Coronavírus está se espalhando entre humanos, mas teve início em mercado de animais

Com casos confirmados em vários países, autoridades de saúde analisam surtos semelhantes do passado e detectam aspectos em comum.

Por Nsikan Akpan
Publicado 23 de jan. de 2020, 16:09 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Funcionário com vestimenta de proteção no mercado de frutos do mar que foi fechado em Wuhan, ...
Funcionário com vestimenta de proteção no mercado de frutos do mar que foi fechado em Wuhan, na China, considerado o local de origem do novo surto de coronavírus.
Foto de Darley Shen, Reuters

A HISTÓRIA PARECE estar se repetindo.

Quase 20 anos atrás, um vírus surgiu nos mercados de animais silvestres no sul da China, e era diferente de tudo que o mundo conhecia. Era inverno de 2003 e as pessoas afetadas queixavam-se de febre, calafrios, dor de cabeça e tosse seca — sintomas comuns na temporada de gripes e resfriados.

Mas a condição evoluía para uma forma letal de pneumonia, que perfurava o pulmão dos infectados com orifícios hexagonais e causava grave insuficiência respiratória em um quarto dos pacientes. Embora a maioria das infecções só seja transmitida para outras três pessoas, alguns dos afetados se tornaram “supertransmissores” — transmitindo, sem saber, a doença para dezenas de pessoas de uma única vez. Quando a epidemia de síndrome respiratória aguda grave (SRAG) terminou sete meses depois, mais de oito mil casos e 800 mortes haviam ocorrido em 32 países.

É por isso que as autoridades internacionais estão agora preocupadas com um novo vírus relacionado à SRAG que surgiu no centro da China. A doença se espalhou para grandes cidades como Pequim, Xangai e Shenzhen em apenas três semanas.

Até o momento, mais de 600 casos foram relatados, além de 18 mortes causadas pelo vírus. Os epidemiologistas suspeitam que provavelmente existam milhares de casos.

Os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) relataram o primeiro caso nos EUA, no estado de Washington. Há infectados confirmados também em outros sete países: Japão, Tailândia, Taiwan, Coreia do Sul, Vietnã, Singapura e Arábia Saudita.

“A disseminação entre humanos foi confirmada, [mas] não sabemos com que facilidade ou sustentabilidade esse vírus é transmitido”, disse Nancy Messonnier, diretora do Centro Nacional de Imunização e Doenças Respiratórias do CDC, em uma entrevista coletiva em que anunciou o desenvolvimento de um teste genético rápido para o vírus Wuhan. “No momento, estamos testando esse vírus no CDC, mas nas próximas semanas esperamos divulgar os testes a parceiros nacionais e internacionais.”

Assim como a SRAG, todo esse alvoroço parece ter surgido devido ao comércio de animais silvestres e isso não é nenhuma surpresa para os virologistas.

“Se acabássemos com os mercados de animais silvestres, muitos desses surtos seriam coisa do passado”, diz Ian Lipkin, diretor do Centro de Infecção e Imunidade da Universidade Columbia, cujo laboratório trabalhou com autoridades chinesas para desenvolver testes de diagnóstico precoce para a SRAG.

Isso ocorre porque a SRAG e o novo surto são zoonóticos, o que significa que essas doenças começaram em animais antes de se espalharem entre os humanos. As doenças zoonóticas estão entre as piores do mundo. HIV, ebola e influenza H5N1, por exemplo, todos infectaram a fauna silvestre antes que interações entre animais e pessoas dessem origem a surtos internacionais. No caso da SRAG, preparadores de alimentos e pessoas que manipularam, mataram e venderam animais silvestres representaram quase 40% dos primeiros casos. Os primeiros episódios também ocorreram em pessoas com maior probabilidade de morarem a uma curta distância dos mercados de animais silvestres.

