Como o contato com a natureza ajuda os wajãpi a defender sua terra ancestral

A sensibilidade para se relacionar com a natureza vem ajudando o povo wajãpi a proteger sua terra ancestral na Amazônia.

Por Felipe Milanez
fotos de Victor Moriyama
Publicado 9 de ago. de 2018, 17:27 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
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Homens trabalham com tratores na rodovia Perimetral Norte, que cruza a terra dos wajãpis. Os impactos do possível asfaltamento da estrada – como a proliferação de madeireiros – já preocupam a população indígena da área.
Foto de Victor Moriyama

Esta reportagem está na edição de agosto da revista National Geographic Brasil.

A floresta debruça-se sobre vales e montanhas a perder de vista, entrecortada por rios caudalosos, tortuosos, encachoeirados. É uma Amazônia idílica, que fascinou os primeiros exploradores e agora deslumbra naturalistas e ambientalistas – é, no entanto, apenas uma das dimensões da vida no território do povo Wajãpi. Entre os rios Oiapoque, Jari e Araguari, no Amapá, no sopé das serras junto do Parque Nacional das Montanhas do Tumucumaque, esses indígenas entendem viver no “centro do mundo”, segundo a sua origem e o lugar em que se estabeleceram. Os wajãpis creem ter uma missão: cuidar das matas, do subsolo e do céu para que todos os outros seres possam igualmente conviver neste planeta.

A floresta delimita o universo ancestral dos wajãpis. E eles estavam felizes em seus mundos natural e espiritual, dançando para o herói mítico Janejarã não destruir a humanidade, quando começou a se espalhar pelos rádios a notícia perturbadora: o fantasma da mineração voltava a assombrar. Um decreto assinado pelo presidente Michel Temer, em agosto de 2017, permitiria a abertura de áreas adjacentes ao território deles para que grandes empresas pudessem explorar legalmente cobre e outros minérios – ou, como dizem os wajãpis, “desequilibrar o mundo”, provocando a destruição da mata e da vida. A memória trágica de epidemias espalhadas por garimpeiros nos anos 1970 e 80 estava de volta.

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Uma wajãpi banha seu bebê ao lado dos panos típicos que secam. O tecido vermelho, tingido de urucum, é uma marca do povo indígena.
Foto de Victor Moriyama
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Filhos do cacique Piriri, os irmãos Apã e Japaita são responsáveis pela caça e pela pesca do grupo de 15 pessoas da aldeia Mukuru.
Foto de Victor Moriyama

Na teoria, o que o governo federal fez foi abolir a Reserva Nacional do Cobre e Associados (Renca), criada pelos militares em 1984. Mais de 30 anos depois, a reserva, de 46 500 quilômetros quadrados – o tamanho de uma Dinamarca –, nunca recebeu grandes grupos mineradores, mas os wajãpis, ainda assim, têm traumas por causa de invasões passadas de garimpeiros clandestinos. “A mineração não vem sozinha. No passado, veio garimpeiro, e com eles muita doença”, diz o professor e cineasta Kasiripina, um líder intelectual dos wajãpis. “O sarampo quase acabou com a nossa população.”

A Renca, entre o Amapá e o Pará, foi criada para reservar minérios para exploração futura. O efeito ao longo do tempo, contudo, foi inverso. Na prática, a luta indígena e ambientalista nos anos seguintes à ditadura consolidou no interior da Renca um mosaico de unidades de conservação, capazes de, até agora, garantir o equilíbrio do ambiente: o Parque Nacional das Montanhas do Tumucumaque, as Florestas Estaduais do Paru e do Amapá, a Reserva Biológica de Maicuru, a Estação Ecológica do Jari, a Reserva Extrativista do Rio Cajari, a Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Rio Iratapuru e as Terras Indígenas Waiãpi e do Rio Paru d’Este.

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    A aldeia Aramirã é o ponto central de encontro das 93 aldeias espalhadas por todo o território indígena. O lugar conta com placas de energia solar, posto de saúde, centro comunitário e escola.
    Foto de Victor Moriyama

    No ano passado, agredidos por uma canetada, os wajãpis recorreram às forças de seu mundo espiritual – que, para eles, não está separado das bases materiais de subsistência – para reagir. Uma mobilização articulou amplos setores da sociedade em defesa da Amazônia. Não era apenas a floresta: nas imagens que circularam em favor do mosaico de áreas protegidas, havia a presença de indígenas vestidos com saias vermelhas, de cabelos longos e com brilhantes discursos a favor da relação entre a sociedade e a natureza.

    “A mineração destrói a terra e a água”, reclama Kasiripina. “Não queremos isso. Nós cuidamos do rio e da floresta.” Nada mais justo: a luta veio de um povo que não suja a água, não constrói barragem e não destrói a mata para viver.

