Como os cientistas sabem que a covid-19 é muito mais fatal que a gripe

Após meses de estudo, os cientistas adquirem maior entendimento sobre a letalidade do coronavírus — o que torna os casos recentes ainda mais alarmantes.

Por Carrie Arnold
Publicado 6 de jul. de 2020, 12:51 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT
Um homem que faleceu em decorrência do coronavírus envolto em um saco mortuário na unidade de ...

Um homem que faleceu em decorrência do coronavírus envolto em um saco mortuário na unidade de terapia intensiva para tratamento da covid-19 no United Memorial Medical Center em Houston, Texas, Estados Unidos, em 29 de junho de 2020.

Foto de Callaghan O'Hare, Reuters

PARA JAMES SCOTT, as preocupações começaram no fim de maio. Cerca de um mês depois que o estado norte-americano do Texas começou a flexibilizar as restrições a comércios e reuniões públicas, Scott estava analisando um modelo desenvolvido por ele para prever as mortes por covid-19 por meio de dados de mobilidade de celulares. Enquanto observava o aumento exorbitante no número de pessoas que visitavam restaurantes, bares, academias e salas de espetáculos, sentiu que era apenas uma questão de tempo até que os casos no estado disparassem — e as mortes não demorariam muito para acontecer.

“Já dizia Bob Dylan em uma de suas canções: não é preciso ser meteorologista para saber a direção do vento”, diz Scott, que trabalha na Universidade do Texas em Austin, onde seu modelo está avaliando se alterações nos padrões de mobilidade podem prever a mortalidade por coronavírus .

O Texas é apenas um dos estados que apresentaram um pico nos casos de coronavírus nas últimas semanas após relaxar suas normas de distanciamento físico. No entanto os especialistas alertam que o coronavírus não perdeu sua potência mortal embora o número de mortos não tenha aumentado até o momento. Em primeiro lugar, a doença não é imediatamente fatal, e também há lentidão na notificação das fatalidades da pandemia devido à burocracia administrativa. As pessoas que estão morrendo hoje provavelmente foram infectadas entre três e quatro semanas atrás.

Além disso, no momento, os cientistas têm uma noção muito melhor de como mensurar a letalidade da covid-19, e os números são alarmantes. Utilizando um cálculo mais sofisticado denominado taxa de letalidade por infecção, combinado com os dados dos últimos meses, as estimativas aprimoradas e mais recentes mostram que a covid-19 é, em média, cerca de 50 a 100 vezes mais letal que a gripe sazonal.

Isso significa que os Estados Unidos e outros países que enfrentam aumento do número de casos precisam se preparar para um semestre com muitas mortes, caso as estratégias não mudem.

“Não precisamos fazer muitos cálculos para saber que 128 mil mortes são um número extremo de pessoas que perderam a vida”, diz o epidemiologista da Universidade de Wollongong e autodenominado nerd da área da saúde Gideon Meyerowitz-Katz, citando o número atual de mortes nos Estados Unidos.

Como mensurar a letalidade da covid-19

A pergunta é, o quanto a situação pode piorar?

No início do surto, muitas pessoas se baseavam no que é conhecido como taxa de letalidade — o número de mortes por covid-19 dividido pelo número de casos confirmados. Mas esse método tornou-se um pouco obsoleto, uma vez que ficou claro que muitas pessoas podem contrair o coronavírus e nunca apresentar sintomas, de modo que não estão sendo contabilizadas como casos confirmados.

Agora, depois de meses estudando os altos e baixos da pandemia em todo o mundo, os cientistas estão adotando uma métrica semelhante, porém mais abrangente: a taxa de letalidade por infecção. Essa ferramenta estatística utiliza dados sobre infecções conhecidas, incluindo as melhores estimativas para casos não diagnosticados e assintomáticos, para estabelecer a probabilidade de uma pessoa infectada morrer em virtude da doença. Esse tipo de cálculo é feito todos os anos para a gripe sazonal.

Os cientistas podem usar duas estratégias para estimar a taxa de letalidade por infecção, explica Meyerowitz-Katz. Podem estimar o número de infecções utilizando exames sorológicos, que testam se as pessoas desenvolveram anticorpos contra o coronavírus. Esses testes podem revelar se uma pessoa foi infectada, mesmo que não apresente sintomas. Ou, os pesquisadores podem usar métodos estatísticos para inferir o número total de infecções com base no que se sabe sobre o número de casos confirmados e as estimativas de infecções assintomáticas.

Uma equipe médica utilizando EPI completo leva um paciente morto de maca para um veículo fora ...

Uma equipe médica utilizando EPI completo leva um paciente morto de maca para um veículo fora da unidade de terapia intensiva de covid-19 no United Memorial Medical Center, no dia 30 de junho de 2020 em Houston, Texas. Os casos de covid-19 e suas consequentes hospitalizações aumentaram desde que o estado do Texas foi reaberto, causando a lotação total das alas de terapia intensiva e despertando preocupações sobre o aumento de mortes à medida que o vírus se propaga.

Foto de Go Nakamura, Getty Images

“Os exames sorológicos geralmente fornecem estimativas mais baixas das taxas de letalidade por infecção, e os modelos estatísticos tendem a ser mais altos”, afirma Meyerowitz-Katz.

