Por que, apesar da pandemia, algumas pessoas não resistem às aglomerações?

A evolução é a culpada pela nossa compulsão por socializar apesar do risco da covid-19.

Por Rebecca Renner
Publicado 5 de jul. de 2020, 08:00 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT
Clientes em mesas ao ar livre em ambos os lados da Newton Lane, em East Hampton, ...

Clientes em mesas ao ar livre em ambos os lados da Newton Lane, em East Hampton, Nova York, em 13 de junho de 2020.

Foto de Karsten Moran, T​he New York Times, via Redux

A CAMINHO de um protesto pelo movimento Vidas Negras Importam no início de junho em Milwaukee, estado de Wisconsin, nos Estados Unidos, Jodyann e sua noiva passaram por diversas mesas cheias de clientes em cafés ao ar livre. Apesar das ordens de confinamento, as ruas de Milwaukee estavam repletas de pessoas que desfrutavam calmamente de sua refeição e de manifestantes que queriam fazer com que suas vozes fossem ouvidas contra a brutalidade policial. Todos estavam arriscando sua saúde expondo-se a outras pessoas.

“Por si só, a situação da pandemia faz com que você não queira ficar em um espaço com milhares de outras pessoas”, diz Jodyann, mulher negra que participou de vários protestos este ano. Para Jodyann e muitos outros manifestantes, vale a pena arriscar-se para fazer a diferença na sociedade. Mas, com a pandemia da covid-19 ainda dominando o mundo e dezenas de milhares de novos casos surgindo todos os dias, a escolha de protestar, jantar fora ou participar de outras reuniões sociais é complicada. Embora algumas dessas decisões sejam influenciadas pelo fato de acreditarmos que a doença não irá nos atingir, mesmo as pessoas que reconhecem o perigo de contrair o coronavírus continuam arriscando-se em interações sociais. O culpado disso pode ser um paradoxo evolutivo que nos obriga a ser sociáveis.

Milhões de anos atrás, nossos ancestrais primatas encontraram segurança na cooperação, desenvolvendo estruturas sociais que os protegiam dos predadores e aumentavam a probabilidade de sobrevivência para eles e seus filhos. À medida que as primeiras comunidades de primatas ficavam mais complexas, o cérebro de nossos antepassados também evoluiu e desenvolveu mecanismos para processar interações e recompensar o comportamento social com ciclos de feedback neuroquímico positivo.

A interação social foi tão importante para a sobrevivência de nossos ancestrais desde a época do Plioceno, há milhões de anos, que o cérebro humano pode estar programado para se tornar viciado nela. Superar o desejo primordial de socializar significa ir contra milênios de programação evolutiva.

“Somos intensamente sociais, assim como todos os macacos e símios”, diz Robin Dunbar, antropólogo evolucionista da Universidade de Oxford. “Dependemos da cooperação em grupo para resolver os problemas da sobrevivência cotidiana e da reprodução bem-sucedida. Essa é a adaptação dos primatas, acima de tudo.”

Durante a pandemia, o coronavírus se aproveitou da nossa dependência por interações sociais para propagar a doença. Mas mesmo considerando esse ímpeto evolutivo, há uma possível solução para facilitar o distanciamento social: conforme os primatas evoluíam para se tornarem humanos, também desenvolveram uma propensão ao altruísmo e à proteção mútua.

Como os humanos viraram seres sociáveis

Cerca de 52 milhões de anos atrás, já sem a presença de grandes dinossauros predadores dominando o ambiente, nossos ancestrais primatas noturnos começaram a aparecer durante o dia. No entanto predadores de mamíferos, como o Mesonyx — um carnívoro parecido com um tigre, — ficavam à espreita. Desta forma, os primatas solitários encontraram segurança na união e começaram a se reunir para formar grupos sociais e ficarem a salvo.

