Elefanta é transportada de Buenos Aires para santuário no Brasil – entenda a jornada
Com idade estimada em 50 anos, a elefanta Mara percorreu cerca de 2,7 mil quilômetros até chegar ao seu novo lar, no Mato Grosso – tudo isso durante a pandemia da covid-19.
A elefanta que viveu grande parte de sua vida sendo transferida de circos a zoológicos foi levada, em meio à pandemia da covid-19, ao seu novo lar no Brasil.
“Foi uma loucura. Eu já estava preparada para o trabalho, mas, de vez em quando, durante a viagem, me lembrava que todo mundo estava em isolamento, que estávamos em meio a uma pandemia e que transportávamos um elefante”, relata, que ainda se surpreende com o trajeto percorrido. Ela é fotógrafa documental por vocação, além de conservacionista por convicção.
Com os olhos ainda marejados toda vez que relata essa experiência e relembra do vínculo que criou com Mara, a fotógrafa tenta naturalizar os acontecimentos: “É muito complicado transportar um elefante. Não apenas por seu tamanho, mas também por toda a documentação necessária para esse deslocamento. Foram quase três anos para conseguirmos resolver a situação”.
Segundo López Mañán, esse espécime de elefante-asiático, que tem entre 50 e 55 anos de vida, estava com a viagem marcada para o dia 30 de março. Depois de preencher uma série de documentos, realizar diversos trâmites, receber a caixa de transporte especial enviada pelo Brasil em dezembro e de ter preparado o animal para esse processo (treinamento, quarentena, avaliação médica) em um tempo recorde de dois meses, a covid-19 chegou à América Latina. A Argentina decretou estado de emergência sanitária e isolamento social preventivo e obrigatório em 20 de março. A viagem de Mara foi suspensa.
“Em meados de abril, o Ecoparque entrou em contato comigo para avisar que seria possível realizar o trajeto”, relata a fotógrafa que, entre voltas e reviravoltas, recebeu a confirmação de que estava autorizada a atravessar a fronteira somente dois dias antes da partida.
Mas o dia finalmente chegou: sábado, 9 de maio. Mara, uma elefanta que havia passado a maior parte de sua vida em circos e em um zoológico, tinha cinco dias para percorrer os 2,7 mil quilômetros que a separavam de seu novo lar e local de descanso, o Santuário de Elefantes do Brasil, na Chapada dos Guimarães, no Mato Grosso.
“Eu colocaria minha mão no fogo por todos que trabalham com elefantes no Ecoparque. Eles dão a própria vida pelos animais. Porém, não era o suficiente. Mara é um animal e precisava voltar a ser um elefante”, reconhece López Mañán, contando com emoção a despedida da elefanta de seus cuidadores em Buenos Aires.
Cerca de 15 pessoas a acompanharam no primeiro trecho do trajeto, incluindo cuidadores, veterinários, autoridades nacionais e também do Ecoparque, e uma equipe de logística. “Todos com máscara, álcool em gel e kits de acordo com o protocolo. A última coisa que queremos que aconteça em uma viagem dessas é que alguém se contamine (pela covid-19)”, afirma a fotógrafa.
Na primeira noite, dormiram ao lado de um posto de gasolina, dentro dos carros ou em sacos de dormir. Levaram consigo a comida necessária para alimentar Mara, como fardos de alfafa, maçãs, melões, melancias e cenouras.
Embora não tenham entrado em nenhuma cidade da Argentina durante a viagem, López Mañán conta que, de vez em quando, um grupo de pessoas ia ver a caixa. O animal estava parcialmente visível. “Algumas pessoas nunca tinham visto um elefante na vida. E mesmo observando apenas algumas partes por entre a caixa, ficavam fascinadas”, relembra.
Com a elefanta Mara de fundo, a fotógrafa Sofía López Mañán retira a máscara e sorri pelo objetivo alcançado. Originalmente do mundo das artes, ela trabalha com temáticas de preservação há alguns anos. “Sou movida pelo vínculo humano com o meio ambiente”, comenta.
Dois dias depois, com poucas horas de sono e muita estrada pela frente, mais um momento emocionante. Antes de atravessar para o lado brasileiro, a maior parte do grupo se despediu de Mara. No último trecho do trajeto, ela foi acompanhada por uma veterinária, o responsável pela logística, o subsecretário do Ecoparque e a fotógrafa. Grande parte da equipe que a acompanhou nos últimos anos ficou para trás.
Entre fronteiras
“A travessia entre as duas fronteiras durou das 6 da manhã até 3 da tarde. Ficamos muito apreensivos, pois não podia faltar nenhum documento”, admite López Mañán, ao contar que, na travessia da fronteira, aferiram sua temperatura. A equipe também recebeu funcionários de diferentes instituições, todos vestidos com equipamentos de proteção típicos de tempos de pandemia.
