Caça de javalis movimenta grupos organizados no sul do Brasil

Legalizada há cinco anos, a prática alimenta o debate sobre o papel da caça na conservação.

Por Mauricio Susin
Publicado 24 de mai. de 2018, 18:57 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Ao amanhecer em Santana do Livramento, Marco Delgado se prepara para mais uma captura de javali. ...
Ao amanhecer em Santana do Livramento, Marco Delgado se prepara para mais uma captura de javali. A cabeça empalhada orna o galpão onde os caçadores guardam materiais da atividade.
Foto de Mauricio Susin

Em Santana do Livramento, cidade gaúcha na fronteira com o Uruguai, sou logo avisado: “Aqui se pega javali até no laço!” Estamos em uma espécie de capital brasileira da caça. Nos últimos 20 anos, a região tem sido palco de embates de suínos selvagens com caçadores esportivos e proprietários de terras ansiosos em proteger as plantações e os rebanhos. Entre as espécies invasoras, o javali-europeu (Sus scrofa) está entre as mais danosas.

O problema começou no fim dos anos 1980, quando o javali atravessou naturalmente a fronteira. Mais tarde, o governo brasileiro permitiu a produção de carne de javali em cativeiro. Mas, na Serra Gaúcha, esse modelo acabou sendo um fracasso comercial – o resultado foi a soltura dos animais na natureza. Para piorar, contrabandistas liberaram javalis para induzir a caça esportiva. Combinados, esses fatores fizeram dos javalis uma praga. Com uma taxa de reprodução alta, os bichos logo infestaram os campos.

A cavalo, Ademir Raminelli lidera a busca nos campos de Lajeado Grande, Serra Gaúcha. Os javalis ...
A cavalo, Ademir Raminelli lidera a busca nos campos de Lajeado Grande, Serra Gaúcha. Os javalis se alastraram após uma fracassada exploração comercial e a sua decorrente soltura na natureza.
Foto de Mauricio Susin
O produtor de ovinos Carlos Borba coloca milho em uma jaula na Área de Proteção Ambiental ...
O produtor de ovinos Carlos Borba coloca milho em uma jaula na Área de Proteção Ambiental do Ibirapuitã. De baixo custo, as armadilhas têm formato circular ou retangular (de 2 a 5 metros de diâmetro) e possuem um dispositivo de acionamento automático da porta.
Foto de Mauricio Susin

“O homem é o único predador do javali na natureza”, argumenta Marco Delgado, caçador esportivo de Santana do Livramento. Por isso, diante da pressão crescente de danos ambientais e econômicos, o Ibama emitiu, em 2013, uma instrução normativa consentindo o abate da espécie.

Sob o vento frio da madrugada gaúcha, eu me uno a Delgado e aos seus colegas rumo a uma fazenda na fronteira com o Uruguai. A matilha balança na caçamba da caminhonete, cada cão vestindo um colete contra as presas afiadas dos javalis e uma coleira de rastreamento. O grupo pratica o “estilo uruguaio”, que utiliza cachorros para perseguição e imobilização do javali e apenas uma faca para o abate. O golpe tem que ser certeiro, no coração. Há outros estilos de caça, sem cães, como a busca noturna com farol e a caça de espera. Na primeira, percorrem-se áreas de campo à noite com o auxílio de iluminação artificial para visualizar os javalis, abatidos com tiros a distância. Na caça de espera, utiliza-se uma estrutura elevada coberta, de onde se aguarda a vinda do javali, atraído pela ceva de milho. O uso de cães é muitas vezes questionado devido à violência do embate com os javalis.

mais populares

    veja mais
    Os cães farejam o solo em busca dos javalis. Os animais têm portes distintos: os mais ...
    Os cães farejam o solo em busca dos javalis. Os animais têm portes distintos: os mais esguios e rápidos são perseguidores e os mais robustos agem no confronto direto com a presa.
    Foto de Mauricio Susin
    Os javalis abatidos são limpos e depois a sua carne saborosa será consumida e compartilhada entre ...
    Os javalis abatidos são limpos e depois a sua carne saborosa será consumida e compartilhada entre famílias e vizinhos nas comunidades que praticam a caça.
    Foto de Mauricio Susin

    O dia ainda nem raiou quando os cães enfim são libertos. Descemos por uma encosta e nos embrenhamos no mato denso e espinhoso. Marco, com ajuda do GPS, mantém o controle de seus cães, guiando-os com diferentes chamados. Eles finalmente localizam, excitados, o rastro de um enorme javali, que, acuado, rompe a linha dos cães e passa perto dos caçadores, sumindo de novo no mato. Os cães ficam exaustos depois de seguir e lutar com o animal selvagem, que ainda assim escapa. O dia terminaria sem outra oportunidade igual.

    Em Santana do Livramento, vigora a orientação para produtores e caçadores legalizados da adoção de procedimentos mais responsáveis de caça e o uso de gaiolas de captura para o manejo do javali e o reequilíbrio das questões de conservação. “O aumento da população de javalis colocou pressão em espécies de peixes, répteis, aves e mamíferos”, diz Raul Paixão, responsável pela Área de Preservação Ambiental do Ibirapuitã. As aves que fazem o ninho no solo, como a perdiz e a ema, são afetadas, “além de muitos mamíferos, como o tatu-mulita, a lebre e a capivara”, continua Paixão.

    O engenheiro florestal é o único agente na vastidão de Ibirapuitã, lembrando a figura de um xerife solitário. Com mais de 3 mil quilômetros quadrados, a APA engloba vastas planícies de gramíneas entremeadas por capões, matas ciliares, afloramentos rochosos e banhados. Nela estão cerca de 1,2 mil propriedades rurais, onde a principal atividade é a pecuária de rebanhos bovinos, ovinos e equinos. O cenário ideal para a proliferação do javali.

    A equipe observa os campos e aguarda o melhor momento para o ataque. Para os defensores, ...
    A equipe observa os campos e aguarda o melhor momento para o ataque. Para os defensores, a caça legalizada tem um papel fundamental no controle da população de javalis. O homem é o único predador da espécie na natureza.
    Foto de Mauricio Susin
    Ademir Raminelli há mais de 20 anos se dedica à caça do javali na Serra Gaúcha. ...
    Ademir Raminelli há mais de 20 anos se dedica à caça do javali na Serra Gaúcha. As cabeças das presas são troféus que exibe na sala da sua casa.
    Foto de Mauricio Susin

    Com o apoio do grupo Javali no Pampa, formado por veterinários e biólogos, Paixão difunde o uso das gaiolas para a caça dentro da APA. Os resultados são animadores. Em 2016, dos mais de 900 javalis pegos no Ibirapuitã, cerca de 200 foram nas 11 gaiolas da reserva. Além de efetivo, o método parece ser também o mais ético.

    “É preciso controlar a espécie com melhores técnicas e muita ciência”, diz Paixão. Ainda assim, a erradicação total do javali no país é improvável, argumentam os especialistas. 

    mais populares

      veja mais
      loading

      Descubra Nat Geo

      • Animais
      • Meio ambiente
      • História
      • Ciência
      • Viagem
      • Fotografia
      • Espaço

      Sobre nós

      Inscrição

      • Assine a newsletter
      • Disney+

      Siga-nos

      Copyright © 1996-2015 National Geographic Society. Copyright © 2015-2025 National Geographic Partners, LLC. Todos os direitos reservados