansando sob a luz dourada do sol em uma jaula medindo cerca de 50 por 50 metros.
Os leões são apenas uma das muitas espécies mantidas em Pienika, há outros predadores em recintos: tigres-de-bengala, tigres-siberianos, hienas, linces, onças-pardas e leopardos, além de avestruzes, girafas, rinocerontes e búfalos que andam mais livremente. Griesel e Peens se orgulham de exibir esse zoológico e me incentivam a me aproximar dos animais. Avistamos um crocodilo-do-nilo através de uma cerca de madeira, tomando sol no pátio atrás da casa de Griesel.
“O que você faz com o crocodilo?”, indago.
“É para as pessoas”, responde Peens. Ele explica: “é para os norte-americanos, os caçadores e assim por diante — é apenas para observarem e aproveitarem”.
Peens diz que a superlotação dos leões em abril foi inevitável — uma infeliz coincidência. Aconteceu porque um acordo em que a fazenda Pienika enviaria cerca de 50 leões para a Europa não deu certo. Em vez da Europa, Steinman resolveu transferir os animais para outra fazenda local. Ele afirma que Steinman aguardava a autorização do governo da província para transportar os leões, mas as autorizações só foram concedidas dois dias depois da visita da NSPCA.
Steinman “tinha que ficar com os animais”, diz Peens, “então ele não podia simplesmente soltá-los na fazenda — precisava mantê-los nos recintos”, longe das pessoas e de outros animais. “É por isso que os recintos estavam superlotados. Não ficam superlotados permanentemente. Foi algo temporário.”
Os animais pareciam tão imundos, acrescenta Peens, porque, excepcionalmente, mais de 6,25 centímetros de chuva haviam caído na semana anterior e os recintos estavam com lama. Ele afirma que, na realidade, as jaulas são limpas pelo menos uma vez por semana. Os bebedouros são reabastecidos, as fezes são retiradas e os restos das refeições — penas e pequenos ossos — são removidos. Griesel alega que os leões são alimentados todos os dias, exceto aos domingos (quando o abatedouro de aves fica fechado) e, durante a semana, recebem um suplemento de cálcio e vitamina em pó.
Acompanho Peens e Griesel na parte de trás de uma caminhonete carregada de frango e uma vaca fatiada ensanguentada. Dois funcionários atiram a carne para os leões, que correm em nossa direção assim que veem o caminhão. Penas brancas chovem enquanto as galinhas são jogadas nos recintos sobre a cerca — um frango por leão, em média. Ossos estalam entre mandíbulas poderosas.
“Hoje, os animais comerão apenas um lanchinho”, afirma Griesel. Mas alguns dias, dependendo do que está disponível na granja vizinha, que vende à Pienika aves com hematomas ou imperfeições que as tornam impróprias para consumo humano, os leões podem receber até cinco cada. A carne bovina, que é mais cara que o frango, é mais rara, mas “se uma vaca morrer na área”, explica Peens, “é refeição grátis!”
Essa dieta, afirma Peter Caldwell, veterinário de animais silvestres e proprietário da clínica veterinária Old Chapel, em Pretória, “é tão insuficiente que até me dá arrepios”. Os leões, assim como o homem, precisam de variedade em sua dieta, e as necessidades nutricionais de cada um são diferentes, explica ele. Na natureza, os leões caçam uma variedade de animais e comem diferentes partes — em um dia, um leão pode comer carne de antílope, no dia seguinte, pode comer coração ou intestinos. Alimentar leões em cativeiro com carcaças inteiras pode não ser o ideal. As carcaças devem ser muito frescas para evitar o risco de infecção bacteriana pelo apodrecimento da carne, e os órgãos internos apodrecem primeiro. A carne congelada também representa riscos, explica Caldwell. Se não for descongelada à temperatura ambiente, as bactérias criofílicas podem se desenvolver e causar infecções que levam à diarreia crônica. “É bastante complexo”, afirma Caldwell. “Não é qualquer um que sabe fazer isso.”
Chegamos a dois recintos de aproximadamente 1,6 metro por 1,6 metro, com 26 leões. Peens diz que esses são os que tornaram Pienika “famosa”.
