Atirar ilegalmente em animais protegidos é mais comum do que se imaginava
Um pequeno grupo de caçadores antiéticos provavelmente está por trás do grande número de mortes ilegais de animais selvagens, segundo estudo recente conduzido em Idaho, nos EUA.
Um terço dos maçaricos-bicudos, que estavam sob monitoramento de pesquisadores em uma área de conservação no sudoeste de Idaho, foram mortos a tiros ilegamente.
NO PRIMEIRO dia do novo projeto de estudo sobre o maçarico-bicudo, maior ave costeira da América do Norte, o ornitólogo Jay Carlisle deparou-se com algo perturbador: um maçarico-bicudo morto com um buraco de bala na cabeça.
Era o ano de 2009 e as populações do pássaro conhecido em inglês como knobby-kneed bird, que possui um bico de 20 centímetros, estava decaindo na região sudoeste de Idaho, embora ninguém tivesse certeza do motivo. Atirar nessa espécie de aves é ilegal de acordo com a legislação federal, mas Carlisle, diretor de pesquisa do Observatório Intermountain Bird, um projeto da Universidade Estadual de Boise, logo descobriu que se tratava de uma ocorrência comum.
Ao longo de sete anos, pesquisadores colocaram dispositivos de rastreamento em 21 maçaricos-bicudos. Um terço deles foi morto a tiros ilegalmente — todos morreram em áreas onde eram permitidas a caça e a prática de tiro recreativas.
Essa constatação indicou a possível causa de uma das maiores preocupações de Carlisle: o declínio drástico e contínuo de maçaricos-bicudos em parte do sudoeste de Idaho. Embora a espécie, que ocorre em toda região oeste dos Estados Unidos e México, não esteja classificada como ameaçada de extinção, em sua área de estudo, o número de aves caiu de cerca de dois mil na década de 1970 para menos de uma centena atualmente.
Um artigo recente com co-autoria de Carlisle publicado na revista científica Conservation Science and Practice, sugere que a caça ilegal de animais selvagens em algumas regiões de Idaho pode estar contribuindo para o declínio não apenas dos maçaricos-bicudos, como também de aves de rapina nativas e cascavéis. O estudo foi o resultado de anos de trabalho que iniciou em 2009 com o maçarico encontrado morto. Posteriormente, o estudo foi ampliado e passou a incluir levantamentos de aves de rapina e cobras mortas em uma área de conservação no sudoeste de Idaho.
Nessa parte do Ocidente, a degradação do habitat, a eletrocussão por fios de eletricidade e o envenenamento por chumbo ou rodenticida são ameaças bastante conhecidas e expressivas enfrentadas por animais selvagens, como falcões, águias e corujas, mas matar de forma recreativa animais selvagens que não são de caça — animais que não são caçados pela carne ou para alimentação — não tem sido amplamente reconhecida como uma ameaça em potencial. Esse estudo sugere que deveria ser, segundo Todd Katzner, autor principal do artigo e biólogo da vida selvagem do Serviço Geológico dos Estados Unidos em Idaho.
“Essas espécies vivem na mata e estão sendo mortas sem motivo aparente”, diz ele. Esse trabalho ajuda a estabelecer a prevalência deste tipo de extermínio e identifica algumas áreas onde está ocorrendo, formando uma base para futuras pesquisas que venham a analisar os efeitos sobre as populações de animais.
O estudo foi um passo à frente no uso da ciência para tratar de um problema persistente, explica Zach Wallace, pesquisador de aves de rapina da Universidade de Wyoming, em Laramie, que não participou do estudo. Ele diz ter encontrado aves de rapina mortas a tiro em todos os estudos dos quais participou no Ocidente.
“O problema é tão sério a ponto de ter sido possível detectá-lo, mas o interessante sobre esse estudo é que de fato foi possível realizar uma análise. Eles tinham um conjunto de dados grande o suficiente para estudo, algo nunca antes realizado.”
O alvo são os animais selvagens
Atirar em espécies que não são de caça se transformou em uma indústria. Caça guiada por cães-da-pradaria, concursos de caça a coiotes e competições de tiro em corvos são atividades legalizadas em diversos estados. Cerca de 1,5 milhão de cães-da-pradaria-de-cauda-preta foram mortos a tiros em apenas um ano em Dakota do Sul, e mais de 150 mil esquilos-terrestres são mortos com o uso de armas de fogo a cada ano em apenas uma parte do sudoeste de Idaho.
Essas práticas são legalizadas, mas atirar em aves e répteis protegidos por leis estaduais ou federais não é. E poucos lugares mostram o problema como a Área Nacional de Conservação de Aves de Rapina do Rio Morley Nelson e a Área de Preocupação Ambiental Crítica do Habitat de Maçaricos-Bicudos no sudoeste de Idaho, onde Katzner, Carlisle e colegas vêm monitorando as populações de animais selvagem há décadas.
