Adotar cães de rua está em alta na Índia
A nova mentalidade pode significar um novo tipo de respeito aos milhões de caninos que perambulam desamparados pelo país.
A Índia possui mais de 35 milhões de cães de rua, como esses perto do Taj Mahal.
BENGALURU, ÍNDIA Com suas patas estendidas e abanando a cauda preta e branca, Rocky gosta de pular em qualquer pessoa que suas pernas peludas conseguem alcançar.
Ela é a extrovertida da família. Já sua irmã, Julie, fica menos animada com os visitantes. Com pouco mais de três meses de idade, esses cães de médio porte são os mais novos “funcionários” da delegacia de Kumaraswamy Layout, em Bengaluru, a terceira maior cidade da Índia e capital de Karnataka, estado da região sul.
Assim como diversas autoridades policiais ao redor do mundo, aqui a polícia utiliza cães policiais para farejar drogas, capturar ladrões ou proteger propriedades.
Mas Rocky e Julie não são filhotes comuns.
A polícia os resgatou como parte de um programa experimental que treina cães de rua para serem cães policiais. Lançada em dezembro, a iniciativa agora proporciona um lar permanente para muitos desses cães, causando um impacto significativo no bem-estar dos animais da cidade e possivelmente de todo o país. Até o momento, as autoridades estimam que 21 cães estejam “trabalhando” em diversas delegacias.
As ruas da Índia abrigam cerca de 35 milhões de cães, um número que aumentou 17% desde 2016. A vida da maioria deles é difícil, pois buscam comida no lixo e muitas vezes transmitem doenças. A maioria das raças é nativa da Índia, como o cão pária indiano ou Poligar hound, por isso são frequentemente chamados de “cães independentes” — um termo mais leve usado pelos defensores de animais em vez de “cão errante” ou “cão de rua”.
Não existe nenhum lugar em Bengaluru, cidade anteriormente conhecida como Bangalore, que não tenha cães independentes. Em 2012, havia mais de 200 mil cães na zona urbana do estado de Karnataka. De acordo com um censo realizado recentemente pelo governo local — o Bruhat Bengaluru Mahanagara Palike (Conselho Municipal de Bengaluru), ou BBMP — agora esse número ultrapassa 300 mil.
Um cão olha para a antiga vila de Hampi, Patrimônio Mundial da Unesco, no estado de Karnataka.
Os moradores em geral toleram os animais, que por sua vez apresentam um certo risco para as pessoas, pois podem ser portadores da raiva. Cerca de 20 mil pessoas morrem anualmente na Índia em consequência da raiva, muitas das vítimas são crianças que brincam e compartilham alimentos com os cães que perambulam livremente.
Mas há também um movimento entre os residentes de Bengaluru para tratar os animais com mais respeito, e é por isso que cada vez mais as pessoas estão adotando ou criando cães independentes. Sudha Narayanan, que há três décadas luta pelos direitos dos animais, testemunhou essa mudança, que coincide com o fato de que possuir cães tenha ganhado popularidade.
Como fundadora do centro de resgate de animais Charlie's Animal Rescue Center, Narayanan ajudou cerca de três mil animais de rua a encontrar lares permanentes nos últimos sete anos, e esse número não para de crescer. Ela atribui essa mudança cultural a uma maior conscientização sobre o bem-estar animal, impulsionada por viagens internacionais e campanhas sem fins lucrativos.
“A geração mais jovem é mais gentil. Eles têm conhecimento, leem e pesquisam na Internet”, diz Narayanan. “Eles não querem ser vistos como pessoas que odeiam animais.”
Durante o bloqueio nacional para impedir a disseminação do coronavírus, por exemplo, os defensores de cães em Bengaluru estão se expondo nas ruas para alimentar os cães independentes.
Entretanto, existem preocupações com a segurança. Sathwik Sriram, um morador que escreveu no Twitter sobre “cães de rua idiotas” após ler relatos de uma criança ter sido atacada até a morte em 2019, confessa ter medo desses animais.