Ele admite que 27 jovens leões tinham sarna em abril, mas alega que não sofriam tão severamente quanto mostrado na reportagem. No momento da inspeção, diz Griesel, estavam recebendo suplementos vitamínicos, pó medicinal para a pele e um spray desinfetante, e foram tratados nos meses seguintes.
Um dos leões morreu desde a inspeção da NSPCA. Nenhuma autópsia foi feita, mas Peens acredita que a causa tenha sido insuficiência hepática. Ele afirma que o resto deles se recuperou da sarna: “segundo nos consta, a sarna já foi eliminada.”
Os leões, com idade entre 18 meses e dois anos, parecem acostumados com a presença humana — em vez de rugir ou mostrar os dentes, vão até a cerca para me inspecionar, miando lastimosamente como gatos gigantes. Os pelos estão curtos e um pouco irregulares, mas estão voltando a crescer.
Peens afirma que, no momento da inspeção e das apreensões da NSPCA, os outros leões de Pienika — os quatro filhotes — estavam sob os cuidados de um veterinário local. Ele reclama que “a SPCA pegou os filhotes justamente quando os veterinários faziam o diagnóstico, e essa é a origem do desentendimento ou conflito”. Ela afirma que a interferência impediu os veterinários de Pienika de acompanhar o progresso do tratamento e dificultou a definição do tratamento de outros filhotes que viessem a ter, futuramente, problemas semelhantes.
No fim de nosso percurso pela fazenda, Peens pergunta: viu algum leão maltratado? Faminto? Doente?
“As condições gerais dos leões”, segundo ele, “são boas”.
'Como morreram?'
Três dias após a nossa visita, em uma inspeção de acompanhamento, a NSPCA viu uma Pienika bem diferente. Wolhuter afirma que encontrou cerca de 20 carcaças de leões e tigres jovens em um congelador na casa de um funcionário, um filhote de leão em uma câmara frigorífica e, escondidos em um galpão, dois filhotes vivos apresentando sintomas semelhantes aos que afetavam os dois filhotes entregues durante a inspeção anterior.
Wolhuter, que verificava se os alimentos dos animais de Pienika estavam adequadamente armazenados, conta que ficou “sem palavras” quando abriu o congelador e viu os corpos. “Fico me perguntando: como morreram? Sofreram?”, indaga ele. “É o tipo de coisa que dói na alma, será que, se soubéssemos antes, algo poderia ter sido feito?”
Wolhuter conta que os dois filhotes vivos tiveram que ser sacrificados e que a NSPCA ainda está aguardando os resultados da autópsia de duas das carcaças congeladas.
Peens admite que havia leões mortos no congelador — “não é crime”, escreveu ele por e-mail. Os leões, explicou, haviam nascido mortos ou morreram logo após o nascimento. Os corpos passarão por taxidermia, disse ele, para “fazer troféus ou ornamentos para o Sr. Steinman usar em sua coleção”.
A fazenda Pienika é uma instalação de reprodução de leões que também oferece caça esportiva. Segundo Peens, os leões não destinados à caça são reproduzidos para venda ou exportação para zoológicos ou outros criadores para evitar a consanguinidade de seus animais.
São necessárias licenças do Ministério do Meio Ambiente para possuir, reproduzir, vender, transportar, caçar e sacrificar leões. Emitidas pelas províncias, as licenças não levam em consideração o bem-estar ou o tratamento humano dos animais.
Quando perguntei a Eleanor Momberg, funcionária da assessoria de imprensa do Ministério do Meio Ambiente, por que os padrões de bem-estar não são considerados no processo de licenciamento, ela respondeu que isso não é responsabilidade do ministério. Ela me encaminhou ao Ministério da Agricultura, Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural, que tem jurisdição sobre a NSPCA e assuntos relacionados à Lei de Proteção aos Animais.
