Por que o surto de coronavírus na África do Sul pode ser catalisador de uma transformação

A longa experiência do país no combate ao HIV e à tuberculose tem pontos positivos e negativos em sua batalha contra a covid-19.

Por Linda Nordling
Publicado 22 de jun. de 2020, 11:24 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT
Homem é testado para o novo coronavírus, que causa a covid-19, em Vrededorp, Joanesburgo, em 5 ...

Homem é testado para o novo coronavírus, que causa a covid-19, em Vrededorp, Joanesburgo, em 5 de junho de 2020. A África do Sul informou em 4 de junho de 2020 que havia registrado 3.267 novos casos de coronavírus em 24 horas, o maior salto desde o início da pandemia no país.

Foto de Marco Longari, AFP/Getty Images

CIDADE DO CABO, ÁFRICA DO SUL A linha dos três pontos na quadra de basquete e as arquibancadas são os primeiros sinais de que o Hospital de Campanha Khayelitsha é diferente. No local onde funcionava um pavilhão esportivo comunitário, agora estão cerca de 60 leitos hospitalares enfileirados na quadra central. As camisas esportivas foram trocadas por máscaras faciais, protetores visuais e jalecos verdes, itens utilizados pela equipe médica para atender pacientes com covid-19.

O hospital fica em um emaranhado de barracos e casas baixas na periferia da segunda maior cidade da África do Sul. Nesse lugar, as condições de moradia em áreas com grande população e falta de saneamento dificultam a lavagem das mãos e o distanciamento social. A renda de subsistência foi imediatamente afetada com as medidas de bloqueio.

Ministro Nacional da Saúde, Dr. Zweli Mkhize, visita o Centro Multifuncional Thusong em Khayelitsha, que servirá como centro de tratamento da covid-19, imagem de 1º de junho de 2020 na Cidade do Cabo, África do Sul. A cidade designou diversos locais que serão transformados em hospitais de campanha, locais para isolamento e quarentena.

Foto de Jaco Marais, Die Burger/Gallo Images/Getty Images

Isso ocorre principalmente na comunidade de Khayelitsha, foco do coronavírus que também tem grande prevalência de tuberculose (TB) na área metropolitana da Cidade do Cabo; em 2015, um terço das gestantes da cidade eram HIV positivas.

“As pessoas que já passavam por dificuldades antes, agora estão em risco”, diz Claire Keene, coordenadora médica do Khayelitsha para a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), que administra o hospital de campanha em parceria com as autoridades de saúde locais.

A epidemia de covid-19 na África do Sul resistiu a algumas das tendências observadas em outros países. As medidas de bloqueio implementadas antecipadamente, três semanas após a confirmação do primeiro caso, em 5 de março, parecem ter poupado o país do aumento exponencial observado na Itália e na Espanha. Mas o país não conseguiu impedir a disseminação, como a Coréia do Sul e a Nova Zelândia. A previsão dos modelos da doença é de que entre 40 mil e 48 mil sul-africanos serão vítimas fatais da covid-19 até o fim deste ano.

Agora, com o país flexibilizando as restrições, permitindo assim que seus cidadãos sem renda possam trabalhar para se sustentar, a África do Sul está se preparando para uma onda de infecções. As redes de assistência médica projetadas para combater as epidemias mais devastadoras do mundo — HIV e TB — estão sendo integradas à resposta à covid-19. O governo disponibilizou mais de 28 mil agentes comunitários de saúde para realizar triagens para detecção do coronavírus em áreas pobres, e as equipes anteriormente dedicadas ao rastreamento de contatos de pacientes com tuberculose foram convocadas para trabalhar na pandemia.

No entanto, muitos temem que a transferência desses recursos possa desfazer parte do progresso conquistado com muito esforço contra o HIV e a TB. Dados nacionais mostram que, durante o bloqueio, o número de testes de tuberculose realizados foi reduzido pela metade, pois as pessoas não podiam ou não queriam ir às clínicas por medo de contrair o coronavírus. Segundo diversos profissionais de saúde, o bloqueio provocou uma queda no acesso dos pacientes aos tratamentos contra TB e HIV, e uma pesquisa nacional abrangente conduzida pelo Conselho de Pesquisa em Ciências Humanas do país constatou que, durante os bloqueios para a contenção da covid-19, 13% dos pacientes tiveram dificuldades para obter medicamentos de uso contínuo.

“Levaremos anos para recuperar o que perdemos nos últimos meses”, diz Gavin Churchyard, CEO do Aurum Institute, organização sem fins lucrativos de pesquisa e saúde com sede em Joanesburgo.

Intersecção de epidemias

O Hospital de Campanha Khayelitsha é uma das diversas instalações temporárias construídas para atender pacientes com covid-19 na Cidade do Cabo, que — com dois terços dos mais de 50 mil casos de coronavírus do país — é o atual epicentro da epidemia na África do Sul. Os hospitais de campanha da Cidade do Cabo planejam disponibilizar juntos 1,4 mil leitos até o fim deste mês — mas projeções mostram que a cidade ainda pode ficar sem leitos quando o pico chegar em julho.

Os moradores de Khayelitsha enfrentam inúmeros desafios, desde insegurança alimentar e desemprego até violência de gênero e abuso de drogas. Embora qualquer um desses desafios possa levar as pessoas à pobreza ou fazer com que abandonem os cuidados prolongados com HIV ou TB, a covid-19 “agravará ainda mais tudo isso”, diz Keene.

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    Uma foto tirada em 4 de maio de 2019 mostra moradias informais em Khayelitsha, Cidade do Cabo, África do Sul.