“Os cães de rua são bonzinhos pela manhã, mas durante a noite, podem te atacar”, diz ele por telefone, acrescentando que seu vizinho foi mordido. Ele conta que conhece motociclistas “que sofreram acidentes, pois precisaram acelerar para escapar de um cão de rua.”
Um estudo de 2016 afirmou que acontecem 25 mil mordidas de cães por ano em Bengaluru. Para evitar ataques, o BBMP recomenda não provocar os cães, principalmente cadelas que estão no cio ou amamentando — pois ficam ainda mais na defensiva. Mas em uma metrópole lotada, onde tudo e todos compartilham as vias, pode ser difícil não invadir o espaço um do outro.
Já faziam parte da família
Em uma manhã ensolarada em uma área descampada perto da delegacia, um treinador ensina o básico a Rocky e Julie: sentar, ficar, levantar, em cima, embaixo, esquerda, direita.
Os filhotes se distraem com facilidade e prestam tanta atenção quanto qualquer criança que escuta o professor durante a aula, caindo e se enrolando nas coleiras. Sweetie, a mãe dos cães que gosta de tirar uma soneca no estacionamento ao lado, interrompe para mordiscar o nariz de seus filhotes.
Um cão de rua senta-se próximo de um homem em Varanasi, cidade em Uttar Pradesh. Um estudo recente revelou que cães de rua conseguem entender gestos humanos sem nenhum treinamento.
Todos os três já eram “praticamente animais de estimação” que vagavam pelas redondezas da delegacia, então fazia sentido acolhê-los, conta Rohini Katoch Sepat, vice-delegada de polícia da divisão sul de Bengaluru.
“Eles já faziam parte da família, por isso estamos apenas os apresentando formalmente a todos”, conta Sepat. Com o apoio do Delegado de Polícia, Bhaskar Rao, ela está reforçando sua unidade canina com os cães de rua que residem nas 16 delegacias sob sua jurisdição.
Os cães independentes adultos, que são naturalmente territorialistas e já têm suas manias, são mais adequados para proteger as entradas da delegacia onde já dormem há anos, enquanto filhotes como Rocky e Julie podem, teoricamente, ser treinados do zero para tarefas mais ambiciosas de investigações criminais, ela explica.
Essas tarefas geralmente são designadas a raças importadas, como pastores-alemães. Com Sepat no comando, os cães independentes podem finalmente participar dessas ações.
‘Agora virou moda’
Bengaluru concentra empresas de software, startups de tecnologia e desenvolvedores de todo o mundo que constroem elegantes complexos de apartamentos e belos prédios de escritórios.
No movimentado centro, há um gramado conhecido como Cubbon Park, agora espirituosamente chamado de “Cubbon Bark” (em referência a “bark”, que significa latido em inglês).
Todo domingo de manhã, cães e seus donos lotam o grande parque cercado, onde os cães podem correr livres das coleiras: golden retrievers, huskies, rottweilers, shih-tzus e cães independentes.
Eles são tratados como VIPs no local, graças a Priya Chetty-Rajagopal e sua equipe de Cavaleiros do Cubbon Park, uma rede de voluntários que cuida dos cerca de 80 a 90 cães independentes que vivem no parque, com cada um deles assumindo um turno diferente. Todos os cães independentes têm nomes e são livres para entrar e sair quando quiserem. Alguns, como Mimsy, têm até um perfil nas redes sociais e são reconhecidos por visitantes assíduos.
Os jardins do parque estão lotados nesse domingo em especial; Chetty-Rajagopal observa que é uma pequena multidão, mas ainda há mais pessoas que animais.
Muitos dos cães independentes podem ser adotados; uma das missões dos Cavaleiros é convencer as pessoas de que um puro-sangue não é o único tipo de “cão perfeito para uma família”.
“[Não estamos] apenas dizendo: por favor, adotem um cão independente, nossa mensagem é: isso pode ser uma das coisas mais legais que você pode fazer. Se você tem um cão independente, será considerada uma pessoa descolada.”
