Covid-19: distribuir vacinas equitativamente evitaria centenas de milhares de mortes, diz relatório
A pandemia reverteu anos de progresso global, de acordo com o relatório anual da Fundação Bill Gates. A cooperação é a chave para voltar ao caminho do desenvolvimento.
Trabalhador humanitário coloca uma máscara em um menino enquanto distribui alimentos para famílias vulneráveis em Nairóbi, no Quênia. Com o impacto da covid-19, a pandemia desencadeou uma crise econômica que afetou desproporcionalmente as comunidades de baixa renda em todo o mundo.
A corrida entre os países ricos para reivindicar bilhões de doses de vacinas em andamento para a covid-19 pode levar a centenas de milhares de mortes a mais do que se as vacinas fossem distribuídas de forma equitativa, de acordo com um relatório divulgado pela Fundação Bill & Melinda Gates.
Esta é apenas uma das conclusões do quarto relatório anual da Goalkeepers, que é preparado pela Fundação Gates em parceria com o Instituto de Métricas e Avaliação de Saúde (Institute for Health Metrics and Evaluation - IHME). Em anos anteriores, o relatório documentou o progresso estável que o mundo fez no sentido de cumprir as metas de desenvolvimento sustentável estabelecidas pelas Nações Unidas em áreas que vão desde o acesso à educação, fome e igualdade de gênero.
Este ano, porém, quase todas as métricas mostraram uma queda na qualidade de vida das pessoas ao redor do mundo, principalmente entre aquelas que já estavam sofrendo. O mais surpreendente é que o IHME descobriu que a pandemia encerrou 20 anos de progresso tirando pessoas da pobreza e empurrou cerca de 37 milhões de pessoas para a pobreza extrema desde o seu início no começo deste ano.
“A pandemia, em quase todas as dimensões, piorou a desigualdade”, disse Gates durante uma conferência de imprensa. O novo relatório argumenta que, para salvar o máximo de vidas e acabar com a pandemia o mais rápido possível, os países devem colaborar para desenvolver, fabricar e distribuir vacinas e tratamentos de forma equitativa em todo o mundo.
Atualmente, mais de 150 vacinas estão em desenvolvimento em todo o mundo, e oito estão em estágio final de testes clínicos. Distribuir uma eventual vacina entre as nações, proporcional às suas populações, interromperia 61% das mortes globais por covid-19 que ocorreriam sem uma vacina, diz o relatório, citando dois cenários do Laboratório da Universidade do Nordeste (Northeastern University) para a Modelagem de Sistemas Biológicos e Sócio-técnicos. Por outro lado, o relatório diz que alocar os primeiros dois bilhões de doses da vacina para quem der o lance mais alto evitaria apenas 33% das mortes.
“Você não pode simplesmente usar quem é mais rico para fazer a alocação”, disse Gates em entrevista à editora-chefe da National Geographic, Susan Goldberg. “Você tem que descobrir seu objetivo final e então dizer a todos. Para o bem do mundo, vamos cooperar de uma forma sem precedentes”.
Crise global sucessiva
Na conferência de imprensa, Gates descreveu um efeito em cascata de catástrofes criadas pela pandemia - uma crise de saúde que desencadeou uma crise econômica que desencadeou uma crise educacional e assim por diante - que está exacerbando as desigualdades existentes entre nações, gêneros e raças.
De acordo com o relatório, a recessão econômica global é a mais perniciosa dessas crises, afetando todos os países, independentemente de seu sucesso em limitar a propagação do vírus. O Fundo Monetário Internacional estimou que a economia global está perdendo quase 500 bilhões de dólares todos os meses e perderá pelo menos 12 trilhões de dólares até o final de 2021. Os efeitos desta recessão afetam os países em desenvolvimento de uma forma desproporcional, diz o relatório. Os 18 trilhões de dólares em financiamento de estímulo que foram gastos desde março estão em grande parte concentrados nos países ricos, enquanto os países de baixa renda, como os da África Subsaariana, tiveram que lutar para evitar a ruína financeira.
A recessão está afetando comunidades negras desproporcionalmente. Em uma pesquisa recente, 46% de negros e latinos não tinham certeza se poderiam pagar o aluguel em agosto - em comparação com 23% dos norte-americanos brancos em circunstâncias semelhantes.