Quando fiz a mesma pergunta a Mercia Smith, porta-voz do Ministério da Agricultura, ela me encaminhou de volta ao Ministério do Meio Ambiente, dizendo que a caça a leões é atribuição desse ministério. Mas uma declaração do Ministério do Meio Ambiente afirma que “atualmente não tem competência” para regulamentar o bem-estar e que “a crueldade com os leões é regulamentada nos termos da Lei de Proteção aos Animais”, administrada pelo Ministério da Agricultura.
Em um comentário sobre esse “jogo de empurra-empurra” entre os dois ministérios, Ian Michler, cineasta do documentário Blood Lions, afirma que, quando se trata do bem-estar dos leões, “vão se eximir de suas responsabilidades e simplesmente esquecer o assunto”.
Como resultado, conservacionistas e oficiais da NSPCA acreditam que os leões e outros animais estejam definhando a cada dia em condições precárias, em centenas de fazendas que criam animais silvestres por todo o país.
“Sabemos que não é um incidente isolado e esperamos poder chegar às fazendas antes de atingirem uma condição tão precária”, afirma Karen Trendler.
Leões vulneráveis
Os leões na natureza desapareceram de 94% de sua área de ocorrência histórica na África e, em todo o continente nos últimos 25 anos, suas populações caíram pela metade para menos de 25 mil. Eles são listados como vulneráveis à extinção pela União Internacional para Conservação da Natureza, organização que define o status de conservação das espécies.
Em 2016, o Serviço de Pesca e Animais Silvestres dos EUA, que regulamenta as importações e exportações de animais silvestres e produtos de animais silvestres, listou duas subespécies de leões como ameaçadas segundo a Lei de Espécies Ameaçadas. Isso significa que, se um caçador quiser levar para casa um troféu de um leão selvagem, é preciso demonstrar como isso contribuiria para conservar os leões em geral (o serviço avalia individualmente cada solicitação de importação de troféus de leões). A mesma regra se aplica aos troféus de leões criados em cativeiro, caçados em fazendas. Mas como o serviço determinou em 2016 que a reprodução de leões em cativeiro não contribui para a conservação, as importações de troféus de leões em cativeiro foram, na prática, proibidas.
De 2005 a 2014, segundo um relatório da Humane Society, a África do Sul exportou cerca de 4 mil troféus de leões para os EUA, 1,5 mil dos quais eram de leões criados em cativeiro. Durante esse período, os caçadores norte-americanos responderam pela maioria dos troféus sul-africanos de leões criados em cativeiro.
“Em termos de bem-estar dos leões, a proibição dos EUA surtiu um efeito positivo? Certamente que não”, afirma Michael ‘t Sas-Rolfes, conservacionista e economista sul-africano que pesquisa o comércio de animais silvestres na Universidade de Oxford. “Com menos dinheiro, não estão alimentando seus leões, alguns dos animais estão sendo sacrificados.” Ele afirma que a repressão à caça destinada a troféus deixa os proprietários de fazendas de leões com animais sem utilidade, levando alguns a matá-los para vender seus esqueletos.
Michler afirma que leões usados para turismo ou para a caça e obtenção de troféus precisam parecer saudáveis e bem cuidados, mas, se os proprietários os criam para o comércio de ossos, “não se importam com a aparência desses leões (...) porque, no fim das contas, só vão acabar em um saco de ossos com destino à Ásia.”
A África do Sul é um dos únicos países que permite a exportação legal de partes de corpos de leões (ou de grandes felinos). A cota anual de ossos de leão, definida pelo Ministério do Meio Ambiente, quase dobrou de 800 esqueletos em 2017 para 1,5 mil em 2018. Mais tarde nesse mesmo ano, em resposta à oposição internacional ao comércio, a cota foi reduzida de volta para 800.
A mera existência de uma cota, afirma Trendler da NSPCA, promove a crueldade animal. “Ao permitir uma cota e a reprodução de leões com esse propósito sem uma regulamentação sobre como abatê-los, as autoridades são diretamente responsáveis — ou a cota é diretamente responsável — por problemas de bem-estar”.