    Foto de Rodger Bosch, AFP/Getty Images

    Outro desafio é o estigma que acompanha o diagnóstico da covid-19. Quando os primeiros pacientes com coronavírus foram identificados na África do Sul em março, muitos dos cerca de meio milhão de habitantes de Khayelitsha não se preocuparam com uma doença que, na opinião deles, acometia apenas os viajantes ricos. Quando o vírus chegou às moradias informais, aqueles que recebiam diagnóstico positivo eram segregados e agora as pessoas estão assustadas, conta Nompumelelo Zokufa, gerente de suporte a pacientes da MSF. “Eles têm medo de receberem diagnóstico positivo e serem estigmatizados, ou de não se curarem”, diz ela.

    Ninguém sabe como o novo coronavírus se comportará em lugares como Khayelitsha. Na maioria das vezes, os padrões de morte por covid-19 na África do Sul refletem os mesmos observados em outras partes do mundo: os idosos são os mais afetados, assim como as pessoas com condições pré-existentes, como diabetes. Mas pouco se sabe sobre como será a interação entre HIV, tuberculose e covid-19. Isso torna Khayelitsha e comunidades semelhantes importantes núcleos para melhor compreensão desse trio de pandemias.

    Em 9 de junho, o governo local da Cidade do Cabo publicou os primeiros dados sobre as condições pré-existentes que influenciam as mortes por coronavírus. O estudo mostrou que portadores de HIV ou TB ativa têm duas vezes mais chances de morrer por covid-19 do que pessoas que não apresentam essas condições. As taxas de mortalidade por covid-19 estão relacionadas principalmente a doenças como diabetes, hipertensão ou doença renal — tendências semelhantes às observadas na China e nos Estados Unidos. Mas ainda existem muitas questões, incluindo por que pacientes que tomam antirretrovirais para tratamento de HIV têm a mesma probabilidade de morrer que pessoas soropositivas que não fazem uso desses medicamentos, um efeito que vai contra o que os cientistas esperavam.

    A MSF começou a experimentar uma triagem combinada para detecção de tuberculose e covid-19 em algumas de suas regiões de atuação na África do Sul. Testes de HIV que podem ser autoadministrados foram disponibilizados nos locais de triagem da covid-19, com isso a organização espera atingir pessoas que podem não ter entrado em seus programas padrão de HIV.

    Amigos e familiares sentados na frente de casa em uma noite de sábado para se aquecer em Thokoza, distrito próximo de Joanesburgo, África do Sul, em 11 de abril de 2020.

    Foto de Lindokuhle Sobekwa, Magnum Photos

    À medida que a batalha contra o coronavírus no país se intensifica, essas propostas bem-intencionadas podem acabar ficando em segundo plano. A resposta contra a covid-19 da África do Sul já está demonstrando problemas. Os laboratórios públicos do país estão com dificuldades para acompanhar a demanda de testes e, no início de junho, havia um estoque de 100 mil testes em todo o país. Os pacientes aguardaram até duas semanas pelos resultados, um atraso que restringiu gravemente a capacidade do país de se antecipar à epidemia com o rastreamento e teste de contatos de casos conhecidos, que dobram a cada 13 dias.

    “Se os testes não ficam prontos no mesmo dia, nada do que for feito importará”, diz Churchyard, em Joanesburgo. “Nós claramente freamos o aumento de casos, mas não conseguimos revertê-lo.”

    Um lado bom?

    Os lugares mais vulneráveis podem oferecer as melhores oportunidades para estudar a covid-19 na África do Sul e encontrar soluções abrangentes. Por duas décadas, pesquisadores de Durban reuniram dados de saúde de moradores do distrito rural de uMkhanyakude, na costa leste da África do Sul. Nos 18 meses que antecederam o surto de covid-19, eles foram além, coletando uma quantidade sem precedentes de dados de saúde, incluindo radiografias de tórax e amostras biológicas de mais de 17 mil moradores.

    Se a covid-19 chegar a uMkhanyakude, esse projeto de pesquisa poderia ser capaz de esclarecer os fatores genéticos das doenças e demonstrar como doenças infecciosas como a tuberculose e a covid-19 interagem com condições pré-existentes, como a diabetes, explica Emily Wong, do Africa Health Research Institute (AHRI), uma das cientistas que lidera o projeto. Contudo ela espera que essa oportunidade não se concretize.

    A capacidade de assistência à saúde das áreas rurais da África do Sul está muito defasada em relação às regiões metropolitanas, onde a maioria das infecções por covid-19 foi registrada até o momento. A falta de recursos hospitalares, combinada ao fato de as pessoas idosas chefiarem muitos desses lares na zona rural, significa que “será um verdadeiro desastre de saúde pública se a covid-19 chegar lá”, diz Wong.

    Mas a pandemia de coronavírus pode ter um lado bom para os pacientes portadores de TB e HIV. Antes do surto, uma vez ao mês, muitos passavam o dia inteiro na clínica em longas filas para obter seus medicamentos. Mas esses gargalos estão finalmente sendo solucionados porque a transmissão de covid-19 em hospitais é uma preocupação crescente.

    Suprimentos para meses estão sendo distribuídos em visitas únicas e os pacientes podem optar pela entrega em domicílio ou por retirar seus medicamentos em máquinas de venda automática. Dessa forma, a pandemia está impulsionando uma mudança muito necessária em relação à assistência médica centrada no paciente nos hospitais públicos da África do Sul, diz Regina Osih, especialista em HIV e TB do Aurum Institute em Joanesburgo.

    Durante anos, o setor público de saúde da África do Sul tentou integrar seus programas de HIV e TB, que tinham uma base de recursos razoável, mas que funcionavam de forma independente, com os serviços gerais de saúde carentes de recursos. A crise do coronavírus pode ser um catalisador para essa transformação, diz Wong. “Vemos a resposta à covid como uma chance de acelerar esses processos”.

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