Conheça o morcego que se alimenta de outros morcegos

Cientistas buscam mais informações sobre o raramente avistado morcego-espectral, a ‘onça alada’ da América Latina.

Por Jason Bittel
Publicado 6 de jan. de 2022, 10:22 BRT
Foto de um morcego de ponta cabeça com um outro morcego menor na boca

Morcego-espectral, a maior espécie de morcego do Hemisfério Ocidental, come um morcego-de-cauda-curta.

Foto de Marco Tschapka

Reserva Arqueológica de Lamanai, Belize | “É o Vampyrum!”, gritou Winifred Frick na trilha escura mais à frente. A floresta tropical ao nosso redor fervilhava de gafanhotos, enquanto bugios uivavam na noite úmida. Frick estava com a rede de neblina — rede produzida em malha preta utilizada por cientistas para apanhar morcegos para estudo — e quando a alcancei e olhei por cima de seu ombro, o que vi fez meu coração palpitar.

Frick, cientista-chefe da organização sem fins lucrativos Bat Conservation International e ecóloga da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, Estados Unidos, liderou a pesquisa sobre morcegos deste ano em Belize. Durante a expedição em novembro de 2021, vi dezenas de morcegos de perto na Reserva Arqueológica de Lamanai: morcegos da espécie Centurio senex, cujos rostos são enrugados como os de buldogues, morcegos Rhynchonycteris naso, que têm nariz como o do Pinóquio, e até mesmo morcegos-vampiros com presas pontiagudas.

Nenhum era maior do que um pássaro canoro. Mas o morcego que me encarava agora era do tamanho de um corvo — com orelhas, focinho e dentes à mostra como o Lobo Mau. O Vampyrum spectrum, mais conhecido como morcego-espectral, tem mais de 1 m de envergadura de asas e é o maior morcego do Hemisfério Ocidental.

O V. spectrum às vezes também é chamado de “grande falso-vampiro”, falso porque não suga o sangue como a espécie de morcegos-vampiros; ele come carne. Esses superpredadores caçam roedores, grandes insetos, aves e outros morcegos, às vezes atacando-os em pleno voo.

Por que a má fama dos morcegos é injusta
Livros, filmes, séries e, mais recentemente, boatos sobre a origem do coronavírus transformaram os morcegos em seres tenebrosos. A verdade é que nós precisamos deles muito mais do que eles precisam de nós.

Com isso em mente, Frick — que já lidou com milhares de morcegos em seus 20 anos de carreira, mas nunca com um morcego-espectral — pegou um par ainda mais grosso de luvas de couro em sua mochila. “Se eu não tomar cuidado, ele vai me morder”, comentou Frick.

Na semana anterior, uma outra equipe havia capturado um morcego-espectral fêmea — a primeira da espécie vista nos 14 anos de pesquisas anuais na região.

Ao desemaranhar o morcego da rede para observá-lo mais de perto, Frick ficou surpresa ao descobrir perfurações em cada uma das asas — sugerindo que se tratava da mesma fêmea que os colegas haviam capturado anteriormente. (A perfuração é um método de pesquisa rápido e inofensivo para adquirir amostras genéticas. A pele se repara rapidamente e não impede o voo do animal.)

“Os morcegos são parte importante da biodiversidade de mamíferos, e o Vampyrum especificamente é um ótimo exemplo de um morcego impactante”, observa Frick. “São como onças aladas nas florestas tropicais da América Central e do Sul.”

Morcego carnívoro

Melissa Ingala, pesquisadora associada do Museu Americano de História Natural, na cidade de Nova York, e colegas colocaram uma pequena etiqueta PIT (do inglês, transponder passivo integrado) sob a pele do morcego e coletaram amostras fecais para saber o que a fêmea havia comido. Se o morcego for apanhado novamente, a equipe pode comparar as amostras fecais para ver se a dieta mudou — informações importantes sobre o comportamento do animal, de acordo com Ingala.

“É tão raro apanhá-los que simplesmente não sabemos muito sobre a espécie”, relatou Nancy Simmons, curadora-chefe do Departamento de Mamologia do Museu Americano de História Natural. Simmons e Brock Fenton, professor emérito da Universidade de Western no Canadá, organizam essas pesquisas anuais com morcegos — uma iniciativa que rendeu pelo menos 60 publicações científicas até o momento.

“Acredito que o Vampyrum, especificamente, vaga pela floresta em busca de pequenos vertebrados e, quando ouve algo estranho, vai investigar”, comenta Simmons. 

