Autópsias particulares aumentam durante a pandemia de covid-19

Mais norte-americanos estão tendo que arcar com o exame de parentes falecidos em parte devido à grande escassez de prestadores desse serviço na rede pública.

Por Carrie Arnold
fotos de Craig Cutler
Publicado 15 de set. de 2020, 07:00 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT
Recipientes exibem espécimes para autópsia em um laboratório particular. As autópsias podem ser essenciais para descobrir ...

Recipientes exibem espécimes para autópsia em um laboratório particular. As autópsias podem ser essenciais para descobrir a causa de morte de uma pessoa, algo que se tornou ainda mais importante durante a pandemia de covid-19.

Foto de Craig Cutler

O QUE TONY CALLOWAY mais queria era ter sua irmã de volta. Angela Calloway contraiu uma infecção respiratória e apresentava dificuldades para respirar quando os paramédicos chegaram a sua casa, na mesma rua onde Tony mora, em Lenoir, Carolina do Norte, em 30 de março. Contudo, assim que a mulher de 46 anos foi colocada na maca, ela teve uma parada cardíaca e não foi possível reanimá-la.

Tony não conseguiu salvar sua irmã, mas queria pelo menos ter algumas respostas.

Como Angela não morreu no hospital, seu caso ficou a cargo do médico legista do Condado de Caldwell. Tony presumiu que uma autópsia seria realizada, considerando que sua irmã era jovem e saudável, e que havia morrido repentinamente. Entretanto, devido ao fato de o teste de covid-19 de Angela ter dado negativo, o médico legista optou por encerrar o caso, apesar dos protestos de Tony e do médico de Angela. Então, Tony decidiu buscar uma autópsia particular que seria realizada por um patologista que atua na região.

“Não conseguíamos entender a razão de uma mulher saudável de 46 anos morrer tão rapidamente”, lamenta Tony. “Era como se ninguém se importasse.”

Vidal Herrera, proprietário da empresa 1-800-AUTOPSY, no leste de Los Angeles.

Vidal Herrera, proprietário da empresa 1-800-AUTOPSY, no leste de Los Angeles.

Foto de Craig Cutler, National Geographic

Antes da pandemia, o número de autópsias realizadas nos Estados Unidos já estava diminuindo. Agora, diretrizes para controle de infecção, aumento no número de casos e menos patologistas dispostos a realizar a tarefa geraram uma escassez de profissionais que realizam autópsias. Vidal Herrera, proprietário da empresa 1-800-AUTOPSY no leste de Los Angeles, diz que funcionários públicos, como médicos peritos e médicos legistas, podem ficar tão sobrecarregados com o número de mortes causadas pela covid-19 que às vezes não atestam a morte como relacionada à doença, afirmando ser uma “causa previsível de morte” em vez de solicitar uma autópsia.

“As autópsias são consideradas um procedimento inútil, sem serventia, e os profissionais acreditam ser possível determinar a causa da morte sem precisar realizar o procedimento”, diz Mary Fowkes, diretora de neuropatologia e serviço de autópsia na Faculdade de Medicina em Mt. Sinai, na cidade de Nova York. “Isso com certeza não é verdade.”

Como resultado da escassez, empresas privadas que realizam autópsias nos Estados Unidos viram a demanda aumentar devido à procura pelo serviço por famílias como as de Tony Calloway, que desejam obter respostas sobre seus entes queridos. Herrera conta que está trabalhando muito mais agora do que em qualquer outro momento desde que abriu sua empresa há 32 anos. Ele diz que sua vasta experiência confirma a eficácia da autópsia em compreender como o corpo humano funciona e os motivos pelos quais ele acaba falhando.

O surgimento da autópsia particular

Durante séculos, dissecar o corpo humano para aprender sobre doenças era um tabu – algumas religiões ainda se opõem à prática. Médicos curiosos ou determinados foram forçados a roubar túmulos para aprender fatos básicos sobre o funcionamento do organismo. Em meados de 1900, entretanto, o laboratório de autópsias era um rito de passagem para os estudantes de medicina do primeiro ano e o procedimento era realizado em metade de todas as mortes ocorridas em hospitais.

