Veneno remédio: como toxinas naturais contribuem para novos medicamentos

Cientistas coletam substâncias tóxicas da natureza para aprender como seus componentes moleculares funcionam –o que pode trazer inovação para analgésicos e tratamentos de doenças.

Cientistas aplicam choques elétricos de baixa intensidade na articulação da cauda para retirar o veneno do ferrão. Estudar componentes químicos de diferentes venenos pode possibilitar novos tratamentos médicos para humanos.

Foto de David Guttenfelder, National Geographic
Por Elizabeth Landau
Publicado 14 de set. de 2021, 12:00 BRT

Sam Robinson teve sua primeira experiência dolorosa com a árvore Dendrocnide excelsa, que possui estruturas semelhantes a ferrões, durante uma caminhada na floresta tropical do Parque Nacional de Main Range, na Austrália, em 2018. Ele encontrou a árvore gigante e tocou os ferrões com a mão esquerda para ver se a picada fazia jus à sua temível reputação.

“Foi tão ruim quanto todo mundo disse que seria”, conta ele com uma risada. “Foi realmente espantoso ver que uma planta era capaz de provocar aquele nível de dor.”

A “dor intensa e penetrante” subiu pelo braço esquerdo e atingiu o lado esquerdo do peito. Poucos meses depois, ele tocou o mesmo tipo de árvore novamente, dessa vez com a mão direita, e a pontada reverberou apenas pelo lado direito do tórax – sugerindo que o veneno agia especificamente no lado em que penetrava o corpo.

Robinson, pesquisador do Instituto para Biociência Molecular da Universidade de Queensland, na Austrália, não se submete a esses encontros dolorosos na natureza apenas para se divertir – embora registre nas redes sociais a sensação de cada picada. Ele faz parte de um grupo crescente de cientistas que acreditam no potencial medicinal inexplorado dos diversos venenos encontrados na natureza.

Devido aos avanços tecnológicos da última década, hoje sabe-se muito sobre o modo de ação e a forma como os diferentes venenos afetam o nosso organismo. Embora os venenos sejam conhecidos principalmente por causar danos, o estudo realizado revela que sua química e seus mecanismos podem possibilitar novas e interessantes terapias para o tratamento da dor, do câncer e muito mais.

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    Mandë Holford, professora de química da Faculdade Hunter e do Centro de Pós-Graduação da Universidade da Cidade de Nova York, estuda o poder terapêutico do veneno de caracóis. Os conídeos têm um dos venenos mais letais do planeta.

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    Conídeos atualmente são utilizados para produzir um medicamento conhecido como Prialt (ziconotida), administrado à coluna vertebral por meio de injeção. Holford busca expandir o uso do veneno para desenvolver um analgésico que seja mais fácil de administrar, não vicie e funcione como uma alternativa aos opioides comercializados atualmente.

    fotos de Robert Clark- National Geographic

    Já há aguns medicamentos derivados de venenos disponíveis para prescrição. Um dos primeiros remédios para pressão arterial aprovados para uso clínico, o Captoten (captopril), surgiu do estudo do veneno da jararaca-da-mata (Bothrops jararaca), cuja picada causa a queda da pressão arterial de sua presa. O medicamento Byetta (exenatida), que reduz os níveis de glicose no sangue em pacientes com diabetes tipo 2, foi desenvolvido a partir da saliva do monstro-de-gila, um lagarto venenoso nativo da América do Norte. E o veneno dos conídeos possibilitou o desenvolvimento do Prialt (ziconotida), um analgésico injetado no líquido cefalorraquidiano do paciente.

    Mas Robinson e outros argumentam que há muito mais trabalho a ser feito para transformar substâncias químicas venenosas em medicamentos seguros e eficazes para humanos.

    É a mesma lógica do personagem Venom (veneno em inglês) da Marvel, que é “o supervilão e o super-herói”, brinca Mandë Holford, professora associada de química da Faculdade Hunter e do Centro de Pós-Graduação da Universidade da Cidade de Nova York. Holford estuda caracóis venenosos e a evolução dos venenos com o objetivo de decifrar sua genética, ou o que ela chama de “Pedra de Roseta do veneno”.

    “A menos que possamos entender como os genes do veneno evoluem e funcionam, estaremos apenas trabalhando na superfície”, diz ela.

