Onde a Amazônia brasileira encontra a França: a vida na fronteira Oiapoque-Saint-Georges

Voilà, monsieur! Na divisa do Amapá com a Guiana Francesa, população do Brasi vê carros com placas da União Europeia e recebe troco em Euro, mas condições de vida ainda são precárias.

Por Sarita Reed, Vinícius Fontana
Publicado 16 de ago. de 2019, 07:45 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Fachada do salão de Otávio Araújo: aberto tanto para clientes brasileiros quanto franceses.
Foto de Sarita Reed

Pequenos barcos transitam pelas águas do rio Oiapoque. Há séculos, esse rio é usado pelos locais como estrada, um elemento de ligação. Desde 1900, porém, ele também serve como fronteira. De um lado, está o Brasil; do outro, a França – mais precisamente o território ultramarino da Guiana Francesa.

A cidade de Oiapoque, no Amapá, está na fronteira do Brasil com a União Europeia, o que a torna particular tanto no comércio quanto no estilo de vida da população. A proximidade também faz da Guiana Francesa o destino de imigrantes brasileiros que buscam melhores condições de vida ou mesmo trabalho em garimpos clandestinos.

Em Oiapoque, ruas apinhadas de churrascarias, açougues, lojas de bebidas e de roupas indicam o público-alvo dos empreendimentos da cidade: a população que vem das outras margens do rio. Carros com placas padrão União Europeia circulam pelas ruas e, às vezes, é mais fácil conseguir troco em euros do que em reais.

“A carne na Guiana é cara. Aqui, 1kg de filé mignon sai em torno de R$ 25. Lá, um prato feito barato custa 8 euros (R$ 35)”, relata Daniel das Neves, agente de segurança natural de Oiapoque, que também trabalha no mercado da família. “Os franceses gostam muito da comida brasileira, além do vestuário”, completa.

A dinamicidade do comércio também atrai trabalhadores de outras regiões do Brasil. O cabeleireiro Otávio Araújo, natural de Santarém (PA), chegou a Oiapoque há 15 anos por indicação de uma colega. Na fachada de seu salão, há uma grande placa de boas-vindas em francês e português. “A maioria dos meus clientes é francês. Como estamos perto da Europa, há uma maior circulação de dinheiro”, relata.

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    Vista de Oiapoque: do outro lado do rio está a Guiana Francesa.
    Foto de Sarita Reed

    Já no lado de Saint-Georges, é raro avistar carros com placas brasileiras. Esse fluxo comercial da Guiana Francesa para o Brasil é um diferencial em comparação a outras fronteiras. “Nas divisas do sul do Brasil, você tem o Real valorizado em relação às demais moedas. Aqui, nós temos o inverso, pois o Euro é uma moeda muito mais forte”, avalia Eliane Superti, professora da Universidade Federal do Amapá (Unifap).

    Com a presença constante de franceses, é inevitável que Oiapoque incorpore elementos da cultura vizinha. Vez ou outra, os oiapoquenses terminam frases com um “voilà”, por exemplo. “Muita coisa a gente já absorveu do lado francês. Hoje, nós temos vários tipos de comida que são de origem francesa, o carnaval daqui também tem influência deles”, exemplifica Isaac Silva, Diretor de Relações Internacionais da Prefeitura de Oiapoque.

    O que buscam os brasileiros

    Bicicletas e baguettes: cultura francesa enraizada em Saint-Georges.
    Foto de Sarita Reed

    Apesar de próximos, a disparidade entre os dois lados é visível. Enquanto Oiapoque enfrenta problemas com saneamento – menos de 25% das residências têm esgotamento sanitário adequado, conforme o IBGE[1] –, rede elétrica precária e estradas esburacadas, em Saint-Georges as vias são asfaltadas e boa parte da rede de efluentes fica sob o solo. Escolas e hospitais gratuitos e de boa qualidade são outros fortes atrativos do lado francês.

    Assim, muitos brasileiros atravessam o rio em busca de melhores serviços públicos. Felipe Deslandes, brasileiro que mora em Saint-Georges e trabalha como professor de física e química em uma escola local, relata que “há uma precariedade muito grande, estrutural, no ensino do Amapá, por isso muitos alunos vêm para cá para estudar”.

    O fator econômico é outro chamariz. Um trabalhador formal da Guiana Francesa recebe pelo menos 1,5 mil euros por mês (cerca de R$ 6,5 mil), valor aproximado do salário mínimo francês – seis vezes maior que o brasileiro (R$ 998). A taxa de desemprego, entretanto, é de 22% na Guiana Francesa, enquanto no Brasil é de 12% e, na França metropolitana, 9,3%[2]. “A Guiana Francesa, apesar de não ter o mesmo desenvolvimento econômico da União Europeia, faz parte da França, então existe um fluxo migratório natural para o lado francês”, aponta o procurador da república Antônio Diniz.

