Crânio de ‘homem-dragão’ pode representar nova espécie e abalar árvore genealógica humana
Escondido em um poço durante décadas, o crânio incrivelmente completo está despertando debates sobre o número crescente de fósseis que não se encaixam perfeitamente na história clássica da origem humana.
O homem-dragão, que viveu há mais de 146 mil anos em uma região gélida no nordeste da China, é retratado nesta reconstituição.
O crânio incomum foi encontrado logo após os japoneses invadirem o nordeste da China no início da década de 1930. Uma equipe de moradores erguia uma ponte perto de Harbin, cidade na província mais ao norte da China, quando um dos operários tropeçou em algo surpreendente na lama do rio. O crânio humano quase completo era alongado e possuía protuberâncias na região das sobrancelhas, sombreando as órbitas oculares quadradas.
O crânio apresentava também um tamanho incomum: “é enorme”, afirma Chris Stringer, paleoantropólogo do Museu de História Natural de Londres.
Talvez ciente da magnitude da descoberta, o homem escondeu o crânio em um poço abandonado. Agora, passados quase 90 anos, um estudo publicado no periódico The Innovation alega que esse crânio representa uma nova espécie humana: o Homo longi, ou o homem-dragão.
Dois outros estudos revelam que o crânio incrivelmente preservado provavelmente é derivado de um homem que morreu no mínimo há 146 mil anos. A presença tanto de características anatômicas antigas quanto mais modernas sugere uma localização única na árvore genealógica humana.
“Já segurei muitos outros crânios e fósseis humanos, mas nunca algo assim”, afirma Xijun Ni, paleoantropólogo da Academia Chinesa de Ciências, autor de todos os três estudos.
Com base no formato e no tamanho do crânio de Harbin, como é geralmente chamado, e na comparação com outros fósseis conhecidos, os pesquisadores presumem que tenha um parentesco próximo com vários outros fósseis humanos impressionantes, desse mesmo período, encontrados na Ásia. A análise dos pesquisadores sugere que todos esses fósseis pertençam a um grupo com parentesco próximo com nossa própria espécie — talvez até mais próximo do que os neandertais.
“É um fóssil espetacular”, afirma María Martinón-Torres, diretora do Centro Nacional de Pesquisas sobre a Evolução Humana da Espanha, que não participou dos estudos.
No entanto o agrupamento proposto e a denominação da espécie estão despertando debates entre cientistas. Alguns especialistas identificaram indícios convincentes de que o homem-dragão possa ter ligações com os misteriosos denisovanos, grupo irmão dos neandertais do qual poucos fósseis foram encontrados: alguns dentes, um pedaço de crânio fraturado, um osso do dedo mínimo e talvez uma mandíbula partida.
Embora esteja animada com o grau de conservação e o mosaico de características do crânio de Harbin, “a essa altura, não sei ao certo qual é sua diferença dos demais grupos já conhecidos”, afirma Martinón-Torres.
Ainda assim, o crânio ressalta como estão emaranhadas as ramificações da árvore genealógica humana e como estudar toda a gama de ancestrais humanos enigmáticos e sua distribuição em alteração ao longo do tempo pode nos ajudar a decifrar nossas próprias origens.
“Esquecemos, incluindo até mesmo os antropólogos, como é estranho sermos os únicos hominínios vivos”, afirma Laura Buck, antropóloga biológica da Universidade Liverpool John Moores, que não integrou a equipe do estudo.
História do crânio
Antes de sua morte, o operário que havia encontrado o crânio revelou seu segredo guardado há tanto tempo a seus netos, que se aventuraram até o poço para recuperar a preciosidade em 2018. Qiang Ji, paleontólogo da Universidade de Geociências de Hebei, na China, que liderou a nova pesquisa, soube da descoberta e foi verificar. Sem ter certeza da procedência do crânio, tirou uma foto para mostrar a Ni.
