Por dentro do Amazônia-1, primeiro satélite de monitoramento 100% brasileiro
O lançamento está previsto para junho de 2020 e o equipamento deve ajudar no monitoramento do desmatamento e da atividade agropecuária, principalmente na Amazônia.
No início de outubro, os dois módulos do Amazônia-1 permaneciam separados para os testes na sala de integração do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), ao lado de racks repletos de computadores com complexos softwares que simulam situações de funcionamento no espaço. É uma fase crucial no desenvolvimento do primeiro satélite de observação da Terra inteiramente desenvolvido pelo Brasil, na segunda das oito etapas de avaliações às quais será submetido.
“Depois dessa fase, a gente fica bem mais tranquilo, porque significa que não tem nenhum problema nos cabos e todos os subsistemas estão funcionando corretamente”, me conta Adenilson Roberto da Silva, coordenador do Programa de Satélites Baseados na Plataforma Multimissão do Inpe. O engenheiro estava de férias, a algumas horas de viajar, mas voltou ao Laboratório de Integração e Testes do instituto em São José dos Campos, município no interior de São Paulo, para contar detalhes do projeto em que trabalha há quase duas décadas.
O satélite passou com êxito na primeira etapa de testes, que consistiu na avaliação dos 6 quilômetros de cabo e 16 mil pinos. Agora, são analisados seus subsistemas. Para a terceira, ainda este ano, os dois módulos serão integrados para verificar o sistema como um todo. Em seguida, acontecerão os testes ambientais nas fases quatro e cinco. Os últimos três se darão na base de lançamento.
Na órbita a 752 km de altitude em relação à Terra, o Amazônia-1 terá como finalidades principais o monitoramento do desmatamento e da atividade agropecuária, sobretudo no bioma amazônico, e a validação da Plataforma Multimissão desenvolvida pelo Inpe. Ele também será utilizado para a observação da região costeira, dos reservatórios de água, de florestas naturais e cultivadas e desastres ambientais.
Como a estrutura da base de Alcântara, no Maranhão, não suporta o lançamento de um satélite de 640 kg, houve uma concorrência internacional vencida pela Índia. Se tudo ocorrer conforme planejado, o Amazônia-1 será lançado em junho de 2020 na base do Centro Espacial Satish Dhawan, em Andhra Pradesh. Além do orçamento de R$ 300 milhões para desenvolver a plataforma multimissão e o Amazônia-1, enviá-lo para o espaço custará aproximadamente R$ 110 milhões.
O projeto do satélite teve início em 2008 como parte da Missão Amazônia. Há outros dois satélites previstos no programa, que representam um “plano incremental, para a cada missão irmos melhorando”, diz Silva. Além de aprimorar a tecnologia, o objetivo é que equipamentos que tiveram de ser comprados fora sejam desenvolvidos pela indústria brasileira para o Amazônia-1B e o Amazônia-2. Silva considera que o Amazônia-1 mudará o patamar do Brasil em termos de desenvolvimento de satélite.
“Nós começamos do papel em branco, projetamos equipamento a equipamento, com 70% de investimento na indústria nacional, e só compramos aqueles impossíveis de fabricar aqui. Juntamos, testamos, integramos, vamos lançar, operar e tirar de órbita”, avalia o engenheiro. “Vamos entrar em um grupo de menos de 20 países que são capazes de fazer tudo isso.”
O Brasil em órbita
Desde os anos 1990, o Inpe participou da produção de 17 satélites. Os modelos do SCD, Saci e Satec foram desenvolvidos, montados, integrados e testados no laboratório em São José dos Campos. O SCD-1 e o SCD-2, com fins de coleta de dados, foram lançados com sucesso pelo foguete americano Pegasus, em 1993 e 1998, respectivamente. O Saci-1, o primeiro satélite científico brasileiro, foi lançado por um foguete chinês – mas uma falha no equipamento foi detectada posteriormente.
Os lançamentos do SCD-2A e do Saci-2, por sua vez, foram mal-sucedidos. Já o Satec, satélite tecnológico, foi destruído no acidente de 22 de agosto de 2003, na Base de Alcântara, no Maranhão, que resultou na morte de 21 tecnologistas do Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial.
O Brasil também desenvolveu seis satélites da linha Cbers em parceria com a China, voltados ao sensoriamento remoto. O Cbers-1, 3 e 4 tiveram montagem, testes e integração nas instalações chinesas. Este processo aconteceu no Inpe para os modelos 2, 2B e 4A. Os cinco primeiros foram lançados da base de Taiyuan, na China, entre 1999 e 2014. O Cbers-4 continua em órbita, no fim da vida útil. Já o Cbers-4A está na fase final de testes e tem lançamento previsto para dezembro deste ano, na mesma base chinesa.
Entre os três satélites de aplicação científica produzidos em parceria com a Argentina, dois deles tiveram êxito no lançamento, em 2000 e 2011. Além desses, o Inpe desenvolveu dois satélites brasileiros de telecomunicação, Brasilsat B1 e B2, lançados da base da Guiana Francesa.