Com o passar do tempo, nossos primeiros ancestrais se tornaram mais sociais, não apenas procurando alimento ou caçando juntos, como também afagando os pelos uns dos outros em busca de parasitas (comportamento conhecido como catação) e, às vezes, criando filhos em comunidade. Os primatas que não praticavam esses comportamentos sociais ficavam de fora da proteção de suas comunidades e poucos viveram o suficiente para transmitir seus genes. Quando um comportamento como esse aumenta as chances de sobrevivência de um animal, esse comportamento pode se tornar uma característica herdada e, após muitas gerações, a prole o praticará instintivamente, caso contrário, perecerá.

Os comportamentos sociais fortaleciam as comunidades de primatas e ofereciam proteção a membros individuais do grupo, então eram transmitidos aos descendentes e gradualmente se consolidaram no código genético dos primatas. Os humanos modernos ainda mantêm muitos desses comportamentos.

O carinho é um deles e tem aquilo que Dunbar chama de alto custo temporal, já que os primatas dedicam algumas horas por dia a esse comportamento. A compensação é que os primatas passam um tempo afagando e limpando os pelos uns dos outros para demonstrar seu investimento no grupo, o que reforça seus vínculos e hierarquia social. Quanto mais estreito o vínculo, mais benefícios para a sobrevivência individual. Os chimpanzés, por exemplo, têm maior probabilidade de compartilhar alimentos com seus companheiros de catação. A evolução reforçou esses hábitos, tornando-os uma sensação agradável. Afagar os pelos estimula a liberação de endorfinas, compostos neuroquímicos que reduzem a dor ou nos fazem sentir relaxados ou levemente energizados.

Os humanos modernos têm nervos especializados — chamados  neurônios aferentes ou sensoriais — que respondem a carinhos suaves e lentos, na velocidade específica que nossos ancestrais primatas empregavam nas atividades de catação. O comportamento permanece como um vestígio em nossos pequenos gestos, como quando as mães acariciam o cabelo de seus bebês.

 “Obviamente, já não temos tanto pelo para que outras pessoas os afaguem como fazem os primatas”, diz Dunbar. “Então, adaptamos comportamentos de afago e carinho para produzirem o mesmo efeito.”

Conforme o cérebro de nossos ancestrais crescia, os grupos aumentavam de tamanho e as sociedades evoluíam, mas os indivíduos não tinham mais o tempo necessário para afagar todos em seu círculo social. Portanto, desenvolveram novos comportamentos sociais que também desencadeiam endorfinas, permitindo que estabelecessem vínculos com grupos maiores. Esses comportamentos incluem risos, canto e dança, alimentação em grupo e, na história mais recente, rituais de religião e consumo de álcool em conjunto, de acordo com a pesquisa de Dunbar.

As endorfinas produzidas pelos nossos comportamentos sociais estão quimicamente relacionadas à morfina, por isso é possível ficar viciado nelas. Gostamos de dar risadas e jantar com os amigos porque isso ativa as vias de recompensa do cérebro e nos faz querer mais. Mas o sistema de endorfinas não atua sozinho.

“Qualquer coisa que ative o sistema de endorfinas também ativa o sistema de dopaminas”, diz Dunbar sobre a via de recompensa do cérebro que influencia a motivação, o controle motor e uma série de outras funções neurológicas. “A dopamina nos traz uma onda de entusiasmo e isso se torna viciante até certo ponto.” Em outras palavras, é possível que algumas pessoas que continuam saindo para socializar apesar da ameaça da pandemia sejam viciadas nas recompensas psicológicas e neuroquímicas obtidas com o comportamento social.

Compartilhar é sinônimo de cuidar

Outro fator problemático é o ímpeto humano básico de compartilhar recursos e experiências, diz Michael Tomasello, psicólogo evolucionista e professor da Universidade Duke em Durham, na Carolina do Norte, Estados Unidos. “Até mesmo as crianças pequenas apontam para um pássaro em uma árvore para que outra pessoa olhe, mesmo antes de conseguirem falar”, diz ele. “Temos uma necessidade de compartilhar nossas experiências.”