Mulheres e meninas também têm sido particularmente afetadas pela pandemia. Um número desproporcional dos 37 milhões de pessoas que foram empurradas para a pobreza extrema são mulheres em países de renda baixa e média, relata a Organização Internacional do Trabalho.
Mulheres e meninas têm maior probabilidade de trabalhar no setor informal, que inclui trabalhadoras domésticas e vendedoras ambulantes. Esses empregos têm sido particularmente afetados pela pandemia – e, ao mesmo tempo, o trabalho doméstico não remunerado, geralmente delegado às mulheres, incluindo creche e assistência aos doentes, aumentou. É provável que a pandemia também afete as gerações futuras, já que estudos da epidemia de ebola de 2014 na África Ocidental sugerem que as meninas em países de baixa renda têm menos probabilidade do que os meninos de voltar à escola quando reabrem após um surto.
“Você não pode simplesmente usar quem é mais rico para fazer a alocação (das vacinas). Para o bem do mundo, vamos cooperar de uma forma sem precedentes.”
Os sistemas de saúde também foram interrompidos, tornando cada vez mais difícil para as mulheres o acesso aos cuidados essenciais durante a gravidez e o parto. Os dados mais recentes mostram que quase 95% das mortes maternas em todo o mundo ocorrem em locais com poucos recursos, e a maioria seria evitável se cuidados de saúde adequados e especialização estivessem disponíveis.
A vacinação para outras doenças - como sarampo, difteria, tétano e coqueluche - tem aumentado constantemente por décadas, mas desde o início da pandemia, a proporção de pessoas vacinadas contra essas doenças caiu vertiginosamente, para níveis vistos pela última vez na década de 1990.
Desfazendo o dano
Além dos últimos seis meses de regressão dramática que o relatório descreve, ele projeta que a pandemia continuará afetando setores-chave nos próximos anos. Mas a coleta de dados em si foi limitada pela pandemia e pelas dificuldades logísticas que ela apresenta, admitem os pesquisadores. Então, para compensar esses efeitos, o relatório oferece dois cenários potenciais para o futuro.
O cenário mais otimista assume que a covid-19 pode ser erradicada rapidamente. Nesse caso, os modelos de dados preveem que o mundo poderá voltar a atingir seus objetivos de desenvolvimento sustentável em apenas alguns anos. No pior cenário - se a covid-19 não puder ser subjugada rapidamente -, o mundo pode não retomar o progresso em direção a essas metas por mais de 10 anos. O futuro que acontecerá será determinado em grande parte pelo que as empresas e os países fizerem nos próximos meses, diz Gates. Resolver esses problemas complexos e conectados exigirá esforços colaborativos, diz ele.
A fabricação de vacinas é uma área de potencial colaboração. Gates está otimista de que uma vacina será desenvolvida no início de 2021, mas questiona se as instalações serão capazes de produzir as doses necessárias para combater a pandemia em escala global. Gates sugere que esse dilema poderia ser mitigado se as empresas que desenvolvem vacinas para a covid-19 - a maioria das quais são localizadas em um punhado de nações ricas - se unissem a fabricantes em outras partes do mundo que têm maior capacidade de produção.
Há também a questão de como os países podem unir forças para distribuir a vacina de uma forma que salve vidas e não aumente a desigualdade. Por exemplo, embora Gates diga que os EUA têm sido exemplares no financiamento de pesquisa e desenvolvimento para seis das candidatas à vacina, ele observou que o país esteve ausente da discussão sobre a ajuda para outras nações comprarem essas vacinas. No início deste mês, a administração Trump disse que não se juntaria a um esforço co-liderado pela Organização Mundial da Saúde para globalizar o acesso a vacinas em potencial.
Gates reconheceu que a distribuição tenderá para os países que estão financiando o desenvolvimento de vacinas. Mas ele argumentou que os países ricos deveriam investir profundamente na distribuição equitativa de vacinas, porque a existência da covid-19 em qualquer lugar do mundo prolongará os efeitos da pandemia em todos os lugares.
“Não existe apenas uma razão humanitária e estratégica para ajudar os países em desenvolvimento,” disse ele, “há uma razão egoísta - porque é isso que nos permite voltar ao normal.”