Morcegos reservatórios

As autoridades de saúde relataram o novo surto em 31 de dezembro, associando uma série de casos semelhantes à pneumonia a um mercado de frutos do mar na cidade de Wuhan, um importante ponto de trânsito no centro da China com mais de 11 milhões de habitantes. Mas a CNN informou que o mercado “Cidade de Frutos do Mar da China Meridional”, em Wuhan, vendia mais do que frutos do mar, e obteve um vídeo que supostamente mostra cães-guaxinim e cervos alojados em pequenas gaiolas no mercado.

Mas por que essas condições podem ser propícias a doenças zoonóticas?

“Quando você reúne animais nessas situações não naturais, há o risco de aparecimento de doenças que afetam os humanos”, diz Kevin Olival, ecologista e conservacionista da EcoHealth Alliance. “Se os animais são alojados em condições precárias sob muito estresse, isso pode aumentar as chances de eles contraírem vírus e adoecerem.”

Essa relação entre vírus e animal também pode ajudar a rastrear a origem de uma epidemia. Os vírus sofrem mutação à medida que se espalham e se multiplicam, uma característica que virologistas e biólogos da vida selvagem podem utilizar para rastrear a evolução de uma doença, mesmo que ela afete diferentes animais.

A SRAG e o novo vírus por trás do surto de Wuhan são altamente relacionados, ambos pertencentes a uma família chamada coronavírus. Os coronavírus são uma grande família de vírus, alguns dos quais causam doenças em pessoas, ao passo que outros circulam entre os animais, incluindo camelos, gatos e morcegos.

Quatro meses após o início do surto de SRAG, no início de 2003, equipes de pesquisa em Hong Kong testaram cães-guaxinim, civetas e texugos e descobriram parentes próximos do coronavírus que causa a SRAG — a primeira evidência de que a doença também afetava animais não humanos.

A descoberta deu início a uma onda de investigação viral na vida selvagem, o que acabaria por apontar o Rhinolophus, o morcego-de-ferradura, na China, como a provável origem da SRAG. Pesquisas globais acabariam revelando que vírus ancestrais e parentes do vírus da SRAG circulavam em morcegos pela Ásia, África e Europa há anos. Os morcegos agora são considerados a fonte original de todos os principais coronavírus.

“A sequência genética do próprio vírus pode levar você de volta à origem”, diz Olival. “No caso de Wuhan, a correspondência mais próxima são outros coronavírus relacionados à SRAG que são encontrados em morcegos.”

Pesquisas com animais silvestres realizadas pela EcoHealth Alliance na China e em outros lugares da Ásia mostram que a maior prevalência de coronavírus tende a ser gerada pelos animais através das fezes ou do guano, no caso dos morcegos. Os coronavírus não se espalham apenas pelo ar e trato respiratório, mas também se a matéria fecal entrar em contato com a boca de outro ser vivo. Os morcegos não são exatamente limpos; portanto, se um mordiscar uma fruta, ela poderá ser contaminada com matéria fecal. Se a fruta cair no chão, poderá servir como um ponto de transferência viral para animais de criação, como os civetas.

Camelos, mamíferos e vacinas

Até agora, parece que os coronavírus de origem animal afetam os humanos e causam doenças graves apenas em raras ocasiões. A SRAG representou a primeira ocorrência documentada de transmissão de coronavírus e foi seguida pela Síndrome Respiratória do Oriente Médio, um vírus semelhante, mas distinto, que surgiu na Arábia Saudita em 2012 e também se espalhou internacionalmente.

A saga da MERS reforçou a história contada pela SRAG que envolve animais. O coronavírus MERS veio de morcegos, mas usava mamíferos domesticados — neste caso, camelos — como ponte para chegar aos humanos. O primeiro caso da MERS envolveu um homem de 60 anos que possuía quatro camelos de companhia, que dormiam em um cercado ao lado de sua casa.

Um estudo de 2014 realizado pelo laboratório de Lipkin e pelo zoólogo Abdulaziz Alagaili, da Universidade King Saud, encontrou anticorpos contra MERS — um sinal que indica infecção — em amostras de sangue de camelo que datam de 1993. O vírus MERS circulou por mais de 20 anos sem que ninguém percebesse.