Nessas áreas, caçadores licenciados podem atirar em um número ilimitado de determinadas espécies, incluindo esquilos-terrestres e coiotes. E qualquer um pode praticar tiro ao alvo, que varia de caixas de papelão a fornos e microondas descartados.
Contudo os pesquisadores constataram que um pequeno grupo desses atiradores também é responsável pelo extermínio ilegal de outros animais selvagens, incluindo gaviões-papa-gafanhoto, búteos-de-cauda-vermelha, falcões-ferruginosos, corujas-buraqueiras e outras espécies protegidas pela Lei do Tratado das Aves Migratórias.
Das 39 carcaças de ave de rapina recuperadas em 2019 que apresentavam causa de morte evidente, 59% haviam sido mortos a tiros. Esse índice, segundo Katzner, sugere que matar ilegamente essas aves pode levar ao declínio da população, uma conclusão que exige pesquisas adicionais. Isso não é nada inédito — um relatório elaborado pelo governo em 2016 sobre as populações da águia-real em todo o país indicou que mortes por tiro são a terceira maior causa de morte dessa espécie.
As cascavéis, cujo número de indivíduos já vinha reduzindo na região devido à caça e coleta excessiva, também foram atingidas. Atiradores ilegais exterminaram pelo menos um ninho de cascavéis em 2014, conta Zoe Duran, especialista em recursos naturais da Guarda Nacional do Exército de Idaho, que realiza treinamentos na região. Um outro ninho, na qual os biólogos contavam rotineiramente cerca de 30 cobras, agora tem menos de cinco depois que os pesquisadores encontraram cascavéis mortas a tiros nas proximidades.
“[Essa pesquisa] provou o que eu e alguns outros colegas suspeitávamos: atirar de forma recreativa é prejudicial para as populações de animais selvagens, mesmo que a maioria das pessoas esteja seguindo a lei”, diz Carlisle. “Se você conhece alguém que sai uma vez por semana para atirar e não se importa com o seu alvo, saiba que até mesmo uma única pessoa pode ser responsável pelo declínio.”
Atirar ilegalmente é “repugnante”
Os motivos que levam as pessoas a atirar ilegalmente nesses tipos de animais variam, de acordo com Katzner, Carlisle e outros pesquisadores, e provavelmente estão enraizadas em atitudes históricas que consideram aves de rapina e cobras ameaças às pessoas e ao gado.
Mas às vezes, tratam-se simplesmente de crimes de oportunidade — uma pessoa se depara com um falcão sobre um fio da rede telefônica e decide atirar “para sentir adrenalina”, diz Charlie Justus, oficial de conservação do Departamento de Pesca e Caça de Idaho, uma afirmação que se baseia em anos de entrevistas conduzidas com infratores em Idaho.
Outras mortes podem resultar de identificações equivocadas, diz Carlisle. A cabeça de uma coruja-buraqueira de pelagem castanha saindo de um buraco poderia, à primeira vista, parecer um esquilo-terrestre.
Pesquisas informais conduzidas por Madeline Aberg, doutoranda da Universidade Estadual de Boise, indicam que a maioria dos atiradores considera “repugnante” atirar em espécies como maçaricos e falcões, conta Carlisle, levando os pesquisadores a acreditar que apenas um pequeno grupo seja responsável pela maioria das mortes.
“O comportamento ético é motivo de orgulho para a maior parte dos caçadores”, escreveu Bill Brassard, da National Shooting Sports Foundation, por e-mail. “Atirar deliberadamente em espécies que não são de caça ou aquelas que estão fora da temporada de caça deve receber punição de acordo com o crime que representa.”
Mas flagar os infratores não é fácil, diz Justus. Cinco guardas-florestais na área de Boise têm, cada um, cerca de 2,6 mil quilômetros quadrados para patrulhar. Eles estão concentrando os esforços em pontos críticos identificados pelos pesquisadores, mas mesmo assim, ninguém foi flagrado ainda.
“Vamos continuar realizando o trabalho na região e estamos aprendemos à medida que avançamos para tornar nossos esforços mais eficientes e bem-sucedidos”, diz Justus.
Os disparos ilegais não são a única ameaça aos animais selvagens causada por humanos no Ocidente, mas, de acordo com Katzner, “para poder mudar o rumo de uma população, é preciso começar reduzindo a taxa de mortalidade”.
E, segundo Carlisle, com menos de uma centena de maçaricos restantes nessa parte do sudoeste de Idaho, a morte de cada ave reprodutora contribui para a redução da população.