Como a Lego foi da quase falência ao topo da indústria de brinquedos
À beira da falência em 2003, a fabricante de brinquedos dinamarquesa finalmente aprendeu a valorizar seus fãs adultos.
Adultos fãs de Lego como Phil Sofer, mostrado na imagem montando um modelo da Grande Pirâmide de Gizé, fizeram uma contribuição importante para a ascensão do fabricante de brinquedos ao topo da indústria. Mas especialistas afirmam que a transição da indicação de “exclusivamente infantil” para “adultos são bem-vindos” foi um processo difícil e demorado.
Quando os executivos da fabricante de brinquedos Lego souberam pela primeira vez que adultos compravam grandes quantidades de seus blocos de montar de plástico e se reuniam para criar seus próprios projetos de Lego, “consideraram o hábito muito fora do comum”, disse Paal Smith-Meyer.
“Antes do fim da década de 1990, a empresa não acreditava no valor de fãs adultos”, conta Smith-Meyer, que ocupou vários altos cargos na Lego entre 2000 e 2014. “Os líderes da empresa até mesmo pensavam que os adultos depreciavam a marca.”
Devido a alguns funcionários que buscaram mudar atitudes dentro da empresa, a Lego não tem mais vergonha de seus fãs adultos. Já se foi o tempo em que etiquetas nas caixas de Lego declaravam que o conteúdo era apropriado apenas para crianças entre 7 e 12 anos. Os antigos slogans “Just Imagine...” (“é só imaginar”, em tradução livre) e “Play On” (“aproveite”, em tradução livre) foram ofuscados pelo mais novo lema publicitário da Lego: “Adults Welcome“ (“adultos são bem-vindos”, em tradução livre).
Até mesmo artistas e atletas superastros como Ed Sheeran, Dwight Howarde e David Beckham se gabam abertamente de sua afinidade com os blocos de construção da Lego.
O principal material utilizado pelo artista visual Adam Ward é o Lego. Ele desenvolveu grandes projetos para a Microsoft, Zappos e outras empresas e acredita que “diversão e criatividade são dois dos elementos mais importantes da vida”.
Hoje, a Lego é a maior e mais lucrativa fabricante de brinquedos do mundo. Em 1999, os blocos da Lego receberam a premiação “Brinquedo do Século” e, em 2014, a revista Time os colocou em primeiro lugar na lista de “brinquedos mais influentes de todos os tempos”, à frente da boneca Barbie, do boneco do G.I. Joe e do Easy Bake Oven, um forno de brinquedo capaz de assar algumas receitas.
O entusiasmo e o poder de compra dos adultos fãs de Lego — ou Afols, na sigla em inglês, como são conhecidos no setor — desempenharam um papel importante na ascensão da empresa ao topo. Mas especialistas afirmam que a transição da indicação de “exclusivamente infantil” para “adultos são bem-vindos” foi um processo difícil e demorado.
Exclusivamente infantil
Ole Kirk Kristiansen, fundador da Lego, sempre quis comercializar seus produtos pensando exclusivamente em crianças. Quando criou o Grupo Lego em 1932, Kristiansen produziu brinquedos de madeira “recomendados a crianças, como um pato de puxar, um carrinho de corrida e um cofrinho”, revela Sarah Herman, historiadora de Lego, autora do livro A Million Little Bricks: The Unofficial History of the Lego Phenomenon (“Um milhão de blocos: a história não oficial do fenômeno Lego”, em tradução livre).
Em 1946, Kristiansen comprou uma máquina de moldagem por injeção e começou a produzir brinquedos de plástico. Em 1958, ele e seu filho Godtfred desenvolveram os primeiros blocos de pino e tubo de encaixar, cujo projeto básico mudou pouco ao longo dos anos (eles encaixam até mesmo com os blocos atuais).
Durante o crescimento da empresa nas seis primeiras décadas, poucos imaginavam que seus produtos poderiam agradar adultos tanto quanto crianças. “Não acredito que a intenção original da empresa fosse excluir adultos”, afirma o historiador de brinquedos Christopher Byrne. “Acredito apenas que nunca lhes ocorreu essa possibilidade.”
