Cão mais velho da América ajuda a resolver enigma do DNA canino
Acha que seu cãozinho tem algo em comum com os cães que andavam pelas Américas há 10 mil anos? Talvez sim, mas não é o que você pensa.
Cerca de 10 mil anos atrás, no local hoje conhecido como Koster, Illinois, nos EUA, um cão morreu. O grupo de caçadores e colhedores que o adotou cuidadosamente colocou o corpo do cão para descansar em sua própria cova junto com outros humanos, deitado de lado, como se estivesse dormindo.
Hoje, isso pode não parecer surpreendente – afinal, cães modernos estão mais para “bebês peludos” do que para animais de estimação. Mas esse cão de Illinois e mais dois outros cães enterrados perto dele são incríveis: Eles são os cães enterrados individualmente mais antigos que já foram encontrados no mundo, de acordo com uma nova pesquisa no servidor Biorxiv. E mais, eles são a evidência física mais antiga de cães nas Américas.
Os restos mortais dessas criaturas também foram a chave para solucionar uma importante questão canina: O que aconteceu com os cães da Antiga América do Norte? Eles cruzaram com cães trazidos pelos colonizadores europeus? Quais raças de hoje os têm como ancestrais? Um segundo estudo, publicado na revista Science, usa uma bateria de análises de DNA de cães modernos e antigos para buscar pistas.
Os resultados sugerem que os cães europeus que vieram com os colonizadores nos anos 1500 substituíram completamente os cães americanos, como o que foi enterrado em Koster 10 mil anos atrás. As marcas desses cães antigos, no entanto, são preservadas de uma maneira inusitada: tumores venéreos caninos transmissíveis.
Falando sem rodeios, o legado genético dos antigos cães norte-americanos é “continuar dando aos cães, sabe, câncer anal”, diz Angela Perri, zooarqueóloga da Durham University e autora dos dois estudos.
Ossos enterrados
Desenterrados nos anos 1970, os cães Koster de Illinois tinham, supostamente, 8,5 mil anos, de acordo com datação por radiocarbono de carvão encontrado próximo aos restos. Desde então, a descoberta de outros cães mais velhos colocaram a data do início da domesticação de cães nas Américas em 9,2 mil anos atrás. Mas ao datar os esqueletos diretamente, Perri e seus colegas descobriram que os cães de Koster na verdade têm cerca de 10 mil anos – os mais velhos das Américas.
Os cães de Koster não são os cães enterrados mais antigos – esse prêmio vai para uma cova de 14 mil anos na Alemanha, onde habita um cão muito amado e seus dois humanos. Os cães de Koster, no entanto, são os mais antigos já descobertos que tiveram seu próprio funeral.
Os cães de Koster não têm marcas de cortes em seus corpos, então talvez eles fossem amigos, não comida, o que não é o caso de todos os cães antigos. E seu funeral marca uma certa honra aos cães mortos. Em muitos lugares, alguns cães eram “claramente jogados no lixo”, diz Perri, o que resulta em “pedaços de cães espalhados pelo local”. Cães enterrados individualmente, no entanto, provavelmente representam os cães que eram caçadores adeptos, diz ela.
A descoberta mostra que, desde muito cedo nas Américas, “cães tinham um lugar especial nessas comunidades indígenas”, diz Robert Losey, da Universidade de Alberta, que não fez parte deste estudo. “Eles eram os únicos animais com os quais as pessoas viviam e eram os únicos animais que as pessoas enterravam”.
Genética cabeluda
Nossos cães modernos são descendentes de lobos-cinzentos, mas quando, como e até mesmo quantas vezes eles foram domesticados, continua sendo uma dúvida. A maioria dos pesquisadores acredita que há 16 mil anos os cães foram domesticados. E logo depois, cães começaram a viajar com seus humanos pelo mundo, inclusive para as Américas.
Muitas pessoas gostam de acreditar que seus animais de estimação – raças “antigas” como cães da Carolina, cães pelados mexicanos e chihuahuas, por exemplo – são descendentes desses cães originais pré-europeus. (Raças árticas como malamutes-do-alasca e huskies siberianos, chegaram nas Américas apenas cerca de um milênio atrás e parecem não ter se misturado com cães do sul.)
O DNA do cão moderno, no entanto, é complicado devido a milhares de anos de cruzamento, Perri explica. “Cães modernos são uma bagunça”, ela diz, citando a descrição favorita do tema do autor do estudo, Gregor Larson.
Então, para organizar a história dos cães da América do Norte, pesquisadores resolveram analisar restos mortais. É aí que entram os cães de Koster.
Para descobrir a origem e destino dos cães que pisaram primeiro nas Américas, Perri e seus colegas analisaram 71 genomas mitocondriais (DNA passado da mãe para o filhote) e sete genomas nucleares de restos norte-americanos e siberianos, inclusive dos cães de Koster. Depois, eles compararam a genética de mais de 5 mil cães modernos, inclusive cães de aldeias e raças que acreditam que sejam parte da antiga linhagem americana.
