Como a Coreia do Sul evitou um desastre de saúde e por que a luta continua

O país conteve o coronovírus com várias medidas, entre elas a grande quantidade de testes. Mas o sucesso se manterá?

Por Mark Zastrow
Publicado 14 de mai. de 2020, 17:00 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Profissionais da saúde coletam amostras do nariz e da boca em uma clínica-ambulatório no Hospital H ...

Profissionais da saúde coletam amostras do nariz e da boca em uma clínica-ambulatório no Hospital H Plus Yangji em Seul, em 14 de abril de 2020. A coleta dura menos de um minuto. A clínica-ambulatório é montada como cabines telefônicas para impedir o contato entre pacientes e a equipe médica. Desde a abertura, em 10 de março, o hospital examinou 2,7 mil pacientes e identificou quatro casos confirmados em 22 de abril. O resultado do teste fica pronto entre quatro e seis horas.

Foto de Jun Michael Park, National Geographic

Seul, Coreia do Sul | O centro de testes para covid-19 no Hospital H Plus Yangji, no sul de Seul, não parece ser grande coisa visto do lado de fora. Com a aparência de uma casa móvel, a construção temporária está localizada em um estacionamento próximo a uma rampa de carregamento, sustentada em uma extremidade por uma tábua de madeira. As paredes são vermelhas e brancas e um grande painel anuncia que o hospital foi considerado um dos 100 melhores da República da Coreia.

Mas, no interior, há uma reluzente estrutura de quatro cabines com paredes de plástico transparente; luvas de borracha incorporadas nas paredes fazem o local parecer um laboratório de biossegurança de alta qualidade. Ao entrar em uma cabine, o paciente conversa por meio de um interfone com o médico que permanece do lado de fora. O médico coleta amostras do nariz e da garganta utilizando as luvas sem ter nenhum tipo de contato com o paciente. As cabines mantêm a pressão do ar negativa, o que suga as gotículas contaminadas com o vírus. Após o exame, um membro da equipe devidamente paramentado com roupas de proteção desinfeta a cabine, esfregando as paredes com um rodo.

Quem chega do exterior deve obrigatoriamente realizar o teste para a covid-19 no Centro Médico do Distrito de Eunpyeong, em Seul, Coreia do Sul. Esses centros médicos comunitários são a linha de frente dos testes e da detecção na luta da Coreia do Sul contra o coronavírus.

Foto de Jun Michael Park, National Geographic

Centenas de cabines de teste semelhantes a essa, instaladas em todo o país, foram um dos pilares da estratégia altamente bem-sucedida da Coreia do Sul para conter a covid-19, o que ajudou as autoridades a realizar exames de diagnóstico de forma rápida e abrangente.

O país de 51 milhões de habitantes também adotou uma abordagem de big data para rastreamento de contatos, utilizando históricos de cartões de crédito e dados de localização enviados pelas operadoras de telefonia celular para acompanhar o deslocamento de pessoas infectadas. Pesquisas mostram que a maioria dos cidadãos coreanos concorda em sacrificar sua privacidade digital no combate ao surto. Ao mesmo tempo, as autoridades promoveram uma intensa campanha de distanciamento social voluntário, mesmo que a maioria dos bares, restaurantes e cinemas estivessem autorizados a abrir.

Mas o tormento do vírus está longe de terminar na Coreia do Sul – um surto recente, cuja origem indica diversas casas noturnas, foi notificado com 102 casos em 12 de maio. Apesar desse fato, a resposta do país poderia servir de modelo para o restante do mundo, apesar de não ter sido fácil atingir esse nível de sucesso rápido diante de uma pandemia.

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    Jo An-na, 35 anos, e Seong Geum-ran, 33 anos, colocam os equipamentos de proteção de Nível C no posto de enfermagem da UTI no Hospital Nacional em Seul, Coreia do Sul, em 14 de abril de 2020.

    Foto de Jun Michael Park, National Geographic

    As enfermeiras do Centro Médico de Seul raramente deixam de observar os monitores da ala de isolamento, até mesmo enquanto comem, em 3 de abril de 2020.

    Foto de Jun Michael Park, National Geographic

    Lições do passado

    Um fator importante que contribuiu para a resposta da Coreia do Sul foi sua capacidade de aplicar as lições aprendidas em surtos anteriores, especialmente com o surto do coronavírus Mers de 2015, que teve 186 casos e 38 mortes.