Missão Amazônia
Na década de 2000, a Agência Espacial Brasileira e o Inpe decidiram desenvolver um equipamento que pudesse ser utilizado para diferentes missões. A proposta inovadora surgiu em um contexto de alta orçamentária no Inpe. Naquela época, o orçamento do instituto, vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia & Inovação, passara de R$ 100 milhões em 2003 para R$ 200 milhões em 2004.
A Plataforma Multimissão (PMM) é um módulo que compõe a estrutura do satélite e pode ser adaptado para objetivos variados, como sensoriamento remoto – caso do Amazônia-1 – ou aplicações científicas – observar uma galáxia, por exemplo. A PMM desenvolvida pelo Inpe poderá operar de 600 km a 1.200 km de altura em relação à Terra, em órbitas equatoriais, em baixa inclinação, ou polar. A finalidade da plataforma é fornecer serviços de monitoramento, alimentação, orientação e controle térmico para a carga útil do satélite.
Até ser aprovado para voo, o satélite passa por uma série de testes estruturais, mecânicos, térmicos e de interferência eletromagnética. Como o processo de desenvolvimento pode levar anos, “a ideia de ter uma plataforma multimissão é que, uma vez qualificada, nas próximas missões não precisamos passar por todo esse espectro. Só faço um teste necessário para acomodar o novo payload [carga útil]”, observa Silva.
Segundo o engenheiro do Inpe, isso representará uma redução de cerca de 50% dos custos e até 20 meses no prazo de desenvolvimento de satélite. “Existem outras plataformas no mundo similares a essa. Se inventar em satélite, corre-se um risco altíssimo. Mas o grande ganho disso aqui é que nós fizemos tudo. É um projeto 100% desenvolvido pelo Brasil.”
Enquanto andamos no entorno da plataforma, Silva detalha os seis subsistemas que nortearão o Amazonia-1. Cada um é composto por um conjunto de equipamentos responsáveis por determinada função, entre as quais a alimentação, o apontamento, o monitoramento, a orientação e o controle térmico.
Chama a atenção uma semi-esfera prateada que se ergue no centro da plataforma. A estrutura integra o subsistema de propulsão, pela primeira vez desenvolvido no Brasil, que serve para manter o satélite na órbita correta. Dentro dela está um líquido sob pressão altamente tóxico chamado hidrazina. Ao redor, quatro painéis pretos, as rodas de reação dentro das quais massas giram em mil rotações por minuto e direcionam o satélite. Já os motores contêm aquecedores que elevam a temperatura para cerca de 120ºC. “Quando esse líquido bate em contato com a câmara catalítica, vaporiza-se imediatamente e dá o jato que se vê”, conta Silva.
Apesar da elevada altitude significar praticamente o vácuo, algumas partículas de ar ainda podem frear o satélite e tirá-lo da órbita prevista. “De tempos em tempos, temos que acionar os motores para colocar o satélite na órbita nominal, correções na ordem de 20, 30 metros. Se a atividade solar estiver alta, fazemos as manobras com mais frequência”, diz Silva.
O subsistema de Controle de Atitude e Órbita e Supervisão de Bordo é responsável pelo gerenciamento do satélite e cuida de sua orientação. No caso do Amazônia-1, é o que define as órbitas polar — capaz de imagear o globo todo a cada 5 dias – e sol-síncrona, para acompanhar o movimento relativo do Sol ao redor da Terra e manter a iluminação das imagens.
Já o de telecomunicação é formado por dois computadores de bordo que controlam a altitude, outro menor que comanda a propulsão e um que gerencia as rodas. Esse conjunto envia as informações aos transponders, equipamentos que irradiarão os dados de funcionamento do satélite para a antena na Terra, instalada na estação do Inpe em Cuiabá (MT).
A alimentação de todo esse conjunto se dá pelo subsistema de suprimento de energia, composto por quatro baterias. Ao equipamento, são acoplados os dois painéis que compreendem o subsistema de geração solar. Quando iluminados pelo Sol, os painéis nutrem o satélite. No escuro, as baterias do PMM o alimentam.
Sobre a plataforma multimissão será integrado o módulo de carga útil, ou payload. Nele fica a câmera WFI (Wide Field Imaging), capaz de imagear 830 quilômetros por vez com uma resolução de 60 metros. Há também bateria, gravador de dados, um transmissor que enviará as imagens para a Terra e um novo experimento do Inpe: um tubo dourado responsável pelo subsistema de controle térmico.
“Quando uma parte do satélite está muito quente, é preciso transferir esse calor para um radiador ou para outra mais fria”, explica Silva. “Embora do lado de fora a temperatura do satélite varie brutalmente, todos os equipamentos de dentro têm que ser mantidos na faixa para a qual foram criados. Varia de equipamento para equipamento, mas internamente a faixa mais larga vai de 0 a 40ºC.”
