Testes de DNA são capazes de reunir famílias de imigrantes? Entenda os fatos.

O teste genético oferece uma potencial solução para a crise, mas as preocupações com logística e privacidade ainda representam grandes desafios.

Por Maya Wei-Haas
Publicado 29 de jun. de 2018, 12:49 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
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Um holofote da Patrulha da Fronteira dos Estados Unidos ilumina uma mãe e um filho de Honduras, perto da fronteira com o México, em 12 de junho de 2018, em McAllen, no Texas.
Foto de John Moore, Getty Images

Mais de 2 mil crianças imigrantes – algumas ainda engatinhando – foram separadas de suas famílias e agora estão espalhadas por abrigos em pelo menos 16 estados nos Estados Unidos. Sem um final claro para a crise, algumas empresas comerciais de teste de DNA estão se oferecendo para ajudar.

A MyHeritage ofereceu 5 mil kits de teste como extensão de sua iniciativa voluntária e sem remuneração para juntar crianças adotáveis a suas famílias biológicas. E a 23andMe iniciou sua campanha depois de ser incitada pela representante da Califórnia, Jackie Speier.

Os anúncios foram imediatamente recebidos com preocupação por parte dos bioéticos e advogados.

“Acho que devemos ser muito cautelosos diante de quaisquer propostas que visem criar um banco de dados de DNA, mesmo que as intenções sejam boas”, diz Elizabeth Joh, professora de direito na Universidade da Califórnia, em Davis.

As perguntas são abundantes – da privacidade e da logística até se tais testes são mesmo necessários para a reunificação. Conversamos com especialistas da área para esclarecer como seria tal esforço e para descrever os prós e contras.

Como funciona a correspondência de DNA?

Sua impressão digital genética é uma mistura de DNA da sua mãe e pai biológicos. Isso significa que cada gene em seu corpo vem de um dos seus pais.

Para auxiliar famílias migrantes, pais e filhos forneceriam amostras de seu material genético. Para testes da 23andMe, isso exigiria cuspir em um tubo; os kits da MyHeritage usam um cotonete por dentro da bochecha. As empresas, então, examinam cerca de 700 mil dentre as 3 bilhões de unidades básicas de material genético que compõem o genoma humano, explica Miguel Vilar, cientista chefe do Projeto Genográfico da National Geographic.

Para os testes de ancestralidade padrão que essas empresas realizam, elas examinam os genes de um indivíduo para identificar a frequência de marcadores específicos em seu DNA que indicam correspondências com vários grupos étnicos. No entanto, esses resultados não são verificados independentemente antes da entrega, nem as empresas entraram num acordo quanto aos padrões para a realização de testes de ancestralidade, diz Sheldon Krimsky, professor da Universidade Tufts e autor de Genetic Justice: DNA Data Banks, Criminal Investigations & Civil Liberties, em uma entrevista para a Tufts Now. Como muitos relatórios mostraram, diferentes empresas encontram resultados distintos.

Mas, ao contrário dos testes de ancestralidade, a identificação de relações diretas pode ser feita com um grau bastante alto de precisão, e a correspondência pode ser concluída de várias maneiras diferentes. O método mais provável é comparar diretamente o DNA de cada indivíduo. Os resultados podem ser carregados para um banco de dados que procura por semelhanças extensas na sopa de letrinhas. Quando o teste encontra uma correspondência, a mãe ou o pai podem ser contatados para uma reunião muito atrasada.

Esses testes têm aproximadamente 99,9% de precisão para amostras de relações diretas e cuidadosamente coletadas, diz Vilar: “Eu acho que a ciência seria factível”.

Mas a situação, diz ele, é muito mais complexa.

Quais são as questões que envolvem privacidade e consentimento?

Uma das primeiras questões do teste é o consentimento. Para menores de idade, as regras de privacidade médica podem impedir a amostragem, a menos que cada criança tenha uma guarda ou responsável legal, o que é obviamente problemático neste caso. E para os adultos, mesmo que eles deem seu consentimento, ele seria, na realidade, concedido sob coação, uma vez que eles estão atualmente detidos, diz Ada Hamosh, diretora-clínica do Instituto McKusick-Nathan de Medicina Genética da Universidade Johns Hopkins.

Depois, existe a questão de ajudar as famílias a entender a magnitude dessa entrega de seu DNA.

“As pessoas a quem está sendo oferecido este serviço, em grande parte, não falam inglês, e muitas delas – assim como o público em geral da maioria dos Estados Unidos – não têm instrução para entender exatamente o que é o teste”, diz Debra Mathews, professora associada do Instituto Berman de Bioética da Johns Hopkins.

Sob a lei atual, uma vez que os dados genéticos são carregados para um banco de dados da empresa, a polícia pode ter acesso a essas informações através dos tribunais.

“Se um órgão de aplicação de lei tiver uma ordem judicial válida ou uma intimação, eles poderão obter acesso”, diz Mathews. E conforme mostrou o recente rastreamento genético do Golden State Killer, a liberação acidental ou intencional de sua composição genética pode colocar você e seus parentes à mercê de investigações criminais.

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    “Seu DNA não pertence exclusivamente a você”, ela diz. “Você o compartilha com todos os seus parentes genéticos, em diferentes graus”.

    Para ser claro, esse caso em particular foi desvendado usando um banco de dados genético disponível ao público, o GEDmatch – ao passo que tanto a 23andMe como a MyHeritage têm bancos de dados privados. E, em defesa das empresas, tanto a 23andMe como a MyHeritage estão trabalhando para atender à necessidade de proteção de privacidade.