    Para compreender esse fenômeno de resistência, é preciso olhar para a história recente dos wajãpis – ou seja, como eles conseguiram se fortalecer nas últimas décadas, conhecer o mundo dos brancos, construir instrumentos legais de luta, reconquistar e reviver em seu território. Também é importante a perspectiva multidimensional do conhecimento wajãpi, que explica o mundo de forma bem mais ampla que o conhecimento científico ocidentalizado.

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    O cacique Seremeté trata madeira para fazer fogo em uma margem do Rio Kerekuru. Os peixes são defumados durante horas na fogueira. O preparo é conhecido como peixe moqueado, uma especialidade dos povos ribeirinhos da Amazônia.
    Foto de Victor Moriyama

    A historiografia diz que os wajãpis estavam no Rio Xingu, na margem sul do Rio Amazonas, provavelmente migrando desde o litoral brasileiro após as guerras de conquista contra portugueses, quando foram aldeados por jesuítas. Então atravessaram o rio e, depois, se refugiaram entre os vales e as montanhas da chamada Calha Norte do Amazonas. Viveram em paz, espalhados em pequenos grupos, sem histórico de conflitos violentos, até a ditadura no Brasil decidir ocupar a Amazônia nos anos 1970.

    Contatados, em 1973, pela Fundação Nacional do Índio (Funai), em meio aos trabalhos de abertura da BR-210, a Perimetral Norte, os wajãpis enfrentaram o avanço violento das frentes de expansão. Com a abertura da floresta pelos tratores, vieram caçadores, garimpeiros e madeireiros. E também missionários evangélicos.

    Responsável pelo contato com os wajãpis, em 1973, o sertanista Fiorello Parisi conta que foi guiado por garimpeiros até as aldeias. “Chegamos seguindo os rastros dos índios. Naquele tempo, o conceito da Funai era o de estabelecer contato com grupos isolados. Depois é que se viu o estrago que essa estratégia causa”, recorda o sertanista, nascido na Itália e radicado no Pará. “Eu levei na expedição um dos garimpeiros que já tinham invadido a aldeia deles. E os wajãpis não eram hostis. Não faziam a ligação entre as pessoas de fora e as doenças que transmitem.” Quando Parisi tentou expulsar os garimpeiros, nos anos seguintes, foi vítima de uma tentativa de homicídio: levou cinco tiros, em uma emboscada em Macapá, e sobreviveu por milagre.

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    Os índios caçam uma cotia que atravessava o Rio Mukuru já mordida pelas piranhas. Caça e pesca são as principais fontes de alimentação do grupo.
    Foto de Victor Moriyama

    Após quase desaparecerem nos anos pós-contato, os wajãpis começaram a se posicionar contra a ideia de desenvolvimento como algo linear. Para os seus líderes, cresceu nos últimos anos, com o atual governo brasileiro, a tendência de que a floresta deva abrir espaço à agropecuária e à mineração. “Nossa preocupação é com as próximas gerações. E não é um problema para os povos indígenas, mas para o mundo”, diz o professor Viseni, que ensina nas escolas das aldeias.

    Percebendo que o “centro do mundo” estava, cada vez mais, cercado, os wajãpis passaram a buscar alianças e a treinar pessoas não indígenas para reconhecer o mundo como eles. Nessa batalha pela sobrevivência, utilizaram a sua melhor arma: o conhecimento adquirido.

    Anos depois do contato, os indígenas passaram a treinar uma antropóloga belga para lutar como sua aliada, Dominique Tilkin Gallois, que se tornou professora de antropologia na Universidade de São Paulo. “Minhas pesquisas seguiam o caminho que eles precisavam”, diz Gallois. Inicialmente, ela trabalhou o território e a história, a mobilidade e a forma de vida – informações que vieram a embasar o laudo da demarcação da terra indígena, uma luta de 16 anos para garantir a integridade territorial. Aos poucos, os wajãpis a levaram a trabalhar sobre cura e xamanismo para, então, pesquisar temas da educação e o desafio de implantar escolas nas aldeias.

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    Uma wajãpi banha seu bebê ao lado dos panos típicos que secam. O tecido vermelho, tingido de urucum, é uma marca do povo indígena.
    Foto de Victor Moriyama

    A aliança com a antropóloga foi parte da estratégia de conhecer os não indígenas, ensiná-los a respeitar a floresta e criar novas redes de apoio. Juntamente com o Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé), fundado por Gallois e colegas da USP, os wajãpis conseguiram proteger a arte kusiwa, o sistema de representação gráfico nas suas pinturas corporais. A arte kusiwa foi o primeiro bem imaterial a ser considerado Patrimônio Cultural do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) – em 2008, seria reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco.