A dieta dos morcegos geralmente inclui insetos, frutas ou néctar, mas um estudo recente demonstra que o Vampyrum é uma de apenas nove espécies de morcegos carnívoros.

A pesquisa sugere que essas espécies, que incluem o falso-vampiro (Chrotopterus auritus) e um morcego que come rãs (da espécie Trachops cirrhosus), desempenham um papel subestimado como predadores de topo de cadeia em seus ecossistemas, em parte ajudando a controlar as populações de suas presas.

Do sul do México até o Brasil, o morcego-espectral sobrevoa a noite em busca de aves, arrebatando-as de galhos de árvores ou ninhos. Esses mamíferos voadores também caçam roedores que correm entre a serapilheira.

“Eles mergulham e envolvem suas presas, utilizando as asas como leque”, explica Rodrigo A. Medellín, ecólogo da Universidade do México e coautor do recente estudo sobre morcegos carnívoros, mas que não participou da expedição a Belize.

Então, assim como uma onça-pintada, “desferem uma mordida mortal, geralmente no topo da cabeça ou na nuca da presa”.

Por mais dramático que pareça, os cientistas testemunharam o feito raras vezes, provavelmente porque há densidades muito baixas de morcegos-espectrais, como é o caso de outros superpredadores. Além disso, como os predadores precisam de espaço para caçar, a perda de habitat é um grave problema para eles: a União Internacional para a Conservação da Natureza lista os morcegos-espectrais como quase ameaçados de extinção.

“Essa floresta pode ter cinco indivíduos — provavelmente apenas essa fêmea, seu companheiro e sua prole”, relata Ingala. Em comparação, pode haver centenas ou mesmo milhares de outras espécies de morcegos na mesma floresta.

“Esse é um morcego muito especial”, salienta Ingala.

Família em primeiro lugar

Em uma iniciativa para aprender mais sobre morcegos-espectrais, Medellín oferece US$ 1.000 para quem indicar um poleiro de Vampyrum em seu país, o México. Até o momento, a recompensa já o levou a três poleiros.

“O que significa que já vi três a mais do que qualquer outra pessoa no mundo”, brinca Medellín, que também é Explorador da National Geographic

Esses poucos poleiros já revelaram informações valiosas. Por exemplo, Medellín e sua equipe observaram que, quando morcegos-espectrais fêmeas ficam na toca com um filhote (que pode ter quase metade do tamanho da mãe), o macho leva roedores e outras presas para ela.

“Esse tipo de alimentação suplementar não era conhecido entre essa espécie de morcegos”, diz Medellín.

Da mesma forma, os experimentos de Medellín com morcegos-espectrais em cativeiro demostraram que eles interrompem a ecolocalização quando se aproximam da presa — talvez porque o ultrassom possa alertar outros morcegos e até mesmo alguns roedores. Em vez disso, eles parecem se guiar pelos sons produzidos pelas próprias presas.

“Há também a hipótese, que precisamos testar, de que os morcegos estejam utilizando o olfato”, diz ele. Isso ocorre porque muitas das espécies de aves que o Vampyrum costuma comer, como os cucos e juruvas, têm odores corporais fortes e nidificam em comunidade. “Grandes atrativos para um predador”, ressalta Medellín.

Medellín conta que está intrigado com o fato de os morcegos matarem e comerem grandes aves, como papagaios. Os papagaios podem ser mais pesados do que um morcego-espectral e “podem facilmente decapitar [um morcego] com seus bicos”, diz ele. “E, ainda assim, são comidos pelo Vampyrum.”

O mundo do Vampyrum

O estudo recente de Medellín observa que algumas espécies de morcegos carnívoros vivem em territórios sobrepostos, e sua presença ou ausência parece afetar o comportamento de outros morcegos. 

Ele observa, por exemplo, que tanto o Vampyrum quanto o Chrotopterus (falsos-vampiros) gostam de empoleirar-se em árvores ocas. Porém, em áreas onde as duas espécies estão presentes, o Chrotopterus tende a se empoleirar em cavernas, sítios arqueológicos e buracos.

“Mas quando o Vampyrum não está presente no sistema, seja em maior altitude ou latitude, então o Chrotopterus ocupa as árvores ocas”, explica ele.

Tudo isso sugere a Medellín que outras espécies de morcegos que vivem no mesmo ecossistema que o Vampyrum ajustam seu comportamento para a própria segurança. E, agora que vi um morcego-espectral em carne e osso, posso dizer que os entendo.

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