Com o uso de um modelo estatístico, os epidemiologistas da Universidade de Colúmbia estimaram a taxa de letalidade por infecção na cidade de Nova York com base no grande surto de 1° de março a 16 de maio. Os resultados obtidos por eles, publicados on-line em uma pré-impressão não revisada por especialistas em 29 de junho, mostram que o coronavírus pode ser ainda mais fatal do que se pensava. De acordo com seus dados, a taxa de letalidade por infecção relativa à covid-19 é de 1,46%, ou o dobro das estimativas anteriores (e muito superior a uma taxa equivocada sendo amplamente compartilhada nas redes sociais). Esse risco varia conforme a idade, sendo que pessoas acima de 75 anos apresentam a maior taxa de letalidade por infecção, equivalente a 13,83%.

Em uma análise informal publicada na plataforma Medium, Meyerowitz-Katz comparou as taxas de letalidade por infecção referentes à influenza com várias outras calculadas em todo o mundo até agora para a covid-19. Assim como a covid-19, a gripe também apresenta um alto número de infecções leves e assintomáticas. Esses casos não são contabilizados na maioria dos cálculos de gravidade da influenza realizados pelos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, que baseiam-se nas hospitalizações. Em relação à gripe, médicos e hospitais estão menos preocupados com casos leves que não requerem tratamentos mais complexos.

Com base nos diversos estudos que calcularam as taxas de letalidade por infecção referentes à gripe sazonal, Meyerowitz-Katz determinou que entre uma a 10 pessoas aproximadamente morrem a cada 100 mil infectados. Para a covid-19, esse número varia entre 500 e mil mortes a cada 100 mil infecções. Pelos seus cálculos, o coronavírus é provavelmente 50 a 100 vezes mais letal que a gripe sazonal, o que corrobora as constatações da Universidade de Colúmbia.

De certo modo, esses números são acadêmicos, diz Meyerowitz-Katz. “Não significa que não saberíamos identificar uma situação extremamente ruim.” Mas ainda são valiosos para comunicar a situação a pessoas que têm dificuldades de seguir as regras de distanciamento social.

Atrasos burocráticos

Parte do problema em se comunicar a verdadeira taxa de letalidade é que as mortes por covid-19 foram especialmente difíceis de ser monitoradas em tempo hábil. Registrar que uma morte ocorreu e determinar sua causa são duas funções básicas da saúde pública. Mesmo em situações menos caóticas e de movimento mais lento sem os casos de covid-19, pode demorar vários dias para as autoridades estaduais receberem a notificação de uma morte. Os Estados encaminham seus respectivos dados ao Centro Nacional de Estatísticas de Saúde dos CDC, onde a morte e sua causa são registradas.

Devido à importância da pandemia de covid-19, os CDC incluíram mais uma etapa, na qual a agência utiliza trabalho humano em vez de computadores para verificar as informações no atestado de óbito antes de adicioná-las formalmente à sua contagem. Embora os CDC tenham acelerado bastante a execução dessa tarefa desde março, ainda estão demorando cerca de uma semana para registrar formalmente uma morte por coronavírus, diz Kirk Bol, gerente do Programa de Estatísticas Vitais da Secretaria de Saúde Pública e Meio Ambiente do Colorado.

Esse atraso burocrático se soma aos processos biológicos naturais da doença, diz Jennifer Nuzzo, epidemiologista no Johns Hopkins Center for Health Security. Se alguém está infectado com o coronavírus hoje, geralmente só começa a apresentar sintomas depois de quatro a cinco dias, em média, mas isso pode levar até duas semanas.

Uma análise dos CDC revelou que as dificuldades respiratórias graves se manifestavam cerca de cinco a oito dias após o início dos sintomas e a internação na UTI ocorria 10 a 12 dias após o adoecimento. Pacientes com covid-19 dos estados da Califórnia e Washington ficavam hospitalizados 12,7 dias, em média, antes de falecerem. Somando tudo, pode levar mais de um mês desde a infecção até a morte.

E os jovens e os impacientes?

Além disso, a idade pode influenciar o atraso no registro de mortes. Mais jovens abaixo de 35 anos estão sendo infectados agora em comparação com os últimos meses da pandemia, e é menos provável que esses indivíduos morram em comparação com os idosos. O que preocupa a epidemiologista da Universidade do Sul da Flórida Jill Roberts não é apenas o número crescente de infecções em jovens, mas também o fato de que eles provavelmente transmitirão o vírus a pessoas mais idosas e vulneráveis com quem têm contato.

Em uma pesquisa realizada em 19 de junho com 4.042 adultos, os CDC constataram que 43,1% das pessoas entre 18 e 29 anos disseram que se sentiriam seguras se as regras de distanciamento social fossem suspensas, em comparação com 19,2% das pessoas com mais de 65 anos. Roberts e Nuzzo também observam que os funcionários do setor hoteleiro são tradicionalmente mais jovens e, à medida que essas empresas reabrem, tais pessoas podem não conseguir mais ficar em isolamento.

“Nosso alvo são esses jovens. São eles que estão circulando. Eles que estão propagando a doença”, diz Roberts.

Embora as pessoas mais jovens continuem a ter menor risco de morte pelo coronavírus, muitos precisarão de hospitalização em um momento em que as instituições já estão sobrecarregadas com o atendimento a idosos. Em março, adultos com menos de 50 anos representavam um quarto de todas as hospitalizações nos Estados Unidos, mas essa parcela  aumentou em 10% desde o início de maio, quando começou a reabertura.

“Quanto mais pessoas precisam de leitos hospitalares, mais difícil fica prestar um atendimento de qualidade”, diz Nuzzo. “E todos os profissionais da saúde estão trabalhando sem descanso há muito tempo.”

Dessa forma, um novo pico nos centros médicos pode aumentar potencialmente as taxas de letalidade para todas as faixas etárias. De acordo com Scott da UT Austin, tudo isso significa que provavelmente é só uma questão de tempo até a taxa de mortalidade começar a subir de forma rápida.

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