“Fizemos testes em dois matadouros na Arábia Saudita, onde camelos eram abatidos”, diz Lipkin. “Em alguns casos, eles lavavam a carne com mangueiras de alta pressão antes de embalá-la. Era possível encontrar o coronavírus MERS na carne destinada a supermercados.”

A Arábia Saudita importa milhares de camelos todos os anos de países africanos, muitos dos quais servem como fonte de alimento, especialmente durante a peregrinação muçulmana. Os biólogos encontraram sinais de infecção por MERS em camelos vindos de países africanos como Etiópia, Quênia, Tunísia, Egito e Nigéria.

Ao contrário da SRAG, que surgiu e desapareceu em um ano, o vírus da MERS se embrenhou nas comunidades humanas, com casos relatados na Arábia Saudita até 2017. Mas essa persistência levantou a possibilidade de desenvolvimento de uma vacina, uma vez que a eficácia do tratamento poderia ser testada em uma população consistente.

“Seria possível vacinar pessoas que tinham maior contato com os camelos, como os beduínos e as pessoas que trabalham nos matadouros”, diz Lipkin.

No entanto a vacina contra o vírus da MERS nunca se concretizou, apesar dos esforços generalizados. Atualmente, não existe nenhum tratamento específico para a SRAG ou MERS.

Na ausência de um recurso médico, estratégias de controle da infecção — como lavar as mãos, quarentenas e higiene — se tornam as únicas ferramentas para manter a SRAG, a MERS e agora o coronavírus Wuhan sob controle.

Panorama de Wuhan

É difícil dizer o que as pessoas devem esperar do coronavírus Wuhan. No espectro das epidemias, a SRAG foi para o lado dos piores casos, enquanto a MERS foi letal, mas de alcance muito menor.

A maioria das condições semelhantes à pneumonia reserva o pior de seus danos para as populações mais velhas, mas a SRAG podia perfurar o pulmão de um jovem adulto tanto quanto o de uma pessoa idosa; a idade média das vítimas da SRAG girava em torno de 40. A MERS, por outro lado, em sua maioria, era grave em pacientes acima de 50 anos de idade e, geralmente, em pessoas com condições pré-existentes.

“Não está claro se esse vírus [Wuhan] simplesmente desaparecerá ou evoluirá para algo mais patogênico”, diz Lipkin. “Ainda não temos evidências de supertransmissores e esperamos nunca ter. Mas também não sabemos quanto tempo esse novo coronavírus sobrevive em superfícies ou por quanto tempo as pessoas continuarão a transmitir o vírus após serem infectadas.”

A princípio, as autoridades alegaram que todos os coronavírus Wuhan envolviam eventos cruzados com animais, mas agora a doença parece estar sendo transmitida de pessoa para pessoa. Na segunda-feira, autoridades chinesas confirmaram que 14 profissionais de saúde haviam contraído o vírus, e o paciente em Washington informou que havia passado por Wuhan durante a sua viagem.

Como o coronavírus Wuhan chegou até os humanos também continuará sendo um mistério até a China divulgar mais informações sobre o que o mercado de frutos do mar, que agora ganhou uma reputação infame, escondia. As autoridades fecharam e impediram o acesso ao mercado no dia de Ano Novo. Mas pistas no local podem ajudar os investigadores a identificar quais animais podem portar e disseminar o vírus na China e no exterior.

O surto de Wuhan também levanta uma questão: se o comércio de animais silvestres precisa de mais fiscalização ou se deve ser fechado para sempre.

“Uma intervenção, que é bastante simples, seria simplesmente reduzir o comércio de animais silvestres e acabar com todos os mercados que comercializam esses animais”, diz Olival. “Reduzir o comércio de animais silvestres tem um efeito duplamente positivo: protege as espécies que são removidas da natureza e diminui a propagação de novos vírus.”

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