Dentre os visitantes estão futuros pais de animais de estimação e também aqueles que estão em busca de um animal de estimação. Os Cavaleiros convidam especialistas — o convidado de hoje é um veterinário que veio ensinar sobre insolação, pois o verão se aproxima — para educar a comunidade de mais de 14 mil pessoas, que se conecta por meio de um grupo privado no Facebook.
Chetty-Rajagopal chama essa tendência de “a ascensão dos petizen (palavra combinada que significa animal de estimação com cidadão), porque as pessoas não têm mais vergonha ou não escondem o fato de que possuem um animal de estimação.”
Karthik Sridharan adotou Rocket — um cão independente de pelagem bege com manchas brancas, que sorri com a língua para fora — em 2019 e, desde então, reorganizou sua vida, mudando sua startup para um espaço de trabalho compartilhado que aceita a presença de cães e comprando um carro com espaço para o Rocket.
Um cão observa a vida passar perto de um templo em Uttar Pradesh, o estado mais populoso da Índia.
“É mais fácil ter um bebê humano do que ter um bebê cachorro”, conta Sridharan, “pois há muito mais apoio em relação aos humanos do que para cuidar desses caninos, pois acontecem muitos mal-entendidos.”
A crescente afinidade por animais de estimação não é exclusiva de Bengaluru, embora os ativistas tenham bastante voz por aqui. (Eles organizaram petições para proibir a venda de animais online, entre outras causas que apoiam.) Em cidades como Mumbai e Nova Délhi, startups de serviços para animais de estimação, como Woofbnb, e cafés que aceitam cães, como o Puppychino, estão surgindo para facilitar a vida dos donos de animais.
Um espaço seguro para os animais de rua
Dois cães independentes do Cubbon Park recebem os visitantes na entrada do Charlie’s Animal Rescue Center em uma tarde ensolarada de terça-feira. Fundada por Narayanan em 2013, a unidade de internação trata exclusivamente animais de rua doentes e feridos: cães independentes, gatos, galinhas, coelhos, porquinhos-da-índia, porcos comuns, patos e até pombos que não conseguem voar adequadamente.
O próprio Charlie era um cão independente que perdeu uma das pernas em um acidente e, depois de recuperado, passou cerca de nove anos ajudando crianças autistas com terapia assistida por animais.
A unidade médica possui uma sala de cirurgia onde até dois animais podem ser atendidos, um analisador hematológico para diagnosticar resgatados diretamente na ambulância, além de equipamentos de raio X e ultrassom — Narayanan conta que todos os equipamentos foram doados.
Os recursos destinados para o bem-estar animal são limitados na Índia; portanto, dinheiro costuma ser uma preocupação para os abrigos. “Eu digo para qualquer pessoa que vem aqui... que doe algo para os cachorros”, ela brinca, admitindo que não tem vergonha de implorar por recursos.
Narayanan presencia situações horríveis, de crueldade aos animais à raiva. Em 2018, Karnataka teve a segunda maior taxa de mortalidade por raiva da Índia, provavelmente causada pela falta de conscientização, pela quantidade de cães e pela escassez de vacinas. Sessenta pessoas morreram da doença fatal no estado entre 2016 e 2018.
Para as pessoas que foram mordidas por um animal com raiva, a diferença entre a vida ou a morte compreende cinco doses da vacina, a primeira precisa ser administrada imediatamente após a exposição.
Alguns órgãos administram as doses gratuitamente. Em 2015, o BBMP também ofereceu até 100 mil rúpias, ou cerca de R$ 7 mil (US$ 1.300), de indenização para quem sofreu um ataque fatal de cães de rua.
Quanto aos cães, as vacinas continuam sendo a resposta, mas os protocolos vigentes de imunização não são abrangentes o suficiente para proteger a população. Nas décadas de 1970 e 1980, Narayanan conta que os cães independentes eram caçados e eletrocutados para reduzir a população. Essa prática foi interrompida, mas mesmo em 2020, agressores envenenaram ou espancaram cães até a morte.