Ainda assim, os Afols já produziam impacto drástico nos resultados financeiros da Lego anos antes que a empresa percebesse seu valor. Há duas décadas, quando a Lego começou a produzir peças licenciadas inspiradas em filmes de sucesso como Star Wars e Harry Potter, foram os fãs adultos que esgotaram a maior parte dos produtos.
A certa altura, os adultos representavam 70% da clientela que comprava a linha Lego Mindstorms, robôs programáveis apontados na época pela revista Wired como sendo “o produto da Lego mais vendido de todos os tempos”. Afols também organizavam convenções não oficiais de fãs de Lego e interagiam em grupos de usuários online.
Apesar dos benefícios proporcionados pelos Afols à marca, os executivos dos escritórios corporativos da empresa em Billund, Dinamarca, pouco se interessavam por atender consumidores adultos. À medida que sugestões de produtos e correspondências de Afols de todo o mundo começaram a chegar aos montes, a empresa publicou uma declaração desanimadora: “não aceitamos sugestões não solicitadas”.
“Fãs adultos geralmente eram considerados um incômodo”, afirma Jake McKee, executivo da Lego entre 2000 e 2006 que supervisionou a equipe de Desenvolvimento da Comunidade Global da empresa.
Dias sombrios levam a um despertar
As atitudes começaram a mudar entre o fim da década de 1990 e o início da década de 2000, quando a anteriormente inabalável fabricante de brinquedos começou a enfrentar dificuldades. A Lego registrou seu primeiro prejuízo em 1998. Em 2003, quando apresentou um prejuízo de US$ 238 milhões, a empresa estava seriamente à beira da falência. “Foram dias sombrios na Lego”, conta McKee.
As dificuldades começaram quando a empresa se arriscou em empreendimentos que se afastaram muito de seu brinquedo principal, incluindo uma linha de roupas, parques de diversões, videogames e até joias com a marca Lego. “Havia uma expectativa de que a marca Lego era mais valorizada do que o próprio produto Lego”, afirma Smith-Meyer.
Além disso, as linhas da Lego produzidas pelas fábricas foram drasticamente simplificadas para que os clientes pudessem “pular a experiência de construção e ir direto à experiência de brincar”, explica McKee. A mudança deixou o brinquedo tão irreconhecível que os clientes perguntavam em qual corredor da loja estavam os brinquedos Lego mesmo estando bem em frente a eles, informou um lojista.
“É difícil ter um produto atemporal em um setor voltado à inovação”, afirma Daniel Junge, cineasta, diretor do documentário sobre Lego A Lego Brickumentary, de 2014. “As dificuldades surgiram quando a Lego tentou inovar em todos os pontos errados.”
A única vantagem da crise de identidade da empresa foi que os executivos finalmente começaram a ouvir Afols e seus aliados dentro da empresa.
“Durante anos, repeti a mesma mensagem de que era preciso começar a prestar atenção em nossos clientes adultos”, conta McKee. “A empresa tinha uma mina de ouro de oportunidades bem à sua frente, apenas não a percebia.”
Além de Smith-Meyer e McKee, alguns defensores dos Afols dentro da Lego incluíram Brad Justus, Tormod Askildsen e outros. “Éramos um bando de desajustados, pois nenhum diretor de criação estava disposto a fazer o que desejávamos”, brinca Smith-Meyer. “Após a crise, finalmente fomos libertados.”
Quando os orçamentos de projetos foram cortados devido à crise, “de repente todos queriam saber em quais projetos eu estava trabalhando com fãs adultos”, lembra McKee. O mesmo ocorreu com a equipe de marketing depois que seu orçamento de publicidade foi reduzido. “A Lego foi forçada a direcionar o marketing porque desconhecia outra forma de divulgar novos produtos e eventos.”
Por fim, a Lego começou a prestar atenção às multidões que participavam de convenções de fãs não oficiais em todo o mundo, bem como ao número impressionante de Afols reunidos em grupos de usuários online. Os executivos começaram a perceber que havia uma multidão de fãs apaixonados por Lego, muitos com habilidades únicas que podiam ser aproveitadas para ideias de projetos, engenharia de software, necessidades de marketing e até mesmo novos temas da Lego. A empresa formou uma Equipe de Engajamento de Afols e começou a promover ativamente adultos aficionados.
Ganhando confiança
Mas esse processo não ocorreu da noite para o dia, prossegue McKee. “Durante anos, nossos fãs organizaram tudo por conta própria, sem o nosso apoio. Havia muito ceticismo nos primeiros dias da nova iniciativa.”