“Fiquei chocado”, recorda Ni. O fóssil estava notavelmente bem preservado e ainda exibia um conjunto incomum de características. O crânio de Harbin é atarracado e largo, com uma protuberância na região das sobrancelhas, comum entre os hominínios antigos. Resta apenas um dente no crânio sem mandíbula, mas esse dente possui três raízes, uma característica rara entre humanos modernos. Outras características — como as maçãs do rosto delicadas, planas e baixas no rosto — lembram mais a nossa própria espécie.
“Passa uma sensação muito estranha ao observar as órbitas oculares”, conta Ni. “Parece que está tentando dizer algo.”
Ji convenceu a família a doar o espécime ao Museu de Geociências da Universidade de Geociências de Hebei, e a equipe começou seus estudos. Reuniram informações de 95 fósseis de crânios, mandíbulas e dentes representando diversos grupos de hominínios, descrevendo mais de 600 características físicas. Foi utilizado então um supercomputador para gerar bilhões de árvores filogenéticas, ferramentas empregadas para identificar as relações evolutivas entre hominínios com o menor número de etapas evolutivas, que a maioria dos cientistas concorda ser a possibilidade mais provável. A árvore gerada colocou o crânio de Harbin em uma nova ramificação com um parentesco próximo com a nossa espécie.
“Fiquei surpreso com tal proximidade”, conta Stringer, autor de dois dos estudos que definem o agrupamento e a idade do fóssil. Ele esperava que o crânio de Harbin fosse uma ramificação dos neandertais.
O crânio de Harbin, com sua combinação de características antigas e modernas, junta-se a um número crescente de descobertas fósseis em toda a Ásia que não se encaixam perfeitamente nas ramificações existentes da árvore genealógica humana.
Parte da equipe considerou o crânio de Harbin tão diferente dos demais fósseis de hominínios que acreditou merecer um nome de espécie distinto. Ni, autor do terceiro estudo que define a nova espécie, assinala a lista de características que juntas definem o homem-dragão: órbitas oculares incrivelmente quadradas, uma caixa craniana alongada e baixa, falta de uma crista ao longo da linha média do crânio e muito mais.
“Não é uma característica única que o distingue de todos os demais”, explica ele. “É uma combinação de características.”
Discussões sobre o homem-dragão
No entanto nem todos os cientistas e especialistas externos concordam que o homem-dragão seja uma espécie distinta — muito menos concordam com sua posição relativa na árvore genealógica dos hominínios.
Muitas das características definidoras do crânio parecem ser questões de escala, em vez de características distintas, adverte Buck, da Universidade Liverpool John Moores. Até mesmo dentro de uma espécie, conta ela, é esperada alguma variação. Diferenças de sexo, idade do indivíduo, adaptações regionais, idade do fóssil e muito mais podem provocar pequenas alterações individuais.
Se não for uma espécie própria, o que seria o homem-dragão? Stringer aponta para uma mistura semelhante de traços modernos e mais antigos em um fóssil chamado de crânio de Dali, classificado no mesmo grupo do crânio de Harbin, segundo o novo estudo. Encontrado na província de Shaanxi, no noroeste da China, esse crânio é considerado uma espécie própria: o Homo daliensis.
“Já existe algum exagero de espécies na antropologia”, acrescenta Bence Viola, paleoantropólogo da Universidade de Toronto, que não integrou a equipe do estudo. Ele acredita que é preferível agrupar o crânio com o H. daliensis, ou deixar a espécie sem nome, em vez de cunhar um novo apelido para a espécie.
E há ainda os enigmáticos denisovanos. Embora não seja formalmente reconhecido como uma espécie própria, esse grupo provavelmente habitou a Ásia por milhares de anos, e foi sugerido que muitos fósseis asiáticos fossem membros do grupo. Mas como os cientistas encontraram poucos vestígios fósseis de sua existência, é necessária confirmação genética — e a preservação do DNA torna-se cada vez mais improvável com fósseis mais antigos.