Em 13 de setembro de 2018, a NSPCA entrou com uma ação contra o Ministério do Meio Ambiente, a Associação de Predadores da África do Sul e outros no Supremo Tribunal da África do Sul por definirem cotas de ossos de leão sem levar em consideração o bem-estar animal. As cotas geralmente entram em vigor em meados de cada ano, mas neste ano, em 6 de agosto, o tribunal decidiu favoravelmente à NSPCA, interrompendo as exportações de ossos de leão até que o bem-estar fosse considerado.
Ao contrário de gado abatido em abatedouros que usam métodos prescritos e regulamentados, os leões das fazendas são mortos em instalações improvisadas com pouca ou nenhuma supervisão, afirma Trendler. Depois que os leões são mortos, suas carcaças são processadas e os ossos desidratados, os operadores fazem as malas e se mudam para outra fazenda. A natureza transitória desses matadouros dificulta ainda mais seu monitoramento. “Não existe uma estrutura definida em que seja possível entrar e afirmar: são esses os padrões”, afirma ela. “É tudo clandestino.”
Segundo Trendler, os crânios intactos valem mais que os danificados; portanto, os leões mortos para o comércio de ossos costumam ser mortos com armas de baixo calibre — um método que causa menos danos, mas não garante uma morte instantânea. “É algo que nos dá arrepios todos os dias”, conta ela.
No ano passado, na fazenda Wag-’n-Bietjie, em Bloemfontein, na província de Free State da África do Sul, Reinet Meyer, inspetor sênior da SPCA (filial local da organização nacional, a NSPCA), testemunhou o massacre em massa de 26 dos 54 leões, mortos em dois dias. Leões confinados em caixas tão pequenas que não podiam se virar foram baleados pela orelha e não entre os olhos, causando menos danos ao crânio, mas deixando-os com uma morte mais lenta e dolorosa, segundo Meyer. Ossos ensanguentados, cadáveres esfolados e pilhas de carne e órgãos ficaram espalhados.
Ela estava coletando evidências para um processo judicial contra André Steyn, o proprietário da fazenda, e Johan van Dyk, seu gerente, acusado de violar as leis da África do Sul que impedem a crueldade contra animais, alegando que haviam privado os leões de comida e água e os mantinham em pequenas caixas antes de serem mortos, de acordo com Meyer. Ela escreveu em um e-mail que os animais “demoraram demais” para morrer. “Foi simplesmente terrível de assistir”, escreveu ela. “Ver todas essas belas criaturas morrerem diante de mim foi muito, muito ruim”.
A ação está sendo tramitada e ainda não foi a julgamento em um tribunal, afirma Meyer. Um oficial do Serviço de Polícia da África do Sul ainda está conduzindo investigações e tudo está prosseguindo devagar, conta ela, porque há muitas testemunhas.
Comércio de ossos
Quem sabe distinguir um osso de leão de um osso de tigre?
Alguém fez essa pergunta a Sas-Rolfes mais de uma década atrás, quando ele visitou uma fazenda de tigres na China e viu leões também.
É a pergunta que explica a própria existência do comércio de ossos de leão.
As populações de tigres na natureza diminuíram para menos de 4 mil, principalmente devido à caça ilegal e perda de habitat. Os ossos de tigre são cobiçados na Ásia, sobretudo na China, para produzir vinho de osso de tigre, símbolo de status que se acredita transmitir força, ou como uma pasta usada para tratar doenças como reumatismo e dores nas costas. A China proíbe o uso de ossos de tigre desde 1993. Tentativas subsequentes de legalizar o comércio não tiveram êxito.
Sas-Rolfes afirma que isso deu início ao comércio de ossos de leão. “Vimos gente de países asiáticos na África do Sul perguntando: acreditamos que vocês caçam leões — o que fazem com os esqueletos? Nós iremos comprá-los.”
Às vezes, o osso de leão é oferecido como um substituto mais barato para o osso de tigre, mas também é vendido a preço cheio a consumidores inadvertidos, que acreditam estar comprando osso de tigre. De acordo com o relatório de 2018 da Traffic, organização que monitora o comércio de animais silvestres, muitos consideram o osso de tigre superior.