Christina Hitchcock, que organizou a primeira convenção de Lego na metade do ano 2000, disse que, além de se sentirem ignorados e desprezados, alguns participantes da convenção também “se sentiam socialmente isolados devido a seu hobby” e inicialmente “temiam ser rejeitados de alguma forma por uma empresa cujo produto lhes havia trazido tanta alegria”.
Para acalmar esses receios, a Lego convidou Hitchcock e dois outros organizadores da convenção a Billund para conhecer os líderes da empresa, que, por sua vez, começaram a participar de grandes convenções de fãs — trazendo muitas vezes grandes quantidades de Legos.
O processo de reaproximação atingiu um marco em agosto de 2005, quando Jorgen Vig Knudstorp, presidente da Lego, participou de uma convenção de fãs e testemunhou por si mesmo o grande número de apoiadores adultos. “Não é possível descrever a vibração na sala quando o presidente da Lego subiu ao palco e disse: ‘vislumbro um futuro em que trabalharemos unidos’”, lembra Smith-Meyer.
A parceria recente produziria alguns dos temas e empreendimentos mais populares e lucrativos da empresa, como a série Lego Creator, a rede de embaixadores Ambassador Network da Lego, o programa VIP, a competição Lego League e a primeira convenção oficial de fãs da empresa: a Lego Con, em 2021.
Após alguns anos, qualquer um passou a poder enviar uma sugestão e, se receber apoio suficiente dos fãs, a empresa a produz. A linha Lego Ideas inspirada em fãs agora inclui coleções da série Big Bang Theory e do veículo e máquina do tempo DeLorean do filme “De Volta para o Futuro”.
As convenções de fãs também se tornaram o principal local de recrutamento de novos talentos. Alguns Afols notáveis recrutados incluem o projetista Jamie Berard e o arquiteto de Chicago Adam Reed Tucker.
Berard ingressou na empresa em 2005 e projetou muitas das coleções e temas Lego mais procurados, incluindo peças sazonais, coleções sobre trens e a série modular da Lego. “Jamie é como um superastro no mundo da Lego atualmente”, afirma o cineasta Junge.
Tucker começou a colaborar com a Lego em 2007 como idealizador e codesenvolvedor da Lego Architecture, popular linha de produtos que inclui estruturas icônicas como a Casa Branca dos Estados Unidos, a Torre Inclinada de Pisa e a Ópera de Sydney. Tucker também é um palestrante de destaque no programa Lego Education e um dos primeiros colaboradores do programa Master Builder da Lego, a equipe encarregada de construir esculturas de Lego em tamanho real em todo o mundo.
Assim como muitos Afols, Tucker se encantou com o Lego logo cedo. “Minhas melhores lembranças de quando era pequeno foi a capacidade de usar minha criatividade em três dimensões sem precisar cortar ou colar”, recorda ele. Os blocos de Lego eram “o material perfeito” para desenvolver habilidades artísticas e estimular a criatividade.
Assim como Tucker, McKee reconheceu que o apelo e o potencial dos Legos iam muito além de uma brincadeira. “Se não tivesse êxito em mais nada durante meu trabalho na Lego”, observa ele, “espero ao menos ter ajudado as pessoas a perceber que o Lego é mais do que um brinquedo, é um meio de criação, como aquarelas ou lápis que podem ser utilizados para conceber e criar obras de arte”.
McKee imaginou um dia em que a Lego poderia oferecer algo a todos, independentemente da idade: um vaso de flores de plástico em uma mesa, uma paisagem da cidade de Londres em uma estante ou retratos dos Beatles pendurados em uma parede — cada um deles, uma obra de arte totalmente feita de Legos.
“Entrei em uma loja da Target recentemente e vi três gerações de homens, todos parados no corredor da Lego olhando produtos de montar da Lego bastante diferentes”, conta McKee. Naquele momento, ele soube que seus esforços haviam sido recompensados.
“A Lego tratava seus clientes adultos como mercadorias; hoje, são tratados como parceiros”, prossegue McKee. “Se alguém sugerisse atualmente a um funcionário da empresa que a Lego deveria reduzir a interação com os Afols, isso seria uma ofensa.”