    Logo após o surto, o Congresso da Coreia do Sul criou uma base jurídica para uma estratégia abrangente de rastreamento de contatos – na qual qualquer pessoa que tenha interagido com uma pessoa infectada é rastreada e colocada em quarentena. As emendas autorizaram explicitamente as autoridades de saúde a solicitar o histórico de transações dos pacientes às operadoras de cartão de crédito e os dados de localização das operadoras de telefonia celular – e também a liberar a reconstituição do deslocamento na forma de “registros de percursos” anônimos, para que as pessoas saibam os horários e locais onde podem ter ficado expostas ao vírus.

    Com as amplas medidas de rastreamento e testagem de contatos, foi possível reduzir o aumento precoce de casos que poderiam ficar descontrolados – centenas foram relatados a cada dia, chegando a 909 casos em 29 de fevereiro, a maioria associada a uma seita religiosa na cidade de Daegu. A estratégia também conseguiu eliminar diversos focos de coronavírus que surgiram posteriormente em igrejas, cybercafés e em uma central de atendimento telefônico. Em 15 de abril, a Coreia do Sul teve eleição nacional com a participação de 29 milhões de pessoas. Os eleitores usaram máscaras e luvas; nos locais de votação, foi medida a temperatura de todos e as pessoas que apresentavam febre eram separadas. Não foi rastreado nenhum caso que tivesse sido originado nas eleições.

    Técnico de laboratório separa os reagentes na TCM Biosciences, empresa desenvolvedora de kits de teste da covid-19 em Pagyo, em 22 de abril de 2020. Testes em massa, rastreamento de contatos e quarentenas foram fundamentais para o sucesso da Coreia do Sul na luta contra o coronavírus. As amostras são analisadas por meio de PCR em tempo real e os resultados dos testes ficam prontos entre quatro e seis horas.

    Foto de Jun Michael Park, National Geographic

    Embora pessoas de outros países considerem a coleta de dados da Coreia uma violação de privacidade do paciente, os sul-coreanos apoiam amplamente as medidas. Em uma pesquisa realizada em 4 de março pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade Nacional de Seul, 78% dos mil entrevistados concordavam que a proteção dos direitos humanos deveria ser flexibilizada para fortalecer os esforços de contenção do vírus. A experiência com surtos passados também agilizou o isolamento social e o uso de máscaras em público antes mesmo do governo começar a emitir orientações formais.

    Para a Coreia do Sul, foi imprescindível a intensificação de sua capacidade de teste de diagnóstico após o surto de Mers em 2015. Diferentemente dos Estados Unidos, que dependiam dos kits de teste desenvolvidos por seus Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) em Atlanta, a Coreia do Sul envolveu o setor privado. Em uma reunião no fim de janeiro, as autoridades solicitaram às empresas locais de biotecnologia o desenvolvimento de kits de teste. Dentro de um mês, o país já realizava mais de 10 mil testes por dia.

    Uma recente expansão no segmento de biotecnologia da Coreia do Sul, que antecedeu a pandemia, contribuiu, explica Thomas Shin, CEO da TCM Biosciences, empresa localizada em Pangyo, na região sul de Seul. “Nos últimos cinco anos surgiram diversas novas empresas de biociência”, diz Shin. A TCM foi uma das empresas que atendeu à solicitação do governo para o desenvolvimento de kits e recebeu aprovação do Ministério da Segurança de Alimentos e Medicamentos do país em abril.

    Shin explica que a decisão não foi necessariamente fácil do ponto de vista comercial – é difícil prever novas doenças e, se forem eliminadas rapidamente, pode ser difícil recuperar as despesas do desenvolvimento inicial. Mas, devido à estreita relação entre a Coreia do Sul e o epicentro do surto na China, Shin diz que a TCM observa uma situação semelhante se desenrolando rapidamente no âmbito doméstico — e projetou uma oportunidade comercial no mercado global. Até agora, a empresa já exportou cerca de US$ 2,6 milhões (R$ 15 mi) em testes.

    Seguindo a recomendação do governo sul-coreano, instituições públicas e privadas realizaram provas respeitando o distanciamento social. No sábado, 25 de abril, a Associação de Seguros de Vida da Coreia e a Associação Geral de Seguros da Coreia realizaram uma prova de qualificação para agentes de vendas de seguros no exterior. Nesse dia estava ventando, mas mais de 18 mil pessoas realizaram a prova na Coreia. Os participantes da prova ficaram felizes que os exames foram retomados após um hiato de mais de dois meses.

    Foto de Jun Michael Park, National Geographic

    No auge do surto de covid-19 na Coreia do Sul, o governo desaconselhou qualquer tipo de evento religioso. Como o número diário de novas infecções no país ficou abaixo de 12, as restrições de distanciamento social foram gradualmente flexibilizadas. Em 23 de abril, uma semana antes do aniversário de Buda, um grande número de devotos budistas se reuniu no templo Jogyesa, no centro de Seul.