    Ainda em uma batalha por reconhecimento no espaço da política institucional, com o apoio da Rede de Cooperação Amazônica (RCA) e da Fundação Rainforest da Noruega, através do Iepé, os wajãpis elaboraram o primeiro Protocolo de Consulta e Consentimento de um Povo Indígena no Brasil, seguindo a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil em 2004. A partir de então, os indígenas conquistaram o direito de serem informados e consultados sobre projetos econômicos que afetem suas vidas e seus territórios – um direito fundamental, que visa estabelecer um novo modelo de diálogo com o Estado.

    No documento, os wajãpis pedem que o governo escute suas preocupações sobre o que “pode afetar diretamente a nossa vida, os lugares importantes da história de criação do mundo, a vida dos animais, os rios, os peixes e a floresta”. “Eles têm que chegar a acordos internos de como é que tomam decisões coletivas e dão legitimidade a essas decisões. E também decidir quem pode falar por eles”, diz Luis Donisete Grupioni, antropólogo que auxiliou os wajãpis no processo.

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    Um morador da Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Rio Iratapuru toma banho no Rio Jari com seu papagaio. Vizinhos da Terra Indígena Waiãpi, os moradores da RDS se tornaram aliados dos indígenas no combate e fiscalização do território contra a ameaça de garimpeiros.
    Foto de Victor Moriyama

    Os wajãpis, hoje, estão divididos em três associações: o Conselho das Aldeias Wajãpi (Apina), a Associação dos Povos Indígenas Wajãpi do Triângulo do Amapari (Apiwata) e a Associação Wajãpi Terra, Ambiente e Cultura (Awatac). Segundo explicam no documento, “não existe cacique-geral de todos os wajãpis. Cada grupo familiar tem um chefe, e um chefe não manda no outro chefe”. Portanto, sustentam, nenhum chefe representa todos, as coisas externas que os afetam devem ser conversadas pelo conjunto dos representantes. Foi por isso, também, que ficaram tão irritados com a decisão do governo federal de extinguir a Renca sem consultá-los.

    A batalha da Renca foi parcialmente vencida: o decreto de extinção da reserva foi revogado, tempos depois, por causa da grande mobilização. Mas o fantasma ainda assusta em tempos de incertezas políticas no país. Os wajãpis insistem: estão preparados para resistir com sabedoria.

    Hoje, os indígenas não deixam entrar garimpeiros na floresta protegida, assim como fazem rondas de fiscalização do parque nacional com agentes florestais. E conseguiram acesso à universidade, em Macapá – assim, aprendem com a sabedoria dos mais velhos nas aldeias ao mesmo tempo que acessam livros, filmes e tecnologias da pedagogia moderna. Por outro lado, enfrentam a onda crescente de evangelização, e contraditórias políticas de inclusão que incentivam o deslocamento para as cidades próximas.

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    O cacique Piriri fuma seu charuto enquanto outros wajãpis celebram com cantos tradicionais. Nessas festas, eles costumam consumir caxiri, uma bebida típica com forte teor alcóolico preparada da fermentação da mandioca.
    Foto de Victor Moriyama

    Viseni, que é estudante da licenciatura intercultural indígena na Universidade Federal do Amapá, conta que o seu povo “não é de ficar no mesmo lugar, por mais que 20, 30 anos. Por isso a gente não acaba com os recursos naturais”. Nas andanças dos wajãpis por seu território, assentados em pequenas comunidades, o conceito de bem viver é pleno de simplicidade: ter boa saúde, alimentação, preservar a cultura tradicional. “Isso, para nós, é viver bem.”

    Trafegando entre outras dimensões da existência, os wajãpis enxergam a mata ancestral como um ser vivo, uma extensão de suas vidas. “A terra também sente dor”, conta Kasiripina. “A nossa vida é com o espírito da floresta. É lá que está a nossa alma”, completa Viseni.

    Na crise que se instaurou na hipótese de uma nova área de mineração na Amazônia, em 2017, novos ambientalistas entraram em cena. Elegantemente trajando saias vermelhas, com o dorso despido e pintado de urucum, cabelos longos, gestos suaves, vozes quase nunca ouvidas por poucos dominarem o português, sem portar armas, mas sempre unidos, os wajãpis emergiram como intelectuais da floresta que se insurgiram contra a ameaça da destruição.

    Esta reportagem está na edição de agosto da revista National Geographic Brasil.

    Masakão escova os dentes às margens do Rio Mukuru no amanhecer. Na cultura wajãpi, cada elemento ...
    Masakão escova os dentes às margens do Rio Mukuru no amanhecer. Na cultura wajãpi, cada elemento da natureza – como as pedras e os rios – possui espíritos protetores. Pirajarã é o guardião dos peixes e Kajajara é o grande defensor das florestas.
    Foto de Victor Moriyama

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