Narayanan acredita que “enquanto houver humanos, haverá crueldade” — mas a esperança é a espinha dorsal do centro de resgate Charlie’s.
Cães dormem sobre pedaços de papelão para fugir do chão frio de Varanasi.
Alguns cães vivem sob os cuidados dos 34 funcionários que trabalham em tempo integral e centenas de voluntários; outros são colocados para adoção. No começo, um ou dois cães independentes eram adotados por mês, ela conta, mas agora são de 10 a 15.
Até a criadora Prathvi Shenoy — que já vendeu mais de 300 filhotes através de sua empresa, My Lil Paw — entende o apelo. “Esses cães de rua são mais leais porque dificilmente as pessoas os alimentam”, diz ela por telefone. “Assim que você os alimenta, eles são seus para sempre.”
O caminho pela frente
A castração em massa de cães de rua é uma solução com a qual muitos ativistas concordam. O governo municipal tem boas intenções, diz a voluntária Nandita Subbarao por telefone, mas não é suficiente.
Algumas regiões da cidade — especificamente nos subúrbios, onde grande parte das construções está ocorrendo — não existe controle de natalidade animal, por isso os cães continuam tendo ninhada após ninhada. A menos que todas as regiões da cidade sejam atendidas, a população de cães continuará a aumentar.
Subbarao resolveu tomar providências por conta própria, rastreando independentemente os cães em seu bairro e telefonando para os serviços do BBMP para castrar e vacinar os cães.
A realocação ilegal é outra questão, diz ela. Quando alguém reclama de cães próximos de sua casa, um apanhador contratado os recolhe discretamente e os solta a alguns quilômetros de distância.
Quando alguém nessa nova região reclama, esses mesmos cães são transferidos para outro quarteirão — onde quer que exista um local para deixá-los. No fim, eles se movimentam tanto que podem acabar no mesmo local onde foram deixados e ninguém vence essa luta.
Dois cães de rua com cicatrizes olham desconfiados para a câmera. A vida de cães de rua pode ser difícil e cruel. Eles enfrentam constante competição por alimento e exposição a muitas doenças.
Para combater o problema, Subbarao e outros defensores de cães conscientizam e educam o público em geral, ensinando-os a ter compaixão pelos cães independentes, em vez de medo.
Um futuro promissor
De volta à delegacia, uma caixa de papelão foi trazida com quatro filhotes pretos e marrons — talvez com 35 dias de idade, provavelmente uma raça de cães independentes, e tão pequenos que cabem na palma da mão.
Originalmente, havia nove filhotes na ninhada, conta Saranya BN, funcionária que trabalha no resgate de cães, mas ela não sabe o que aconteceu com os outros cinco. Ela acredita que a mãe tenha sido espancada até a morte nas redondezas. Rocky e Julie também tinham seis irmãos, mas alguns estavam muito doentes e não sobreviveram e os outros fugiram.
Com base em observações, essa é a triste realidade do trabalho voltado ao bem-estar animal em Bengaluru. Os voluntários lutam para proteger o maior número possível de animais vulneráveis, mas não têm meios para salvá-los. A área de treinamento de cães da delegacia fica ao lado de uma via congestionada, e Sweetie gosta de dormir embaixo dos carros, e muitas vezes os motoristas não sabem que ela está lá.
Ainda assim, os fãs de cachorros dedicam seu coração a ajudar os cães independentes. Subbarao também faz isso pelas pessoas; os processos rigorosos de vacinação e castração ajudam a todos, diz ela, independentemente de gostarem de cães ou não.
Enquanto isso, os recém-chegados na caixa rodeiam uma tigela de água e rolam sobre jornais. Eles precisam de cuidados médicos e vermífugos. Não está claro o que acontecerá a seguir, mas agora, mais do que nunca, as pessoas estão cuidando deles.