A fotógrafa recorda que, até o momento, a equipe teve contato com poucas pessoas, mas a travessia para o outro lado da fronteira apresentou-lhes uma realidade diferente. Lá, chegaram diversas viaturas da Polícia Rodoviária Federal do Brasil (que fiscalizaria todos os certificados e permissões) e os escoltaria até o destino final, além de um grupo de pessoas ansiosas para tirar fotos com a caixa em que estava o animal.
“Trabalho aqui há muitos anos, posso escrever uma trilogia contando tudo que já vi passar por aqui, menos um elefante”, comentou um dos funcionários da fronteira a López Mañán.
Do lado brasileiro, a pessoa que abriria as portas do novo lar de Mara também os aguardava. Scott Blais é dono do Santuário de Elefantes no Brasil. Nascido nos Estados Unidos, trabalhou desde os 13 anos com elefantes no país, abriu um santuário no Tennesse (The Elephant Sanctuary in Tennesse) e, hoje, sua esposa e ele dedicam-se ao trabalho com esses animais no Mato Grosso.
“Ele foi mais ágil. Quase não houve paradas nessa etapa e a caixa foi aberta somente quando necessário. Ele já transportou cerca de 50 animais durante a vida”, conta a fotógrafa, admitindo que levou “bronca” de Scott quando ela se aproximava muito do animal. A Polícia Rodoviária Federal os acompanhou durante todo o trajeto e facilitou o acesso à etapa de controle.
A equipe de cuidadores e veterinários do Ecoparque ajudou Mara a se preparar para entrar na caixa de transporte que a levaria ao novo lar. Esse processo de adaptação pode levar vários meses.
“Este lugar foi escolhido devido à semelhança climática que possui com a Índia, país de origem de Mara. Atualmente, o local abriga outros três elefantes”, conta López Mañán. Ela também explica que animais como esse elefante, que passam a maior parte de sua vida em cativeiro, não podem ser reinseridos na vida selvagem, e é por isso que recorrem a esse tipo de santuários, que são locais onde os animais podem ficar em meio à natureza, sem servirem para exibição em shows.
Eles recebem cuidados, realizam exames de saúde e não são incentivados a se reproduzir. “A ideia é que tenham uma vida melhor, mantendo os devidos protocolos. Aqui, tomam café da manhã e jantam, recebem uma alimentação adequada. Além disso, suas patas são sempre higienizadas (o animal em cativeiro costuma ter problemas nas patas devido à falta de caminhada, podendo gerar infecções) e eles são bem cuidados”.
Uma elefanta itinerante
A viagem de Mara foi longa, muito mais longa do que a distância que separa Buenos Aires da Chapada dos Guimarães. Depois de ter nascido em cativeiro na Índia, a elefanta foi transferida para um zoológico em Hamburgo, na Alemanha. Ela viveu nele até maio de 1970, quando foi levada à Montevidéu, no Uruguai, para se apresentar no Circo África.
Em junho de 1971, foi comprada pelo Circo Sudamericano e levada para a Argentina. Passou por outros circos antes de ir para o Circo Rodas, em março de 1980, onde permaneceu por 15 anos. Devido a um confisco judicial de animais, Mara foi transferida, em outubro de 1995, para o Jardim Zoológico de Buenos Aires.
Essa Mara em 1970, ao lado de seu treinador, Quaker, no Circo Sudamericano.
Diversos anos depois, em junho de 2016, o governo da cidade de Buenos Aires informou que o zoológico seria fechado e que passaria por um processo progressivo de transformação para o que hoje é conhecido como Ecoparque, iniciando-se o trabalho de realocação de animais. Os trâmites para o transporte de Mara levaram bastante tempo e, apesar da espera e do surgimento de uma pandemia inesperada, a equipe de profissionais, veterinários, cuidadores e autoridades alcançou o objetivo planejado.
“Quando ela chegou ao santuário, assustava-se com os pássaros locais, galos e corvos pequenos. No segundo dia, já emitia sons. Mara sempre vocalizava com seus cuidadores. Porém, para esses animais isso também simboliza chamar sua manada”, explica López Mañán.
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No dia seguinte, a elefanta começou a vocalizar com uma de suas companheiras, Rana. Começaram a procurar uma à outra e não se separaram mais. “Scott me contou que nunca tinha visto Rana reagir dessa forma. Tornaram-se inseparáveis, comem e dormem juntas. É possível que quando vieram de Hamburgo, tenham estado no mesmo navio ou talvez já estiveram juntas em algum momento”, conta a fotógrafa com entusiasmo.
E, embora a possível história de um passado compartilhado entre duas elefantas não possa ser confirmada, a cumplicidade entre as duas nos convida a acreditar que Mara, finalmente, está se sentindo à vontade em seu novo lar.
Este trabalho teve o apoio do Fundo de Emergência para Jornalistas para cobertura da pandemia de covid-19 lançada pela National Geographic Society.