África Oriental é invadida por gafanhotos e mudanças climáticas podem ser a causa

A atividade humana alterou o padrão de circulação oceânica, dando início a uma cadeia de eventos incomum responsável pelas infestações.

Por Madeleine Stone
Publicado 27 de fev. de 2020, 07:15 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Centenas de milhões de gafanhotos-do-deserto invadiram o Quênia, provenientes da Somália e da Etiópia, uma quantidade ...
Centenas de milhões de gafanhotos-do-deserto invadiram o Quênia, provenientes da Somália e da Etiópia, uma quantidade que não é vista há 25 anos nesses locais. Os insetos estão dizimando as lavouras e ameaçando uma região que já é vulnerável.
Foto de Ben Curtis, Ap

A África Oriental está passando por uma crise que se assemelha àquela descrita no Livro de Êxodo: uma praga de gafanhotos está se espalhando por toda a região, ameaçando o fornecimento de alimentos a dezenas de milhares de pessoas. Enxames do tamanho de cidades, repletos das temidas pragas, estão causando um enorme estrago conforme atacam plantações e pastagens, devorando tudo em questão de horas. Nos últimos anos, a dimensão do surto de gafanhotos, que agora afeta sete países da África Oriental, é a maior dos últimos tempos.

Os insetos por trás do caos são os gafanhotos-do-deserto, que, apesar do nome, prosperam após períodos de fortes chuvas. Essas chuvas permitem o crescimento da vegetação em seus habitats normalmente áridos na África e no Oriente Médio. De acordo com especialistas, um período prolongado de clima excepcionalmente úmido, além de vários ciclones raros, que atingiram o leste da África e a Península Arábica nos últimos 18 meses, são os principais culpados. Por sua vez, as últimas tempestades estão relacionadas ao Dipolo do Oceano Índico, um gradiente de temperatura oceânica que recentemente subiu muito, algo também associado aos devastadores incêndios florestais no leste da Austrália.

Infelizmente, alguns especialistas dizem que isso pode ser um sinal do que está por vir, já que o aumento da temperatura da superfície do mar carrega as tempestades demasiadamente e as mudanças climáticas pendem a balança para o lado de padrões de circulação como os que desencadearam os desastres transoceânicos deste ano.

“Se observarmos esse aumento contínuo na frequência dos ciclones”, comenta Keith Cressman, oficial sênior que trabalha nos esforços de previsão de ataques de gafanhotos na Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, “acredito que podemos supor que haverá mais focos e surtos de gafanhotos no Chifre da África”.

Identificando a origem da praga

De acordo com Cressman, a crise dos gafanhotos-do-deserto remonta a maio de 2018, quando o ciclone Mekunu passou por um vasto deserto despovoado no sul da Península Arábica, conhecido como Quarteirão Vazio, preenchendo o espaço entre dunas de areia com lagos temporários. Como os gafanhotos-do-deserto se reproduzem livremente na área, isso provavelmente deu origem ao surto inicial. Então, em outubro, o ciclone Luban se formou no mar Arábico central, foi para o oeste e causou chuvas na mesma região, perto da fronteira entre o Iêmen e o Omã.

Gafanhotos-do-deserto vivem cerca de três meses. Depois que uma geração atinge a fase adulta, os insetos depositam seus ovos que, nas condições certas, podem eclodir para formar uma nova geração até 20 vezes maior que a anterior. Consequentemente, os gafanhotos-do-deserto podem aumentar exponencialmente o tamanho de sua população ao longo de gerações sucessivas, afirma Cressman. Por fim, esses dois ciclones de 2018 possibilitaram a reprodução bem-sucedida de três gerações de gafanhotos em apenas nove meses, aumentando o número de insetos no deserto da Arábia em cerca de oito mil vezes.

O ciclone Mekunu atingiu a costa leste da África em 25 de maio de 2018. Ele pode ter sido um dos ciclones que contribuiu para os enxames de gafanhotos na África Oriental.
Foto de NASA Worldview

Então, os gafanhotos começaram a migrar. No verão de 2019, os enxames saltaram do Mar Vermelho e do Golfo de Áden para a Etiópia e a Somália, onde tiveram outra série bem-sucedida de reprodução nos meses subsequentes, explica Cressman. Esse poderia ser o destino final dos gafanhotos, não fosse pelo fato de que em outubro passado, a África Oriental foi atingida por chuvas intensas e incomuns no outono, que ainda contaram, em dezembro, com um raro ciclone tardio que teve como alvo a Somália. Esses eventos desencadearam outro surto reprodutivo.

À medida que os gafanhotos continuam a se multiplicar, eles invadem novas áreas. No fim de dezembro, os primeiros enxames começaram a chegar ao Quênia, movendo-se rapidamente pelas áreas norte e central do país. Em janeiro, o país estava passando pela pior infestação dos últimos 70 anos. Djibuti e Eritreia também começaram a ser atingidos por infestações de gafanhotos e, em 9 de fevereiro, enxames de insetos atingiram o nordeste de Uganda e o norte da Tanzânia.

