Caça de javalis movimenta grupos organizados no sul do Brasil
Legalizada há cinco anos, a prática alimenta o debate sobre o papel da caça na conservação.
Em Santana do Livramento, cidade gaúcha na fronteira com o Uruguai, sou logo avisado: “Aqui se pega javali até no laço!” Estamos em uma espécie de capital brasileira da caça. Nos últimos 20 anos, a região tem sido palco de embates de suínos selvagens com caçadores esportivos e proprietários de terras ansiosos em proteger as plantações e os rebanhos. Entre as espécies invasoras, o javali-europeu (Sus scrofa) está entre as mais danosas.
O problema começou no fim dos anos 1980, quando o javali atravessou naturalmente a fronteira. Mais tarde, o governo brasileiro permitiu a produção de carne de javali em cativeiro. Mas, na Serra Gaúcha, esse modelo acabou sendo um fracasso comercial – o resultado foi a soltura dos animais na natureza. Para piorar, contrabandistas liberaram javalis para induzir a caça esportiva. Combinados, esses fatores fizeram dos javalis uma praga. Com uma taxa de reprodução alta, os bichos logo infestaram os campos.
“O homem é o único predador do javali na natureza”, argumenta Marco Delgado, caçador esportivo de Santana do Livramento. Por isso, diante da pressão crescente de danos ambientais e econômicos, o Ibama emitiu, em 2013, uma instrução normativa consentindo o abate da espécie.
Sob o vento frio da madrugada gaúcha, eu me uno a Delgado e aos seus colegas rumo a uma fazenda na fronteira com o Uruguai. A matilha balança na caçamba da caminhonete, cada cão vestindo um colete contra as presas afiadas dos javalis e uma coleira de rastreamento. O grupo pratica o “estilo uruguaio”, que utiliza cachorros para perseguição e imobilização do javali e apenas uma faca para o abate. O golpe tem que ser certeiro, no coração. Há outros estilos de caça, sem cães, como a busca noturna com farol e a caça de espera. Na primeira, percorrem-se áreas de campo à noite com o auxílio de iluminação artificial para visualizar os javalis, abatidos com tiros a distância. Na caça de espera, utiliza-se uma estrutura elevada coberta, de onde se aguarda a vinda do javali, atraído pela ceva de milho. O uso de cães é muitas vezes questionado devido à violência do embate com os javalis.
O dia ainda nem raiou quando os cães enfim são libertos. Descemos por uma encosta e nos embrenhamos no mato denso e espinhoso. Marco, com ajuda do GPS, mantém o controle de seus cães, guiando-os com diferentes chamados. Eles finalmente localizam, excitados, o rastro de um enorme javali, que, acuado, rompe a linha dos cães e passa perto dos caçadores, sumindo de novo no mato. Os cães ficam exaustos depois de seguir e lutar com o animal selvagem, que ainda assim escapa. O dia terminaria sem outra oportunidade igual.
Em Santana do Livramento, vigora a orientação para produtores e caçadores legalizados da adoção de procedimentos mais responsáveis de caça e o uso de gaiolas de captura para o manejo do javali e o reequilíbrio das questões de conservação. “O aumento da população de javalis colocou pressão em espécies de peixes, répteis, aves e mamíferos”, diz Raul Paixão, responsável pela Área de Preservação Ambiental do Ibirapuitã. As aves que fazem o ninho no solo, como a perdiz e a ema, são afetadas, “além de muitos mamíferos, como o tatu-mulita, a lebre e a capivara”, continua Paixão.
O engenheiro florestal é o único agente na vastidão de Ibirapuitã, lembrando a figura de um xerife solitário. Com mais de 3 mil quilômetros quadrados, a APA engloba vastas planícies de gramíneas entremeadas por capões, matas ciliares, afloramentos rochosos e banhados. Nela estão cerca de 1,2 mil propriedades rurais, onde a principal atividade é a pecuária de rebanhos bovinos, ovinos e equinos. O cenário ideal para a proliferação do javali.
Com o apoio do grupo Javali no Pampa, formado por veterinários e biólogos, Paixão difunde o uso das gaiolas para a caça dentro da APA. Os resultados são animadores. Em 2016, dos mais de 900 javalis pegos no Ibirapuitã, cerca de 200 foram nas 11 gaiolas da reserva. Além de efetivo, o método parece ser também o mais ético.
“É preciso controlar a espécie com melhores técnicas e muita ciência”, diz Paixão. Ainda assim, a erradicação total do javali no país é improvável, argumentam os especialistas.