A taxa de autópsias começou a cair em 1971 depois que a Joint Commission (uma organização independente sem fins lucrativos que credencia hospitais e unidades de saúde) deixou de exigir que hospitais realizassem um determinado número de autópsias para obter credenciamento. Mudanças implementadas nas operadoras de planos de saúde também passaram a dar mais importância à economia da saúde. Como as autópsias geram despesa em vez de receita para os hospitais, foi fácil eliminá-las utilizando a desculpa de cortes no orçamento.

“Os patologistas não são pagos para realizar autópsias”, diz Sally Aiken, legista do Condado de Spokane, em Washington, e presidente da Associação Nacional de Médicos Legistas (NAME). “Tornou-se uma profecia que se cumpre sozinha. Portanto, se um de seus pacientes não foi submetido à autópsia ou se o médico não conhece o procedimento, ele não o solicita.”

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    Foto de Craig Cutler

    Nesse meio tempo, os médicos tornaram-se cada vez mais dependentes de diagnósticos sofisticados, como exames de ressonância magnética e tomografia computadorizada. Isso levou a um excesso de confiança na precisão de seus diagnósticos, explica Fowkes, que também é porta-voz do Colégio Norte-Americano de Patologistas. Ela aponta uma pesquisa que demonstra que as autópsias ainda desempenham um papel vital na determinação da causa de morte, incluindo um estudo de 2003 publicado no periódico American Journal of Forensic Medicine and Pathology que constatou que a causa de morte oficial estava incorreta em 28% dos 429 casos revisados.

    Além disso, Fowkes diz que os familiares podem não desejar que uma autópsia seja realizada. Alguns temem que o corpo seja desrespeitado, ao passo que outros acreditam que o procedimento irá mutilar a pessoa que tanto amavam. Nenhuma das duas afirmações é verdadeira, diz Fowkes, mas não é fácil explicar isso a uma família em luto.

    Portanto, Fowkes se dedica a explicar o processo de autópsia, incluindo o exame externo do corpo, medição e pesagem dos órgãos internos, coleta de sangue e amostras de tecido para testes adicionais, uma análise dos registros médicos e (se necessário) entrevistas com familiares e amigos para determinar a causa da morte.

    Quando Fowkes realiza uma autópsia, ela considera a pessoa um paciente, como qualquer outro médico faria. O fato de a pessoa ter falecido não vem ao caso.

    No outro extremo desse espectro estão famílias como os Calloway, que querem desesperadamente uma autópsia, mas não conseguem, além daqueles que não confiam nos resultados que receberam da autópsia realizada. É aqui que empresas privadas como a 1-800-AUTOPSY de Hererra entram em cena.

    De 1979 a 1984, Herrera atuou como investigador-legista adjunto no Condado de Los Angeles, onde testemunhou em primeira mão a redução no número de autópsias realizadas. Ele fundou sua empresa em 1988, depois que uma grave lesão nas costas o forçou a se aposentar do cargo que ocupava no instituto médico legal da cidade. Até então, ele havia trabalhado com patologia durante toda sua vida e não conseguia se imaginar fazendo outra coisa.

    Joseph “G.I. Joe” Gonzalez, ex-fuzileiro naval dos Estados Unidos e técnico de autópsia na 1-800-AUTOPSY, no ...

    Joseph “G.I. Joe” Gonzalez, ex-fuzileiro naval dos Estados Unidos e técnico de autópsia na 1-800-AUTOPSY, no leste de Los Angeles.

    Foto de Craig Cutler

    Como Herrera nunca frequentou a faculdade de medicina, ele não pode realizar autópsias por conta própria. Sendo assim, ele depende de patologistas, profissionais cada vez mais escassos no mercado. A proximidade da empresa de Herrera com Hollywood também fez com que diretores de cinema e televisão o procurassem frequentemente para entender mais sobre seu trabalho. Ele tenta manter as representações de seu trabalho nos filmes e programas de TV as mais precisas possível, mas diz que é difícil para roteiristas e diretores não sensacionalizar essa atividade, o que provavelmente contribui com percepções públicas negativas.

    De acordo com a NAME, o número de empresas privadas que realizam autópsia continua a aumentar e não há sinais de que o setor irá desacelerar, embora a associação não mantenha nenhum registro oficial. Aiken diz que o número total de empresas privadas de autópsia nos Estados Unidos não é conhecido porque alguns patologistas forenses podem trabalhar em seu consultório particular em meio período ou atuar como consultores de acordo com a demanda. Outros são contratados para realizar autópsias em hospitais ou institutos médicos legais.