    Jane Bordalo, da ONG DPAC-Fronteira, auxilia brasileiros em situação de vulnerabilidade na fronteira, especialmente na prevenção à Aids.
    Foto de Sarita Reed

    Estima-se que cerca de 30 mil brasileiros residam na Guiana Francesa, 12% da população total do território. “Em sua maioria, são pessoas que no começo pensam em passar pouco tempo na Guiana para ganhar um dinheiro e depois voltar ao Brasil, comprar uma loja, um táxi, etc”, explica Stéphane Granger, professor na Universidade da Guiana Francesa. “Só que, geralmente, eles acabam ficando por causa dos filhos, que já estão escolarizados”.

    É o caso do piauiense José Macedo dos Santos, há 18 anos em Saint-Georges. Ele entrou ilegalmente no país, porém, conseguiu se regularizar depois de sete anos e hoje trabalha no setor da construção civil. “Levei meu filho ao Brasil para fazer uma visita, pensando em um possível retorno, mas infelizmente ninguém da minha família se acostumou. No primeiro dia, sofremos uma tentativa de assalto”, relata.

    Imigração ilegal

    O desejo de uma vida melhor leva brasileiros a atravessarem a fronteira clandestinamente. Parte dos que entram ilegalmente na Guiana Francesa sofre com problemas como falta de emprego, moradia e alimentação. “Esses migrantes não querem se entregar à polícia, não querem retornar ao seu país, e acabam se colocando na invisibilidade, o que gera mazelas como prostituição e tráfico de drogas”, afirma Jane Bordalo, coordenadora da ONG DPAC-Fronteiras, responsável por prestar apoio a brasileiros em situação de vulnerabilidade na zona fronteiriça.

    Bienvenue: boas-vindas em francês em um restaurante de Oiapoque.
    Foto de Sarita Reed

    Outra faceta da imigração ilegal diz respeito aos brasileiros que vão trabalhar nos garimpos ilegais da Guiana Francesa. “O migrante brasileiro que busca emprego nas cidades vai tentar se regularizar para ter uma boa vida, leis trabalhistas, etc. Já os garimpeiros não pensam nisso, pois vêm apenas para buscar ouro”, pondera Granger.

    Estima-se que, anualmente, mais de 10 toneladas de ouro sejam retiradas da Guiana Francesa de forma clandestina, sendo que a maioria dos garimpos é controlada por brasileiros. Em 2018, houve um recorde de 765 locais fechados, 19% a mais que no ano anterior.

    O monitoramento da atividade garimpeira é um desafio. “Como é uma faixa onde há um grande vazio populacional, isso facilita a mineração ilegal, seja do lado brasileiro, seja do lado francês”, afirma Diniz.

    Para prevenir e combater delitos transfronteiriços, o Brasil e a Guiana Francesa mantêm acordos de cooperação na área de policiamento. “A cooperação é muito importante para obter informações que ajudem na prevenção e repressão de crimes”, pondera Gérald Gortais, comandante da Gendarmerie de Saint-Georges, espécie de polícia militar francesa.

    “Quando encontramos um brasileiro infrator aqui, por exemplo, ficamos sabendo se ele tem ou não um mandado de prisão no Brasil através da cooperação. Se for o caso, conversamos com as autoridades brasileiras sobre quais são as providências cabíveis a serem tomadas”, explica Clément Dassance, chefe de cooperação policial franco-brasileira da Gendarmerie.

    A saída do Brasil do Pacto Global de Migração da ONU, anunciada em janeiro pelo presidente Jair Bolsonaro, pode afetar a situação dos brasileiros que vivem na Guiana Francesa. “Precisamos entender ainda quais serão as consequências dessa retirada, inclusive na fragilização das condições de vida dos imigrantes”, pondera Superti, da Unifap. Para Bordalo, a medida prejudica os brasileiros. “Tudo na fronteira – saúde, educação, transferência, traslado – dá-se dentro da cooperação transnacional”, diz.

    Independentemente dos impasses burocráticos e negociações, a fronteira segue a sua dinâmica. “A população aqui é muito rica culturalmente. É um lugar amazônico, muito peculiar, com valores próprios. Acho que, num futuro não muito distante, essa diversidade será muito importante para o povo”, diz Felipe Deslandes.

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      Rio Oiapoque separa os municípios de Saint-Georges, na Guiana Francesa, e Oiapoque, no Amapá, Brasil.
      Foto de Vinícius Fontana
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