Fotos trágicas podem mudar o curso da história — mas nem sempre
A foto de uma vítima da covid-19 está dando o que falar na Indonésia e em outras partes do planeta. Mas o ocorrido provocará mudanças duradouras?
Corpo de uma suposta vítima da covid-19 em um hospital indonésio. Após a morte do paciente, os enfermeiros envolveram o corpo em filme plástico e aplicaram desinfetante para impedir a propagação do vírus.
A IMAGEM É assustadora. Um cadáver jaz rígido em um leito de hospital, envolto em filme plástico — como uma múmia moderna. O quarto é escuro, estéril, impessoal. Ninguém está ao lado corpo para chorar sua morte.
Suposta vítima da covid-19, a pessoa morreu em um hospital indonésio. Profissionais de enfermagem, com medo de infecção, envolveram o corpo com filme plástico e borrifaram desinfetante. Agora trata-se de uma pessoa totalmente anônima — características físicas ocultas, nome e sexo desconhecidos, um objeto aguardando para ser descartado.
O fotojornalista Joshua Irwandi capturou a imagem enquanto acompanhava profissionais de saúde indonésios em um trabalho realizado com o apoio da National Geographic Society. A fotografia foi rapidamente divulgada em todos os cantos do país de 270 milhões de habitantes, que está atuando de forma lenta no combate à pandemia.
“Está claro que o poder dessa imagem fomentou discussões sobre o coronavírus”, disse Irwandi, de sua casa na Indonésia.
Mas seria a fotografia suficiente para mudar o curso da pandemia no país?
Esse tipo de questionamento surge toda vez que uma fotografia reflete uma catástrofe atual. Imagens que retratam a morte ou o sofrimento são capazes de mudar políticas públicas ou o sentimento da população? Mesmo que isso já tenha acontecido no passado, as fotografias ainda detêm esse poder em um mundo saturado de imagens? E se as imagens realmente conseguem fazer a diferença no século 21, por que está demorando tanto?
“Está claro que o poder dessa imagem fomentou discussões sobre o coronavírus”
Do outro lado do mundo, uma fotografia de Julia Le Duc instigou as mesmas perguntas há um ano. Um jovem de bruços em águas turvas, sua filha ao lado dele de calça vermelha, também morta, ainda debaixo de sua camiseta preta, o braço dela em volta do pescoço do pai como se ele estivesse a carregando até o mar para um mergulho refrescante. Óscar Alberto Martínez Ramírez, refugiado de El Salvador, se afogou tentando atravessar o Rio Grande até os Estados Unidos com sua filha Valéria, que ainda completaria dois anos.
O fotógrafo James Rodriguez, que documentou os impactos em famílias guatemaltecas da política de tolerância zero de Donald Trump à imigração, disse pouco tempo depois que a foto havia viralizado: “Isso está além do que vimos até agora. Há uma espécie de frenesi, muita cobertura, muitas imagens. Mas então nos deparamos com algo desse tipo, que surge de repente. Uma cabeça dentro de uma camiseta. Não vemos rostos. Não vemos sangue.”
“Nós, que trabalhamos com essa temática, esperamos que a narrativa atue, em algum momento, como a última gota, influenciando a opinião da população e impactando as políticas públicas.”
No entanto, ele e outros se perguntam por que imagens de “estrangeiros mortos”, palavras usadas por ele, aparecem com muito mais frequência na mídia dos Estados Unidos do que imagens de norte-americanos mortos. “Com todas as mortes por armas nos Estados Unidos, você já viu uma única foto de uma criança morta?”
Rodriguez tem dois filhos. Uma imagem como essa lhe causa muita dor, assim como uma fotografia tirada há cinco anos de um refugiado sírio morto aos três anos de idade, afogado e levado até uma praia turca pela correnteza.
Até hoje, ele se lembra do nome do menino: Aylan.
Naquela época, em 2015, as previsões eram de que uma imagem tão impactante, fotografada por Nilufer Demir, pudesse mudar a opinião sobre os refugiados, que eram e continuam sendo alvo de desconfiança e ressentimento.
Imagens que retratam morte ou sofrimento tornam-se icônicas, de maneiras que ferem e ajudam. Dois dias depois que as fotos do pequeno Aylan foram publicadas, o primeiro-ministro britânico David Cameron anunciou que seu país acolheria milhares de outros refugiados sírios.
Contudo outras informações vêm à tona depois que as fotos tocam nossos corações. A garotinha chorando em uma famosa foto do fotógrafo John Moore da Getty Images, que documentava a separação de famílias na fronteira, era apenas uma foto de uma garotinha chorando. Sua mãe a pegou no colo dois minutos depois e tudo ficou bem.
Um ano depois que outra imagem de um menino sírio se tornou famosa — ele parecia ter sido espancado e estava ensanguentado, abandonado em uma cadeira laranja —, o assunto apareceu no noticiário na Síria em apoio ao governo. Ele havia se tornado um símbolo do terror do governo contra seus cidadãos, mas seus cabelos, antes desgrenhados e sujos, agora estavam arrumados, e seu rosto rechonchudo e sorridente. Mohamad Kheir Daqneesh, pai do garoto, criticou os rebeldes sírios em uma entrevista na TV, dizendo que temia pela segurança de seu filho depois que a imagem recebeu tanta publicidade. “Mudei o nome de Omran”, disse ele. “Mudei o corte de cabelo dele para que ninguém o filmasse ou o reconhecesse.”
