Lobos primitivos que brincavam com humanos possivelmente evoluíram para os amigáveis cães de hoje

Dezenas de milhares de anos atrás, nossos ancestrais buscavam caninos selvagens com personalidades brincalhonas ainda presentes nos cães modernos — principalmente em cães pastores e de caça.

Por Virginia Morell
Publicado 7 de out. de 2020, 17:00 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT

Um braco húngaro de pelo curto no parque Queen Elizabeth Forest Park, na Escócia. Historicamente, essa raça acompanhava caçadores e os ajudavam a encontrar e recuperar os animais caçados.

Foto de Tony Clerkson, Alamy

A maioria dos filhotes de cão adora brincar, seja correndo atrás de bolinhas, de cabo de guerra ou estraçalhando aquele brinquedo barulhento. Para os humanos, brincar com cachorros normalmente traz felicidade – na verdade, a ciência revela que donos de cães dão mais risadas que donos de gatos.

Sendo assim, não é nenhuma surpresa que a disposição dos cães para brincar conosco tenha sido um fator-chave em sua domesticação e que pode ter norteado a criação de caninos para funções específicas, de acordo com um estudo publicado na revista científica Biology Letters.

Embora os pesquisadores ainda discordem sobre o momento, o local e a forma como os cães foram domesticados pela primeira vez, a maioria concorda que um lobo ancestral provavelmente foi o primeiro a ter contato com humanos.

É provável que essa espécie de lobo ainda não identificada tenha começado a se aproximar de assentamentos humanos na Alemanha ou Sibéria entre 20 mil e 40 mil anos atrás, em busca de lixo e sobras de alimentos. Os animais menos medrosos da matilha provavelmente perderam alguns dos traços característicos dos lobos, como a personalidade arisca e tímida, e evoluíram ao longo do tempo, se tornando o alegre, amigável e leal cão doméstico que aquece nossos corações e lares.

No novo estudo, os cientistas investigaram se lobos mais curiosos e propensos a brincadeiras transmitiram esses traços para as novas espécies de cães domésticos e se as pessoas criavam os cães com essas características de forma intencional. Pesquisas anteriores, por exemplo, constataram que alguns filhotes de lobos sabem intrinsicamente como brincar de bola com humanos.

“É provável que a disposição dos cães para brincar conosco tenha  sido importante para nós durante a domesticação deles”, diz o líder do estudo Niclas Kolm, biólogo evolutivo da Universidade de Estocolmo, na Suécia.

Na verdade, após analisar as relações evolutivas entre as raças de cães modernos, a equipe constatou que seu ancestral mais comum, um animal semelhante ao basenji moderno (um tipo de cão pastor africano), teria brincado com humanos — ainda que com algum incentivo.

A equipe também constatou que cães pastores, como o braco húngaro de pelo curto e o pastor-australiano, eram “muito mais brincalhões”, sempre participando de brincadeiras rápidas e ativas, explica Kolm.

“Na prática, faz sentido: se um cão tem interesse em brincar com você, fica muito mais fácil treiná-lo”, conta, acrescentando que cães pastores precisam ter vínculos fortes com seus donos para serem eficazes e que brincadeiras frequentes podem fortalecer essas relações.

Basenjis (na foto, um animal na Pensilvânia, em 1959) não latem, mas emitem um som de risada.

Foto de Nina Leen, The LIFE Picture Collection, Getty Images

Personalidades dos filhotes

Quase todos os mamíferos jovens brincam, geralmente com outros da mesma espécie. Eles fazem isso para o desenvolvimento físico, social e cognitivo e também para praticar habilidades, como a caça, fundamental na vida adulta.

Ao atingir a idade adulta, os animais raramente brincam, simplesmente porque precisam se concentrar na busca de territórios, alimentos e parceiros. E também não costumam brincar com animais que não sejam de sua espécie.

Mas os cães parecem despertar a natureza jovial de diversas espécies, de humanos até galinhas — interações amplamente documentadas no YouTube. Cães e cavalos, que foram domesticados lado a lado em fazendas por séculos, também brincam juntos e exibem comportamentos semelhantes, como curvar-se uns aos outros.

Para uma análise mais profunda dos filhotes brincalhões, Kolm e seus colegas investigaram como o comportamento de brincar conduzido por humanos evoluiu para as 132 raças modernas registradas no clube American Kennel Club. Essas raças são agrupadas por suas diversas funções, como pastoreio, caça, guarda, companhia, trabalho (como puxar trenós) e esportes (como recolher animais caçados). Os pesquisadores inseriram dados genéticos das raças em um modelo de computador avançado que fez a previsão de qual raça tinha características brincalhonas.

Então a equipe cruzou com os dados coletados pelo Swedish Kennel Club, que analisou as personalidades e o comportamento brincalhão de mais de 89 mil cães dessas 132 raças entre 1997 e 2013. Os pesquisadores do Swedish Kennel Club avaliaram a disposição dos cães para brincar de cabo de guerra com um desconhecido: os cães que participaram pronta e ativamente da brincadeira foram classificados como extremamente brincalhões.

Embora os resultados tenham revelado que as raças de pastoreio e esporte gostassem mais de brincadeiras, as raças miniatura, como o spaniel anão continentalgostavam menos. “Essas raças são projetadas para serem pequenas e carregadas no colo”, conta Kolm. “Brincar com as pessoas não é importante para eles.”

Kolm ficou ainda mais surpreso ao constatar que as raças do tipo terrier, como o staffordshire bull terrier — criado originalmente para ser um cão de briga — são bastante brincalhonas. Ele acredita que isso se deve ao fato de terem sido criadas para seguir instruções humanas — inclusive convites para brincadeiras.

Cão antigo, truques antigos

O mais intrigante, no entanto, é que o basenji, o cão de caça africano, também era brincalhão, mas não tanto. É possível que o basenji seja a raça domesticada mais antiga, datando pelo menos do século 18. Mas os pesquisadores acreditam que os cães do tipo basenji existem desde cerca de 6.000 a.C., com base em pinturas rupestres na Líbia que representam esses cães em uma caçada.

É impossível saber se os basenjis modernos se comportam de maneira semelhante a esses cães primitivos. Mas os autores do estudo dizem que a combinação da história antiga da raça e seu jeito brincalhão fortalecem a descoberta do estudo que revela que há muito tempo as pessoas criam cães, em parte, pela diversão.

“É um bom progresso no estudo do comportamento de brincadeiras”, diz Gordon Burghardt, etologista comparativo e especialista em brincadeira animal da Universidade de Tennessee em Knoxville.

Marc Bekoff, professor emérito de ecologia e biólogo evolutivo da Universidade de Colorado, em Boulder, diz que a equipe sueca está “provavelmente certa em sugerir que brincar com humanos foi importante nos primórdios da domesticação dos cães”.

“Os humanos podem ter selecionado especificamente essa característica”, criando cães que fossem mais ou menos brincalhões, explica por e-mail Bekoff, que não participou da pesquisa.

Um mistério que o estudo ainda não solucionou é sobre aqueles lobos que se tornaram os divertidos companheiros fieis de hoje, deixando um tema para futuros estudos sobre as origens de nossos melhores amigos caninos.

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