    Avaliando a dor e desconstruindo seus mecanismos

    Cientistas que estudam criaturas venenosas geralmente são picados como parte do risco ocupacional, e alguns deles se propuseram a documentar as sensações de alguns dos envenenamentos mais dolorosos do mundo. É um trabalho com um propósito – avaliar a dor de uma variedade de picadas permite que os pesquisadores comparem as distintas sensações, uma das formas de determinar que componentes de diferentes venenos interagem com o sistema nervoso de maneiras diversas.

    O entomologista Justin O. Schmidt, que trabalha atualmente no Instituto Biológico do Sudoeste, no estado do Arizona, iniciou um projeto no fim da década de 1970 para catalogar suas experiências subjetivas com picadas por todos os tipos de insetos, produzindo a famosa escala de dor Schmidt. A picada que o inspirou foi a de uma grande formiga vermelha da espécie Pogonomyrmex badius.

    “Quando a formiga pica o braço, os pelos ficam eriçados, como os de um cachorro assustado”, conta Schmidt sobre a experiência.

    A reação incomum despertou sua curiosidade. “Foi isso que realmente me fez perceber que precisávamos encontrar uma maneira de comparar a dor causada por um ou outro inseto”, revela Schmidt. Seu livro, The Sting of the Wild (Picadas selvagens, em tradução livre), descreve picadas de 83 espécies e classifica a dor provocada em uma escala de um a quatro, de leve a excruciante, respectivamente.

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        A gigante árvore australiana D. excelsa é comum nas florestas tropicais do leste da Austrália e pode atingir mais de 40 metros de altura. No entanto, geralmente são os espécimes menores com folhas mais próximas do chão que atraem as pessoas. A dor causada pela “picada” da árvore dura horas e alguns dos sintomas podem reaparecer semanas depois.

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        Formigas australianas do gênero Myrmecia possuem uma picada notoriamente dolorosa. Uma equipe liderada por Robinson publicou o primeiro estudo abrangente do veneno dessas formigas em 2018, que pode ajudar os pesquisadores a desenvolver novos analgésicos.

        fotos de Sam Robinson

        Robinson, que é explorador da National Geographic, começou a estudar venenos de maneira profissional cerca de 40 anos depois de Schmidt. Inspirado pela escala de dor Schmidt, ele começou a classificar suas picadas nas redes sociais utilizando os mesmos critérios. Ele também trabalha para decodificar alguns dos mais infames venenos da natureza, recentemente colaborando em estudos sobre a árvore D. excelsa, lagartas da família Limacodidae, cobras-cuspideiras, entre outras criaturas. 

        Robinson se juntou a Schmidt em um estudo no Arizona para coletar formigas-de-veludo que, na realidade, são vespas sem asas com cores vivas e corpos peludos. Apelidadas de “assassinas de vacas”, pois dizem que a picada do inseto é tão dolorosa que poderia matar uma vaca, Robinson descreve a dor no Twitter como “crescente, aguda e pulsante, que se transforma em coceira e inchaço”. Schmidt é ainda mais descritivo em seu livro: “uma dor explosiva e persistente, que provoca gritos que o fazem parecer um louco. Como se óleo fervente estivesse sendo derramado sobre toda a sua mão”. Ambos atribuem à picada uma nota 3 de 4 na escala de dor.

        Robinson, Schmidt e seus colaboradores publicaram o primeiro estudo detalhado da composição e função do veneno da formiga-de-veludo em fevereiro. Eles descobriram que o veneno rompe as membranas celulares, permitindo que partículas carregadas denominadas íons se movimentem de um lado para outro através de uma estrutura semelhante a um portão, chamada de canal iônico. As moléculas do veneno atacam o canal iônico ligando-se a ele, mantendo-o aberto (quando deveria estar fechado) e enviando um sinal de dor ao cérebro.

        Ao compreender o mecanismo de ação desses venenos, os cientistas podem desenvolver novos medicamentos que têm como alvo os mesmos receptores, mas aliviam a dor em vez de causá-la. 

        Árvore venenosa para tratamento de câncer

        A gigante dos ferrões D. excelsa oferece outro exemplo de como o veneno na natureza pode conter indícios sobre os mecanismos celulares da dor. Ao contrário da picada da formiga-de-veludo, a dor crescente causada pela árvore pode retornar em baixas temperaturas, mesmo horas depois de ter desaparecido naturalmente. “Se a região da picada entrar em contato com água fria, a dor volta em sua intensidade original”, alerta Robinson por experiência própria.