Esse desejo é proveniente dos benefícios evolutivos da cooperação, colaboração e, por fim, cultura. Estudos sobre técnicas usadas pelos chimpanzés para buscar alimentos sugerem que o último ancestral comum dos humanos com outros primatas forrageava cooperativamente, de acordo com um artigo de Tomasello de 2014. Posteriormente, os humanos deram um passo adiante com sua boa vontade de compartilhar as sobras com os membros do grupo que não haviam participado de uma busca por alimentos ou caçada.

Alguns pesquisadores, incluindo Tomasello e a primatóloga da Universidade Estadual do Arizona Joan Silk, acreditam que os humanos são muito mais altruístas do que nossos parentes primatas. Nas sociedades humanas, compartilhamos alimentos e dividimos o trabalho, mesmo quando isso não nos beneficia imediatamente. Somos motivados pela empatia. Essa mudança de comportamento pode ter sido suscitada por mudanças ecológicas e ambientais que tornaram os alimentos mais escassos. “Era colaborar ou morrer”, escreveu Tomasello em seu artigo.

No entanto a generosidade humana tem seus limites, e é mais provável que ajamos de maneira altruísta com outras pessoas se tivermos uma conexão social ou cultural com elas, principalmente se acharmos que algum dia elas possam retribuir, de acordo com um artigo de Silk e do psicólogo evolucionista Bailey House.

À medida que a competição com outros grupos de humanos aumentava, nossos ancestrais primitivos começaram a compartilhar seletivamente conhecimentos que poderiam protegê-los de predadores ou forasteiros. Desenvolveram a capacidade de criar metas conjuntas e, ao trabalharem juntos, tornaram-se dependentes entre si para sobreviverem.

“Se estamos caçando antílopes e aponto para uma vara que daria uma ótima lança, e já fizemos isso juntos antes, você entende o que quero dizer”, explica Tomasello. “Você a pega e seguimos em frente.” Ele acredita que esse conhecimento compartilhado, enraizado nas experiências comunitárias, seja a origem da cultura humana.

Matando a sede de socializar

Para os humanos modernos, deixar de lado essas atividades gratificantes de interação social e experiências compartilhadas significa ir contra nossos impulsos mais primitivos. Mas não é impossível.

Tomasello sugere que as redes sociais, por exemplo, são uma saída importante para a nossa necessidade de compartilhar. Embora conectar-se no mundo digital não seja o mesmo que se envolver pessoalmente — não é possível abraçar alguém on-line para obter as endorfinas produzidas por esse tipo de carinho — podemos usar as redes sociais para explorar as mesmas vias de recompensa que ajudaram a consolidar os vínculos sociais de nossos ancestrais. Reunir-se digitalmente e em tempo real para fofocar, brincar e “dividir” uma refeição durante uma chamada de vídeo ativará as mesmas vias de endorfina que uma noitada com os amigos. Mas cuidado para não exagerar e marcar muitos encontros digitais, pois isso pode provocar desgaste.

Dunbar afirma que o verdadeiro obstáculo é superar o vício psicológico em um comportamento, como abandonar o hábito de sair, mas que também é viável. Embora as redes sociais possam fortalecer os vínculos que já temos, também podemos usar os espaços on-line para ir além de nossos pequenos grupos familiares e sociais, participando de conversas globais em plataformas de rede social como o Twitter e o TikTok.

Conectar-se com pessoas fora de nosso círculo habitual é essencial neste momento de crise porque nos ajudará a criar vínculos com pessoas que são diferentes de nós, diz Dunbar. Quando criamos esses vínculos, obtemos ferramentas para agir de maneira altruísta porque nossos cérebros primitivos não responderão a novos amigos como pessoas estranhas, mas como semelhantes. E, talvez, desenvolver esse tipo de empatia possa nos ajudar a ir contra nossos impulsos evolutivos, o que facilitaria muito na hora de tomar a decisão de proteger outras pessoas.

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