    Seus serviços não são baratos. Uma autópsia em uma empresa particular pode custar mais de US$ 10 mil e os planos de saúde não oferecem cobertura para esse serviço, mas muitas famílias acreditam que saber a verdade compensa o valor gasto. A filha de Tony Calloway, Katie Galarza, iniciou uma campanha na plataforma GoFundMe para pagar a autópsia particular de sua tia Angela e membros da comunidade contribuíram com mais de US$ 7,5 mil até o momento.

    Covid-19 faz um apelo por mais autópsias

    A pandemia do novo coronavírus ajudou a expor os efeitos do declínio no número de autópsias nos Estados Unidos. À medida que os casos aumentavam em Nova York, Fowkes viu seu local de trabalho em Mt. Sinai ficar sobrecarregado. Dos 22 patologistas da sua equipe, apenas quatro (incluindo ela própria) se ofereceram para realizar autópsias em pacientes com coronavírus. Os patologistas realizavam o procedimento mesmo correndo grande risco de contrair covid-19, pois acreditavam na importância de seu trabalho e na sua capacidade de salvar vidas.

    Os resultados não deixam espaço para dúvidas. Autópsias em pessoas que faleceram de covid-19 revelaram como os pulmões das vítimas se enchem de fluido, impossibilitando o organismo de obter oxigênio suficiente. Demonstraram como o vírus pode causar danos cerebrais e coágulos sanguíneos mortais. Patologistas em Nova York estão estudando autópsias de crianças que morreram de uma complicação incomum da covid-19 para entender como uma resposta imunológica devastadora, desencadeada por infecção viral, pode ser mortal.

    Patologistas como John C. Hiserodt diagnosticam condições médicas examinando órgãos após a morte de uma pessoa.

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    Foto de Craig Cutler
    Um cérebro com hemorragia extraído durante uma autópsia.

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    Foto de Craig Cutler

    E uma revisão das mortes na Califórnia determinou a data da primeira morte por coronavírus nos Estados Unidos como tendo ocorrido três semanas antes da primeira notificação, em 6 de fevereiro. Nesse caso, uma mulher morreu devido a um ataque cardíaco fulminante provocado pela infecção por coronavírus. Esses detalhes são constatados apenas por meio de autópsias, e é por isso que Fowkes e Herrera permanecem tão comprometidos com sua profissão.

    “Se os médicos estivessem realizando autópsias regularmente”, diz Herrera, “teriam detectado a propagação do vírus antes”.

    Mas a indisponibilidade de testes, especialmente no início da pandemia, impediu que alguns patologistas realizassem o teste nos falecidos para saber se estavam infectados. Os testes eram tão raros e valiosos que precisavam ser destinados aos que estavam vivos. Agora que os pesquisadores sabem mais sobre o vírus, as diretrizes dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos mudaram e não aconselham a realização de autópsias de rotina a fim de proteger a equipe médica contra infecções. É um cálculo que leva em conta o risco em relação ao benefício, diz Aiken, do Condado de Spokane.

    “Os casos também estavam surgindo em um ritmo lento o suficiente para que pudéssemos absorver esses números e obter novas informações”, diz ela.

    Tony Calloway diz que respeita esse tipo de decisão, embora ainda não entenda o motivo de sua irmã não ter sido submetida a uma autópsia. Aiken destaca que cada instituto médico legal pode ter suas próprias regras internas que norteiam decisões desse tipo.

    A autópsia particular de Angela revelou que ela tinha sintomas compatíveis com os causados pela covid-19, incluindo fluido nos pulmões, erupção nas costas e unhas azuis — um sinal de que seu organismo não estava conseguindo obter oxigênio suficiente. O patologista também enviou amostras de tecido para a realização de exames mais detalhados, cujos resultados ainda não estão disponíveis, mas as evidências até agora foram suficientes para que o atestado de óbito de Angela fosse alterado para “insuficiência respiratória aguda de possível etiologia infecciosa”.

    Herrera acredita que casos como esse representam uma oportunidade para que todos entendam a verdadeira importância das autópsias, um ofício que inclui arte e ciência.

    “Sinto por essas famílias porque elas só desejam saber o que aconteceu. Elas dizem, ‘Não consigo descansar, não consigo dormir. Eu só preciso saber o que aconteceu’”, diz Herrera. “Os mortos devem ser protegidos e ter voz.”

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