Às vezes, o osso de leão é exportado na forma de “torta”: segundo o relatório da Traffic, esqueletos são misturados com partes de outros animais, como casca de tartaruga, chifre de veado e osso de macaco, e depois são transformados em uma barra semelhante a um tijolo. Na forma de torta, o osso de leão não somente é mais fácil de exportar, mas também quase impossível de distinguir do osso de tigre.
Um relatório de 2018 da Fundação EMS e da Ban Animal Trading, dois grupos ativistas de animais da África do Sul, alega que os comerciantes declaram menos esqueletos de leão do que realmente exportam. O relatório informa que dez amostras de remessas que diziam pertencer ao esqueleto de um único leão, pesavam entre 11 e 30 quilogramas, em vez do peso médio de 9 quilogramas de um esqueleto completo. Segundo o relatório, esses esqueletos mais pesados que a média sugerem que “a indústria está tentando ocultar um comércio ilegal” e que “alguns dos comerciantes estão deliberadamente declarando menos” esqueletos do que estão realmente exportando.
Alternativamente, Sas-Rolfes afirma que poderia haver uma explicação simples: os comerciantes costumam exportar “carcaças relativamente frescas, às vezes ainda com pedaços de carne apodrecida”, que são mais pesadas que esqueletos desidratados adequadamente.
Mas essa possibilidade não elimina a existência de comércio ilegal: Sas-Rolfes sugere que a proibição de importações de troféus de leões pelos Estados Unidos pode ter estimulado as exportações ilegais de ossos de leões da África do Sul. Um estudo de 2019, de sua coautoria, constatou que, após 2016, embora alguns proprietários de fazendas de leões tenham reduzido leões para reprodução ou venda, quase 30% dos 86 proprietários disseram que haviam sacrificado mais leões por causa da proibição. Trinta por cento disseram que redirecionaram seu negócio para o comércio de ossos de leão.
Quando perguntei a Andreas Peens se a fazenda Pienika cria ou sacrifica leões para o comércio de ossos, ele negou. “Ossos? Não que eu saiba”, respondeu. Segundo dados do relatório de 2018, Steinman não está listado como exportador de ossos de leão.
Mais de 60% dos entrevistados no levantamento de Sas-Rolfes disseram que uma cota de exportação de até 800 esqueletos de leão por ano restringiria seus negócios, e mais da metade deles disse que “procuraria mercados alternativos para os ossos” — o que ele considerou um indicativo de que recorreriam ao comércio ilegal.
“Eu me preocupo muito com o bem-estar, a natureza e tudo isso, mas me preocupo com os resultados”, afirma Sas-Rolfes. “E o que aprendi é que uma solução simples” — neste caso, a proibição de importação de troféus — “nem sempre surte o resultado esperado”.
Não se sabe muito sobre o mercado de ossos de leão, afirma Sas-Rolfes, mas se a África do Sul proibisse o comércio, a demanda contínua na Ásia poderia levar à caça ilegal de leões selvagens, alimentando o mercado negro. “Não queremos provocar uma crise de caça aos leões”, diz ele. “Há muita coisa em jogo. Não queremos estragar tudo.”
Outros, como Karen Trendler, da NSPCA, argumentam que o comércio de ossos de leão deveria ser proibido porque apenas alimenta a demanda por ossos de leão. Segundo a Traffic, rumores apontam para um crescimento na demanda por produtos com ossos de leão no Vietnã. Além disso, informa a Traffic, como é difícil distinguir ossos de leão e de tigre, o comércio legal de ossos de leão leva a mais caça ilegal de tigres e leões na natureza.
Uma nova pesquisa feita por Kristoffer Everatt, gerente de programa da Panthera em Moçambique, organização global de conservação de felinos selvagens e beneficiária de uma bolsa da National Geographic para a conservação dos leões no país, mostra um possível aumento na caça ilegal no Parque Nacional do Limpopo, que faz fronteira com a África do Sul. Everatt afirma que o parque possuía 67 leões em 2013, mas desde então, seus leões foram “efetivamente exterminados” e agora restam menos de 10.
Ele afirma que a caça ilegal foi responsável por mais de 60% das mortes e, mesmo nos leões mortos por moradores em retaliação pela predação de seu gado, 48% desses animais tiveram suas partes — em alguns casos, seus esqueletos inteiros — removidos.