    Foto de Jun Michael Park, National Geographic

    Moradores fazem fila para tirar fotos em frente a um jardim de tulipas no Parque Florestal de Seul no domingo, 26 de abril. As restrições de distanciamento social foram flexibilizadas e a vida parece estar voltando ao normal. O uso de máscaras e a lavagem frequente das mãos se tornaram as novas normas.

    Foto de Jun Michael Park, National Geographic

    Em 30 de abril, o país notificou apenas quatro casos, todos eles envolvendo pessoas que vieram do exterior, marcando o primeiro dia sem nenhum caso de infecção local em dois meses e meio. Com a queda constante no número de casos, o governo flexibilizou cautelosamente suas medidas de restrição, ao passo que sinalizou a adoção de determinações de “quarentena cotidiana”, como o uso de máscaras e verificações de temperatura nas escolas.

    As pessoas também começaram a ficar mais descuidadas, o que preocupa as autoridades em relação à complacência e à uma segunda onda de infecções. O surto que ocorreu nas casas noturnas preocupou ainda mais, mas o governo já respondeu rigidamente, rastreando e testando milhares de pessoas em poucos dias.

    A reta final é a parte mais difícil

    Embora as empresas de testes tenham respondido rapidamente à demanda, a fabricação dos kits apresentou problemas. Até fevereiro, a demanda por testes ainda superava a oferta e havia kits suficientes para apenas um número restrito de hospitais.

    Além disso, os hospitais enfrentavam dificuldades em realizar, com segurança e rapidez, os testes em pacientes provavelmente infectados – as áreas de teste precisavam ser higienizadas após cada paciente, as longas filas poderiam facilitar a transmissão do vírus e havia poucos equipamentos de proteção para os profissionais da saúde. No hospital Yangji, isso também exauriu os funcionários, conta o diretor do hospital Sang Il Kim.

    “Mesmo quando tínhamos kits, o tempo de espera para testar todos era tão longo que as pessoas tinham que se dirigir a outros hospitais”, acrescenta Yoona Chung, médica do departamento cirúrgico do hospital.

    Segundo os dados de Yangji, o hospital realizou cerca de 10 testes por dia no fim de fevereiro – mas muitos outros não eram realizados devido à espera. Outros hospitais na Coreia passaram a adotar centros de testes no estilo drive-thru, realizando exames em pacientes sem que saíssem de seus carros. Mas o hospital Yangji fica próximo de uma estação de metrô em um bairro movimentado na região sul de Seul, e, para muitos pacientes, o carro não era uma opção.

    Então, Kim criou as cabines de teste, iniciando uma operação piloto em 10 de março. Em pouco tempo, o número de testes realizados em um dia triplicou. Até o fim do mês, o hospital já estava atendendo mais de 90 pacientes por dia. Hospitais em outras regiões da Coreia e em todo o mundo rapidamente adotaram suas próprias variações do conceito. Um hospital em Busan teve uma ideia semelhante e a desenvolveu de forma independente, mas outros receberam a ajuda de Kim.

    Restaurante que serve churrasco coreano em Seul lotado de frequentadores no domingo, 26 de abril. Eles estão se divertindo após dois meses de quarentena voluntária e distanciamento social.

    Foto de Jun Michael Park, National Geographic

    A administração do Hospital Geral de Massachusetts, em Boston, viu reportagens sobre as cabines de Yangji e solicitou à equipe interna a criação de uma versão, na esperança de oferecer maior proteção aos profissionais da saúde e conservar equipamentos de proteção preciosos. Após uma rápida pesquisa na Internet e dois telefonemas, a equipe do hospital conectou Nour a Kim por e-mail.

    “Lembro que já era 22h, todos estávamos frustrados, sem dormir, tentando descobrir como fazer o projeto dar certo”, conta Nour Al-Sultan, analista de estratégia comercial do MGH Springboard Studio, equipe de pesquisadores e desenvolvedores encarregados da engenharia reversa das cabines. “Fui dormir e quando acordei na manhã seguinte, o Dr. Kim havia respondido todas as minhas perguntas.”

    Até o momento a MGH instalou cerca de oito cabines em três hospitais na região de Boston. Segundo dados preliminares, foi possível reduzir em 96% a necessidade de roupas de proteção, que estão escassas, economizando mais de 500 equipamentos por semana. A equipe do MGH agora auxilia colegas de Uganda no desenvolvimento de versões próprias das cabines.

    “O fato de ele ter dedicado seu tempo para compartilhar comigo as ideias de forma tão generosa é apenas uma das demonstrações desse espírito de colaboração global contra a pandemia”, diz Al-Sultan.

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