    A 23andMe planeja oferecer seus serviços “por meio de organizações de assistência jurídica sem fins lucrativos que representam essas famílias”, eles escreveram em uma declaração por e-mail à National Geographic. “Estamos todos cientes de que os dados genéticos contêm informações muitíssimo pessoais e queremos garantir que sejam tratados confidencialmente e com o consentimento de toda pessoa testada”. Eles observam que os representantes legais podem garantir que os dados sejam usados ​​somente para a reunificação de famílias, acrescentando ainda no Twitter que eles entraram em contato com a organização sem fins lucrativos RAICES Texas para ajudar nos esforços.

    “Eu acho que, claramente, existem muitos pontos sensíveis envolvidos em algo assim”, diz Rafi Mendelsohn, porta-voz da MyHeritage. Sendo assim, ele diz, o serviço ao cliente da empresa estará disponível em 42 idiomas para dar suporte aos esforços de reunificação.

    Embora a MyHeritage esteja interessada em trabalhar com “organizações relevantes”, diz Mendelsohn, o processo para famílias migrantes provavelmente será semelhante ao prestado a seus demais clientes: os dados serão carregados para o banco de dados da MyHeritage, e as amostras de saliva serão armazenadas.

    “O DNA é de propriedade do usuário, e eles têm controle total sobre o que acontece com ele”, diz Mendelsohn. A empresa não vende ou compartilha essas informações genéticas, ele diz, e as famílias podem pedir para que suas amostras de saliva e seus dados sejam destruídos.

    Ainda assim, continua sendo grande a necessidade de salvaguardas suplementares para essas famílias vulneráveis, disse Krimsky à National Geographic. Ele aconselha que sejam feitos todos os esforços necessários para a construção de bancos de dados para as famílias, incluindo “considerações de privacidade muito rigorosas, que vão muito além do que as empresas publicam em seus memorandos de privacidade”.

    E a logística?

    Além das preocupações com a privacidade, a logística básica da iniciativa é extremamente complexa, diz Krimsky.

    “Este é um empreendimento enorme. Você teria que ter perfis de DNA de todos os adultos, perfis de DNA de todas as crianças, e você teria que fazer comparações muito cuidadosas”, ele diz.

    E, a menos que as empresas possam passar todas essas amostras para o início da fila, diz Vilar do Projeto Genográfico, o processamento pode levar semanas. Atualmente, a equipe do Genográfico não tem planos de investir na iniciativa. Vilar reconhece a importância de reunir as famílias, mas ele diz que a logística é muito complicada com o número limitado de funcionários do Genográfico.

    Ter várias empresas tentando dar uma mão também pode representar um desafio. As empresas de kits de DNA geralmente sequenciam seções de genes ligeiramente diferentes, o que poderia adicionar um pouco de incerteza aos resultados. “Talvez não fosse como comparar alhos a bugalhos”, diz Vilar. “Mas seria como comparar um dente de alho a um dente da boca.” (Veja aqui porque irmãos podem obter resultados diferentes em um teste de DNA.)

    Ainda mais desafiador é fundir dois bancos de dados em um. Todos os empenhos estão em seus estágios iniciais, então não está claro como as informações podem ser compartilhadas, explica Mendelsohn, da MyHeritage. “Não sei se seria justo da minha parte dizer qualquer coisa agora”, ele diz.

    Mas todo esse trabalho meticuloso leva tempo – algo de que essas famílias não dispõem.

    “Cada dia à parte provoca danos traumáticos, potencialmente permanentes, a essas crianças”, diz Hamosh.

    O teste genético é necessário?

    Mesmo que as famílias sejam juntadas usando seu DNA, os testes podem ter consequências inesperadas. Por um lado, diz Hamosh, há o quase inevitável caso de algumas crianças descobrirem que não são biologicamente relacionadas a um pai que as criou. Isso se confirma em 1% a 10% dos testes pré-natais realizados nos Estados Unidos.

    “Não há motivo para se fazer isso com as crianças, os pais ou a mãe”, diz Hamosh. (As crianças refugiadas na Grécia estão atualmente enfrentando uma crise de saúde mental).

    Às vezes, são necessários testes genéticos para reunir as famílias. Na década de 1990, Krimsky foi presidente de um comitê da Associação Americana para o Avanço da Ciência que montou uma equipe de geneticistas forenses para ajudar as Avós da Plaza de Mayo. Esta organização localizava crianças que haviam sido sequestradas durante a ditadura militar argentina, que governou entre 1976 e 1983, e combinava-as aos avós. Nesse caso, diz ele, o DNA foi necessário para reunir membros da família há muito separados, alguns dos quais nasceram de mães presas e nunca conheceram seus parentes.

    Na situação atual, ele diz, “não está claro para mim que a necessidade exista”. Muitas crianças devem ter idade suficiente para dizer os nomes de seus pais, desde que haja registros suficientes do paradeiro da família. Atualmente, no entanto, o processo do governo para reunir crianças e pais é caótico, e para as crianças mais jovens tiradas de seus pais, o DNA pode ser a única opção.

    Nesse caso, “teria que haver diretrizes bem pensadas para proteger essa população incrivelmente vulnerável em uma situação incrivelmente vulnerável”, diz Mathews. “Não existem outras populações em condições mais vulneráveis ​​do que essa neste momento”.

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