Preparando-se para o pior

É possível que o pior do surto ainda esteja por vir. As chuvas de outono, afirma Cressman, “transformaram a situação em algo bastante comum, mas também muito perigoso”, permitindo efetivamente pelo menos outras duas gerações de gafanhotos.

Ele teme que em junho os gafanhotos-do-deserto terão aumentado seu número em 400 vezes comparado a hoje, provocando uma devastação generalizada de plantações e pastagens em uma região que já é extremamente vulnerável à fome. Segundo a FAO, mais de 13 milhões de pessoas em Djibuti, Eritreia, Etiópia, Quênia e Somália sofrem devido a uma “insegurança alimentar aguda de enormes proporções”, ao passo que outras 20 milhões estão vivendo no limite.

“É tudo uma questão de tempo”, diz Cressman, explicando que a maioria das lavouras é plantada no início da primeira estação chuvosa da África Oriental, em março ou abril. “Quando as chuvas começarem e os agricultores estiverem prontos para plantar, a época coincidirá com essa nova geração de gafanhotos.”

Uma confluência de clima e condições meteorológicas incomuns ajudou a alimentar o surto.

Os dois ciclones de 2018 que desencadearam a reprodução dos gafanhotos na Península Arábica foram atípicos. Como observa a Nasa, o mar Arábico pode ficar anos sem testemunhar a formação de um único ciclone. Mas embora 2018 tenha sido um ano bastante chuvoso, 2019 foi extremo, com o norte do Oceano Índico quebrando muitos recordes, incluindo a maioria dos dias com furacões e a maior “energia ciclônica acumulada”, um indicador do poder destrutivo da temporada. A rara tempestade de dezembro foi apenas um sintoma.

As chuvas, particularmente em 2019, estiveram relacionadas ao Dipolo do Oceano Índico, que oscila entre os estados positivo, negativo e neutro à medida que as temperaturas oceânicas variam em todo Oceano Índico. Quando o Dipolo do Oceano Índico está negativo, os ventos do oeste empurram as águas mornas para perto da Austrália, causando precipitação adicional na parte sul do continente. Quando está positivo, os ventos do oeste enfraquecem, permitindo que a água morna — e as chuvas — se desloquem para a África Oriental.

Durante o outono de 2018, o Dipolo do Oceano Índico foi positivo. Em seguida, ficou discretamente negativo por alguns meses antes de voltar com tudo, subindo, no outono passado, para o segundo estado mais positivo desde 1870, segundo Wenju Cai, cientista climático da agência científica australiana CSIRO. As condições que a África Oriental e a Austrália experimentaram ultimamente são exatamente os resultados que poderíamos esperar.

“A temporada de ciclones hiperativos que trouxe fortes chuvas para a Península Arábica foi impulsionada por uma intensa fase positiva do Dipolo do Oceano Índico, o mesmo padrão que causou uma seca recorde na Austrália”, afirma Bob Henson, meteorologista do Weather Underground.

Pesquisas recentes sugerem que esse padrão pode se tornar mais comum em um mundo cada vez mais quente. Um artigo de 2014 liderado por Cai descobriu que, no pior cenário de emissões de carbono, a frequência de eventos extremamente positivos do Dipolo do Oceano Índico poderia aumentar quase três vezes até o fim do século. Em um estudo de acompanhamento em 2018, os pesquisadores descobriram que, se o planeta aquecer apenas 1,5 grau — meta que o planeta pode deixar de cumprir na próxima década — as fases extremamente positivas do Dipolo do Oceano Índico ainda podem dobrar. De acordo com Cai, já existem evidências de que o Dipolo do Oceano Índico, no geral, tenha uma tendência mais positiva.

Não se sabe se isso dará origem a mais pragas de gafanhotos, mas é uma possibilidade preocupante. Padrões de circulação oceânica à parte, as mudanças climáticas estão aquecendo os oceanos em todos os cantos do mundo, o que deve provocar chuvas mais intensas. No mar Arábico, pesquisas recentes sugerem que o aquecimento global já está intensificando os ciclones de outono. Ainda, outras pesquisas vincularam as mudanças climáticas ao agravamento das secas e das chuvas no leste da África, descrevendo um futuro incerto, mas provavelmente mais perigoso.

Enquanto os cientistas continuam estudando o rumo do clima na África Oriental, as organizações humanitárias se esforçam para impedir que a crise dos gafanhotos piore. No mês passado, a FAO apelou à comunidade internacional para obter uma ajuda de US$ 76 milhões destinada a operações de controle de pragas e à proteção de agricultores e pastores em cinco países atingidos pelos gafanhotos. Cressman acredita que o dinheiro chegará, mas está preocupado se não será tarde demais. À medida que os insetos continuam a se multiplicar, a necessidade de ajuda pode aumentar consideravelmente, especialmente se medidas de controle mais agressivas não forem implementadas em breve.

“Basicamente, as providências precisam ser tomadas ontem”, afirma Cressman.

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