Everatt diz que, embora não haja provas de ligações diretas entre o comércio de ossos e o aumento da caça ilegal, “seria coincidência demais” que não estivessem relacionados. Neste ano, ele ouviu falar de leões mortos na Namíbia e em Botsuana “em circunstâncias muito suspeitas, com o desaparecimento de todo o corpo ou com dentes e garras ou cabeças e patas cortados”.
Também há evidências de que a caça ilegal de onças-pintadas e leopardos tenha aumentado nos últimos anos. Trendler afirma que o comércio legal de ossos de leão coloca todas as espécies de grandes felinos em risco. Se ninguém consegue distinguir um osso de leão de um osso de tigre, quem poderia diferenciar ossos de tigre, onça-pintada, leopardo ou outro grande felino?
“Onde isso vai parar?”, indaga ela.
Karlos e Ivana
Para ver os dois filhotes que a fazenda Pienika entregou à NSPCA em abril, Sobecki e eu viajamos à clínica veterinária Old Chapel, de Peter Caldwell, um prédio comum atrás de uma parede de tijolos no bairro Villieria, em Pretória. Os clientes aguardam na sala de espera, segurando cães e gatos no colo. Nas áreas de contenção em um pátio nos fundos, um babuíno com gesso na perna, um guepardo ferido em uma armadilha e os dois filhotes de leão de Pienika se recuperam.
Caldwell me diz que, quando foram recolhidos, os filhotes “estavam sofrendo dores agudas e excruciantes (...). Estavam quase gritando como bebês”. Um deles estava à beira da morte — desidratado, febril, incapaz de comer, incapaz de se mover, urrando de dor. Caldwell conta que foi um dos piores casos de negligência que já viu.
Caldwell conta que os filhotes foram retirados da mãe muito cedo e foram privados de nutrientes essenciais do leite. Eles sofriam de meningoencefalite — infecção e inflamação do cérebro e da medula espinhal — provocada por desnutrição e falta de higiene. Por terem carência de vitamina A, seus crânios haviam engrossado, pressionando seus cérebros, que expandiram por trás do crânio até a medula espinhal, impedindo o fluxo do líquido cefalorraquidiano. Sofriam de três diferentes doenças de pele — sarna, pioderma (infecção bacteriana) e alopecia (distúrbio imunológico que causa a perda da pelagem) — tinham febre alta e estavam sangrando internamente por úlceras estomacais induzidas pelo estresse.
Imediatamente ao chegar à clínica, foram alimentados via intravenosa e receberam cortisona para reduzir a inflamação, antibióticos para tratar as infecções e um medicamento chamado omeprazol para as úlceras estomacais.
Também foram batizados de Karlos e Ivana.
“São pequenas criaturas vivas e não pediram para nascer”, afirma Caldwell. “Por isso, precisamos lhes dar o máximo possível de atenção e cuidados médicos e fazê-los sobreviver”.
Conto a ele que Peens me disse que os filhotes estavam sob os cuidados de um veterinário antes da inspeção da NSPCA.
“É mentira”, afirma Caldwell, enraivecido. “É tudo mentira.”
E continua: “posso afirmar categoricamente que essas pessoas mentiram se alegaram estar fornecendo algum tratamento. Se houvesse um veterinário oferecendo algum tratamento, gostaria de falar pessoalmente com ele e perguntar como era o tratamento. Porque, em minha opinião, não estaria cumprindo suas obrigações ou estaria sendo negligente, e isso é uma vergonha para a minha profissão.”
No pátio da clínica, encontro Jessica Burkhart, doutoranda em neurologia na Universidade de Minnesota, responsável pela fisioterapia dos filhotes. Ela balança um pedaço de feno entre as barras do recinto. Karlos e Ivana, agora com seis meses, a observam, maravilhados. Eles batem no acessório que ela usa para esfregar delicadamente seus pés e a coluna — uma medida que estimula o cerebelo, a parte do cérebro que governa o movimento.