Ao lado do hall de integração do satélite está o de testes ambientais. Logo na entrada vê-se uma enorme estrutura em formato de U invertido que simula a situação de vácuo no espaço e as temperaturas extremas às quais o Amazônia-1 será submetido. O satélite será colocado no interior da câmara. Uma vez fechada, o ar é retirado para criar o vácuo e injeta-se nitrogênio líquido na câmara, para simular as baixas temperaturas. Começa com -190ºC, depois sobe para 150ºC, em seguida reduz bruscamente, em um ciclo que dura aproximadamente 30 dias.
Em outra grande câmara, revestida por espumas em formatos pontiagudos, acontecerá o teste de compatibilidade e interferência eletromagnética. O satélite possui diversos componentes elétricos que emitem ondas e estarão sujeitos a entrar em campos de outros equipamentos, como o lançador, diz João Rizzetto Neto, engenheiro de projetos do Inpe. “Então, verificamos se o que o satélite emite está dentro das normas e dos valores máximos planejados. Ao mesmo tempo, emitimos ondas eletromagnéticas para ver se ele se comporta corretamente sob esse efeito.”
O Amazônia-1 também será submetido a um teste acústico, em outro grande compartimento vedado em que são emitidas ondas sonoras tão altas que estourariam os tímpanos de qualquer ser humano. Já em outro equipamento são simuladas as frequências de vibração presentes no foguete e no lançador
Rizzetto explica que, quando chegam à fase de teses ambientais, os satélites raramente apresentam falhas, pois até chegar a essa etapa final já foram “exaustivamente testados”, tanto as peças individuais como o equipamento como um todo. “É mais comum ter pequenos problemas, reparados pontualmente. A evolução da engenharia de satélite já possui uma experiência que, se o projeto for muito bom e cumprido corretamente, deve funcionar.”
Combate ao desmatamento
Há dois tipos principais de satélites de sensoriamento remoto. O óptico trabalha na área visível e na região do infravermelho próximo. Nele, a radiação não atravessa a nuvem, portanto não produz imagens do que está embaixo dela. O de radar, por sua vez, funciona com microondas capazes de atravessar as nuvens e detectar mudanças; entretanto, a leitura e o processamento das imagens que produz são mais pesados e complexos.
Cláudio Almeida considera que o Amazônia-1 e o Cbers-4A, ópticos, serão complementares ao monitoramento do desmatamento na Amazônia. Almeida é tecnologista senior do Inpe e coordenador do programa de Monitoramento da Amazônia e Demais Biomas. Atualmente, o Deter, sistema de alertas de desmatamento em tempo real do instituto, utiliza principalmente os dados do Cbers-4, que possui a mesma câmera WFI e os 60 metros de resolução. Quando os três satélites estiverem em órbita, o tempo de revisita de uma área específica pode passar de quatro para um a dois dias. Isso significa, por exemplo, maior possibilidade de conseguir uma imagem livre de nuvens.
“Essa fiscalização rápida demanda muita informação em um curto espaço de tempo”, observa Almeida. “Todo dia o que está surgindo de polígono novo? Onde? Uma área está em expansão? Então é importante ter mais satélites que complementem essa informação, e o Cbers-4A e o Amazônia-1 vão ampliar essa disponibilidade de dados, e dados 100% brasileiros. Isso nos garante também uma soberania e um controle técnico dessa ação.” Já o Prodes, sistema que calcula os dados anuais oficiais do desmatamento, demanda uma qualidade de imagem mais alta. Por isso, utiliza principalmente o Landsat, dos Estados Unidos, que tem de 20 a 30 metros de resolução e taxa de revisita de 16 dias.
Para Carlos Souza Junior, geólogo e pesquisador do Imazon, com o maior volume de dados brasileiros o desafio para instituições independentes será o processamento de dados em larga escala. “Para processar pequenas áreas, você pode ir lá, baixar e tudo o mais. Se quiser monitorar uma área da dimensão da Amazônia, mensalmente, com esse volume de dados que o Amazônia-1 e o Cbers-4A oferecerão, já falamos na escala de big data, que requer outro tipo de infraestrutura computacional.”
Para o Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD), o Imazon utilizava os dados do Cbers, do Inpe, mas em 2012 passou a operar na plataforma do Google Earth. Em parceria com a Nasa e a Agência Espacial Europeia, o Google disponibiliza gratuitamente os dados dos satélites americanos e europeus, fornece algoritmos e programas para processamento dos dados, que ocorre na nuvem da empresa, sem necessidade de download pelos usuários. Combinando os satélites, a taxa de revisita é de 5 a 8 dias. O Imazon, então, processa os dados, combina as imagens de satélite da primeira e da última semana do mês, elimina as nuvens e seleciona a melhor observação de determinado período para detectar a mudança da cobertura florestal em um período de aproximadamente 30 dias – método diferente do utilizado pelo Deter.
“O Inpe já tem uma política de dados abertos, mas o desafio é ter uma infraestrutura de processamento dos dados”, observa Souza Junior. “Hoje, a gente teria que baixar os dados, colocá-los na plataforma da Google e processá-los. Para armazená-los tem o custo de cloud. Mas vejo que há uma possibilidade grande de o Brasil avançar nessa política de ter uma cloud para processar seus dados e abri-los para usuários como universidades, ONGs e empresas.”