Enquanto eu trabalhava nesta reportagem, relatei o fato a um editor de fotos da National Geographic. “Nossa, que ótima notícia”, respondeu ele. “Eu penso nele de vez em quando. É bom saber que está bem.”
Imagens têm o poder de nos afetar profundamente. Os sentimentos que elas evocam ficam em nossos corações, como as fotografias que tiramos de nossos entes queridos. O destino de uma pessoa, capturado por uma câmera, pode mudar o mundo ou pelo menos retratar sua dor?
'Protestos em todo o mundo'
Isso já aconteceu antes. Em 1972, no auge da Guerra do Vietnã, o fotógrafo da Associated Press, Nick Ut, vietnamita e com apenas 19 anos, havia acabado de fotografar um conflito quando um avião sobrevoou o local pulverizando napalm.
Em uma entrevista de 2012, ele relatou novamente o ocorrido: “Vi o braço esquerdo de uma menina queimando e a pele descascando das costas. Na hora pensei que ela fosse morrer…. Ela gritava muito e pensei: 'Nossa'”.
Seus editores discutiram se a foto deveria ser enviada. A menina estava nua e eles estavam preocupados se isso ofenderia os leitores. Mas um editor insistiu e os jornais de todo o mundo a publicaram.
“No dia seguinte”, disse Ut, “houve protestos contra a guerra em todo o mundo. Japão, Londres, Paris... Todos os dias depois disso, as pessoas protestavam em Washington, D.C., em frente à Casa Branca. A 'menina do napalm' estava em todo lugar”.
A menina sobreviveu depois que Ut levou ela e outras crianças a um hospital e ameaçou divulgar o caso na mídia caso os profissionais do local se recusassem a prestar atendimento ao grupo. Hoje, uma mulher de meia idade, Kim Phuc chama o fotógrafo de “Tio Nick”.
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Indivíduos desconhecidos
Após o furacão de 2008 no Haiti, o fotógrafo do Miami Herald, Patrick Farrell, foi elogiado por uma imagem de outra criança nua, desta vez um menino, empurrando um carrinho de bebê sujo e quebrado, aparentemente recuperado dos escombros lamacentos ao seu redor. Novamente, um garoto fazendo as pessoas se perguntarem sobre a história dele, seu futuro e forçando-as a contrastarem a realidade dele com as suas.
Farrell, que ainda trabalha para o Herald, me contou em 2015 que a imagem foi uma das primeiras a ser publicadas após as primeiras tempestades no Haiti. Juntamente com outros fotógrafos, ele ganhou um prêmio Pulitzer. “Eram fotos impressionantes, gráficas e difíceis de olhar”, disse ele, “mas abriram os olhos das pessoas, especialmente em Miami, que fica a duas horas de avião. A imagem tirou as pessoas de suas vidas extremamente confortáveis.”
Mais de US$ 4 bilhões foram prometidos ou doados após o terremoto. Ninguém sabe o que aconteceu com o garoto, com quem Farrell nunca falou. Ele acredita que a imagem seja impactante porque “está tudo destruído, mas o garoto colocou algumas coisas no carrinho e o empurrou para algum lugar. Não sabemos para onde.”
O rosto de outra refugiada também retratou uma crise e cativou pessoas ao redor do mundo. A imagem do fotógrafo Steve McCurry de uma jovem afegã em um campo de refugiados no Paquistão foi capa da edição de junho de 1985 da National Geographic e permanece gravada na memória de milhões de pessoas: uma garota com cabelos despenteados, a cabeça coberta por um xale vermelho-alaranjado, seus olhos enormes e penetrantes refletiam... Medo? Provocação? Determinação?
McCurry voltou ao Paquistão 17 anos depois e encontrou uma mulher cansada e sofrida. Sharbat Gula nunca tinha visto sua foto icônica. Ela não tinha sido fotografada desde então. Mas seus olhos verdes são reconhecidos e lembrados por terem amolecido corações de pedra em todo o mundo.
À espera de mudança
Os fotógrafos tendem a acreditar que imagens impressionantes têm o poder de penetrar no coração das pessoas e mudar políticas públicas ineficientes. Farrell tinha certeza de que a imagem do garoto sírio afogado forçaria uma ação contra a crise de refugiados que já dura décadas.
“As pessoas nos Estados Unidos veem matérias desse tipo o tempo todo. É como um ruído que elas ouvem e depois ignoram.”
Mas, até agora, a Síria permanece sitiada em todos os sentidos, seu povo ferido e morrendo.
A crise continua na fronteira entre os Estados Unidos e o México e em países tomados por conflitos ao sul.
E, na Indonésia, as reações à imagem da vítima da covid-19 foram hostis, incluindo do diretor da força-tarefa do governo para o coronavírus, que questionou a ética de Irwandi por tirar a foto. Em resposta, a associação de fotojornalismo do país disse que a foto atendia aos padrões jornalísticos.
Se fotografias impactantes podem realmente mudar a história nos dias de hoje, a história parece não estar com pressa.