Eles mordem as cabaças, descansam debaixo da árvore e tentam roubar comida — frango, carne de veado e suplementos vitamínicos — das tigelas um do outro. De repente, Karlos agarra um brinquedo que se assemelha a um tubo de papel higiênico gigante, tirando-o das mãos de Burkhart. Quando ela tenta usar o arranhador de costas para impedi-lo, ele o parte ao meio. “É quando você se lembra de que está brincando com um leão”, diz ela, sorrindo.
Três meses de cuidados contínuos têm ajudado os filhotes a se recuperar, mas noto que suas cabeças balançam levemente enquanto se movem. O andar de Karlos mais parece um cambaleio; suas pernas cedem bastante e ele cai no chão. A recuperação de Ivana está ainda mais atrasada: ela rasteja pelo recinto, arrastando as pernas traseiras. Mas, segundo Caldwell, os leões não sentem dor e já não necessitam mais de medicamentos.
Nunca vão sarar completamente, acrescenta. Não terão pleno domínio de seu equilíbrio, podem tremer discretamente e balançar a cabeça pelo resto da vida. Agora que suas recuperações atingiram o pico, foram transferidos para o Santuário de Grandes Felinos Panthera Africa, perto da Cidade do Cabo, onde viverão pelo resto de seus dias. “É simplesmente impossível soltar animais criados em cativeiro e com necessidades especiais”.
Caldwell acredita que Karlos e Ivana têm um propósito maior: aumentar a conscientização sobre os leões em cativeiro na África do Sul. “Esses animais serão usados como embaixadores da espécie para impedir que esse tipo de coisa se repita”, afirma ele. “E o mundo inteiro saberá que não se deve ir a uma instalação e acariciar um filhote, pois é assim que esses filhotes são mantidos.”
O quarto filhote
Em Pienika, com Marius Griesel e Andreas Peens, observo, sob a sombra de uma árvore da espécie Searsia lancea, um filhote fêmea com seis meses de idade — irmã de Karlos e Ivana — em um recinto de aproximadamente 8 por 25 metros. Em abril, a NSPCA não a considerava doente o suficiente para ser removida da fazenda. Mas agora, lutando para ficar em pé, ela balança para frente e cai quando as pernas traseiras cedem.
Ela começou a fazer isso muito recentemente, diz Griesel. “Três semanas atrás, ela estava andando como os outros — sem nada de errado — e então, de repente...”
No dia seguinte, encontrei Fritz Ras, um dos veterinários de plantão de Pienika, em sua casa em Lichtenburg, a menos de 16 quilômetros de Pienika. Ras afirma só ter sido chamado após a inspeção da NSPCA. “Nunca toquei naqueles dois filhotes”, contou ele, referindo-se a Karlos e Ivana. “Nunca.”
Ras me diz que agora está fazendo tudo o que pode para cuidar dos leões que permanecem em Pienika, inclusive dando-lhes suplementos vitamínicos. “Sou veterinário, não posso dar as costas a esses animais”, diz ele.
Jacaranda, o nome dado por ele ao quarto filhote, está sofrendo da mesma infecção no sistema nervoso que seus dois irmãos apreendidos, diz ele. Ele suspeita que a causa seja a carência de vitamina A, a deficiência de tiamina ou um problema genético — ou talvez as três causas. Ele está observando o filhote e garantindo que ela tome multivitamínicos diariamente, além de injetar um suplemento vitamínico e mineral a cada semana ou duas.
Ras está preocupado por não ter tempo ou recursos para cuidar adequadamente de Jacaranda. A clínica de Caldwell tem uma máquina de raios X, um centro cirúrgico para animais silvestres e uma equipe de assistentes veterinários, mas Ras, na maioria das vezes, atua por conta própria.
“É um problema que me deixa acordado à noite”, afirma ele. “O que mais se pode fazer? Porque preciso ir ao fundo dessa questão.”
Ele diz que, às vezes, tem pensamentos sombrios.
“Não quero apenas resgatar esse pobre filhote e curá-lo e para quê? Para alguém atirar nele depois?”, indaga Ras. “Tento não pensar nisso.”