        Alguns tratamentos quimioterápicos também causam esse efeito, denominado alodinia ao frio, que gera desconforto aos pacientes se a pele entrar em contato com objetos frios.

        “Então, se conseguirmos identificar a toxina presente nessa árvore e como ela atua, talvez obtenhamos informações sobre o mecanismo por trás da alodinia ao frio”, observa Robinson, “e talvez possamos descobrir uma forma racional de evitá-la”.

        Zoltan Takacs, bolsista da National Geographic, apanha um escorpião na natureza e o coloca em um frasco para transportá-lo, em um acampamento no Parque Nacional Chu Yang Sin, no Vietnã. Ele e pesquisadores vietnamitas estavam no parque em busca de escorpiões, cobras, caracóis, sapos e aranhas venenosas para extrair toxinas mortais e utilizá-las para estudar novos analgésicos e medicamentos que salvam vidas.

        Foto de David Guttenfelder, National Geographic

        Para estudar essa árvore peculiar, um dos colegas de Robinson trouxe sementes de D. excelsa das florestas tropicais do norte de Queensland e as cultivou em laboratório. Os cientistas rasparam alguns dos ferrões – que podem chegar a sete ou oito milímetros de comprimento – e extraíram o veneno. (Posteriormente, alguns cientistas plantaram as árvores em seus quintais).

        Pesquisas preliminares sugerem que, do ponto de vista químico, a toxina dessa espécie de árvore venenosa age de forma semelhante à de um escorpião ou tarântula e tem como alvo um canal iônico denominado canal de sódio dependente de voltagem, que é encontrado em todas as células nervosas do reino animal. Irina Vetter e Thomas Durek, colegas de Robinson na Universidade de Queensland, estão conduzindo mais estudos para saber como o veneno da árvore produz alodinia ao frio.

        “Tudo o que posso dizer é que é surpreendentemente complexo, mas estamos progredindo”, comenta Robinson por e-mail.

        A química de diferentes venenos também pode fornecer uma ferramenta para combater o câncer diretamente. Os peptídeos do veneno, que são cadeias curtas de aminoácidos, manipulam os sinais celulares visando receptores específicos. Isso significa que alguns componentes do veneno podem ser capazes de desligar a produção de células tumorais, poupando as células saudáveis.

        No Reino Unido, Carol Trim, professora sênior da Universidade de Christchurch, e sua aluna de doutorado Danielle McCullough, têm investigado uma proteína encontrada em determinadas células cancerígenas denominada receptor do fator de crescimento epidérmico, e como os venenos de cobras, escorpiões e tarântulas podem bloquear a atividade desse receptor. Em Nova York, Holford está trabalhando na caracterização de peptídeos de veneno de caracóis com o objetivo de desenvolver novos tratamentos para câncer e controle da dor.

        Holford também está tentando decifrar a genética do veneno por meio do cultivo de miniglândulas, ou organoides, a partir de células-tronco. Recentemente, outros pesquisadores tiveram sucesso no cultivo de glândulas de veneno de cobra, mas o foco de Holford é modelar os órgãos produtores de veneno dos caracóis. Eventualmente, ela espera criar um acervo completo de glândulas de veneno modelo para estudar a genética desses organoides cultivados em laboratório.

        “Os organoides nos permitirão não apenas aprender sobre o funcionamento, mas também manipulá-lo”, afirma Holford, que também fundou uma empresa de tecnologia educacional chamada Killer Snails. “E, então, teremos muito mais controle sobre o que os peptídeos de veneno podem fazer por nós.”

        Um dos principais desafios é que muitos medicamentos existentes baseados em peptídeos de veneno precisam ser injetáveis, já que a maioria dos peptídeos se decompõe no sistema digestivo. Para desenvolver um medicamento à base de veneno, a pílula precisa ser resistente para não se decompor no intestino ou no fígado, mas ainda assim se dissolver na corrente sanguínea, explica Steve Trim, cientista farmacêutico fundador da empresa Venomtech Ltd., no Reino Unido, e marido de Carol Trim.

        Isso significa submeter os próprios peptídeos a uma reengenharia – uma linha de pesquisa que, “para mim, é a nova e empolgante ciência”, comenta Trim.

        Contudo, apesar de todos os avanços tecnológicos da ciência do veneno, Holford nunca se esquece de que todo esse trabalho envolve imitar e manipular o que já existe na natureza.

        “Os animais nos mostram o caminho com ferramentas que sabemos que funcionam”, conclui ela. “A questão é descobrirmos como funcionam.”

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