Em 2019, cientistas anunciaram a descoberta de uma mandíbula fraturada no planalto do Tibete, provavelmente proveniente de um denisovano, o que tornaria o osso o primeiro fóssil desses humanos ancestrais encontrado fora da caverna que dá o nome ao grupo.
A árvore filogenética recém-proposta sugere que o homem-dragão tenha um parentesco mais próximo com essa mandíbula, chamada de mandíbula de Xiahe.
“Provavelmente pertencem à mesma espécie”, observa Ni. Mas ele hesita em considerar que a mandíbula (e, portanto, o homem-dragão) seja oriunda de um denisovano, já que a mandíbula fraturada foi identificada por meio de proteínas extraídas da mandíbula e DNA extraído de sedimentos, não diretamente do DNA da mandíbula. O crânio de Harbin não possui uma mandíbula para comparação física.
Viola, que integrou a equipe que descreveu os denisovanos pela primeira vez, discorda, observando que o mais lógico seria que a mandíbula de Xiahe fosse denisovana. Mas ressalta que, ainda que o homem-dragão fosse denisovano, a nova análise coloca a ramificação da árvore que inclui o crânio de Harbin e a mandíbula de Xiahe separada da ramificação dos neandertais.
Isso seria estranho, pois tal agrupamento entra em conflito com a história dos denisovanos descrita em estudos anteriores de sua genética. Essas análises sugerem que o ancestral comum dos neandertais e denisovanos se separou dos antepassados do Homo sapiens há cerca de 600 mil anos. Esse ancestral então se subdividiu em dois grupos: os neandertais, que se distribuíram pela Europa e pelo Oriente Médio, e os denisovanos, que se deslocaram à Ásia.
Os parentescos entre todos esses grupos são “invariavelmente próximos e difíceis de distinguir”, escreveu por e-mail Katerina Harvati, paleoantropóloga da Universidade Eberhard Karls de Tübingen, que não participou da pesquisa. “Acredito que provavelmente seja necessário um estudo mais aprofundado quando houver mais evidências”, comentou Harvati.
Dragões congelados
Mais evidências podem estar próximas. A equipe dos novos estudos cogita a possibilidade de conduzir análises genéticas no homem-dragão, conta Ni. Mas há certa cautela porque esse processo requer a destruição de pequenas amostras do fóssil.
Ainda que o homem-dragão não seja uma nova espécie, suas características incrivelmente preservadas são um lembrete de que a natureza raramente segue regras, e que a classificação só ficará mais complexa a cada nova descoberta.
“A distinção de uma espécie é, na realidade, mais uma questão filosófica do que uma verdade biológica”, observa Buck. As definições de espécies podem ser úteis, prossegue ela, mas “para mim, as questões mais interessantes são... como os indivíduos dessa espécie se adaptaram? E como era sua existência no mundo?”
Nesse aspecto, o homem-dragão também oferece possibilidades intrigantes. O local exato onde o operário o retirou da lama permanece desconhecido, mas a região provável é no extremo norte, afirma Michael Petraglia, paleoantropólogo do Instituto Max Planck de Ciência da História Humana, que não participou da pesquisa. Até mesmo sob as atuais condições relativamente amenas, as temperaturas dessa região durante o inverno podem cair para cerca de -17 graus Celsius; há cerca de 146 mil anos, provavelmente não era muito mais quente.
A equipe especula que alguns dos traços robustos do crânio sejam adaptações a um clima muito mais frio. O ambiente também pode ter isolado o homem-dragão e seus parentes de outros hominínios, afirma Petraglia, o que pode ter causado algumas das peculiaridades observadas atualmente no fóssil.
O banco de dados completo da equipe e imagens detalhadas do homem-dragão foram disponibilizados ao público, conta Stringer, para que outros pesquisadores possam analisar as complexidades do hominínio por conta própria. Muitos parecem ansiosos para isso.
Como Sarah Freidline, da Universidade da Flórida Central, comentou por e-mail: “a integridade do crânio de Harbin é o sonho de todo paleoantropólogo.”