Os resultados sugerem que todos os antigos cães das Américas, antes do contato europeu, têm um ancestral siberiano em comum, mas sua assinatura genética é diferente das de quaisquer outros cães do mundo. Parece que esses cães viajantes desapareceram completamente geneticamente, sendo quase completamente substituídos por cães da Eurásia trazidos por colonizadores europeus nos anos 1500.
“Achávamos que haveria algum cruzamento”, diz Perri. Mas a genética diz o contrário. Apenas cinco dos mais de 5 mil cães modernos testados mostram evidência desses cães pré-contato europeu. Um único chihuahua e um cão vira-latas tinham menos de 2% de DNA do antigo cão americano. Três cães de Carolina tinham traços do antigo DNA, um tinha até 33%, mas outro que foi testado, não tinha nenhum traço.
“Todo o resto que testamos tinham origens da Eurásia”, diz ela. “Tudo que as pessoas imaginam quando pensam nos cães americanos clássicos... são cães da Eurásia”. Não está claro para nós qual era a aparência desses cães, adiciona Perri.
Há algumas possíveis causas para esse desaparecimento. Uma delas, cães europeus, assim como seus humanos, podem ter trazido doenças às quais os cães americanos não eram imunes. Colonizadores europeus provavelmente favoreciam suas próprias raças. “Havia regras muito claras sobre não permitir que seu cão ‘puro’ europeu cruzasse com cães norte-americanos”, diz Perri. Esses cães eram vistos como “selvagens” e “perversos”, diz ela. E, muitas vezes, quando os europeus matavam povos nativos, matavam seus cães também.
Losey concorda que a extensão da substituição e falta de cruzamento é impressionante. “Não há muita evidência genética para isso”, ele diz.
A cauda dos cães americanos
Baseado nas análises dos pesquisadores, a história dos cães americanos pode ser contada em quatro atos.
A primeira onda de humanos migrando através da ponte terrestre de Bering para as Américas provavelmente vieram sem cães, fazendo a jornada entre 25 e 15 mil anos atrás. Mas os imigrantes amantes de cães vinham logo atrás, provavelmente chegando antes que a ponte sumisse, 11 mil anos atrás.
A segunda cena acontece no Norte, onde o povo Thule passou com seus cães do ártico apenas mil anos atrás. Apesar desta parte da história ser um pouco mal contada, esses cães pareciam não se misturar, diz Perri, sem evidências genéticas de cruzamento com filhotes.
Depois, por volta de 1492, os colonizadores europeus chegaram, trazendo suas raças de Eurásia e devastando as populações de antigos cães americanos. O ato final é uma segunda introdução de huskies durante a corrida do ouro nos anos 1900. Esses cães pareciam geneticamente parecidos com os cães de Thule, diz Perri, e pareciam vir da mesma população de cães ibéricos.
Apesar da história não ser completamente nova, ela adiciona mais um nível de detalhes genéticos que faltavam nos estudos passados, diz Krishna Veeramah, um geneticista da Stony Brook University que não estava envolvido no estudo. “Não teve nada que eu tenha visto e pensado: ‘isso está mudando nosso entendimento’”, diz ele. “Mas eu acho que, sob uma perspectiva técnica, é importante.” A antiga era do DNA e o número de genomas caninos nesse novo estudo soma a uma crescente base de dados de DNA canino que vai ajudar futuros pesquisadores a fazer grandes perguntas sobre relações de cães.
Acho que o trabalho deles confirma opções muito aceitas”, Losey adiciona. “Mas faz isso com uma base de dados muito maior do que qualquer outra pessoa jamais usou.”
Legado não auspicioso
Apesar do cão americano original provavelmente já ter desaparecido, eles deixaram um legado na forma de tumores venéreos caninos transmissíveis.
Apesar de nojentos, esses tumores não costumam ser letais. Cada vez que as células do tumor transmissível passam de um cão para o outro (normalmente pelo acasalamento), traz consigo uma cópia do DNA original. Por isso, ele carrega uma cópia do “cão fundador” que criou a doença, explica Elaine Ostrander, chefe do ramo de genética do câncer e genomas comparativos na National Human Genome Research Institute, que não estava envolvida no estudo.
A análise de tumores modernos sugere que o Paciente Zero viveu 8.225 anos atrás – e provavelmente era um cão norte-americano. “A linhagem de células propagada a mais tempo no mundo, isso é realmente muito impressionante”, diz Ostrander, adicionando que os resultados do novo estudo podem ajudar pesquisadores a rastrear a origem de outras doenças.
“Nós, de outros grupos, temos procurado essas assinaturas de antigos cães norte-americanos em raças modernas”, diz Heidi Parker, cientista do Dog Genome Project no National Human Genome Research Institute. “A crença de que há uma assinatura preservada de um desses antigos cães norte-americanos que estão extintos nesse tumor, que vem se perpetuando há tanto tempo, é muito legal.”
Então, se você ainda está decidido a ter um cão de uma antiga raça americana, encontrar um cão com um tumor venéreo pode ser a sua melhor aposta, brinca Perri. “É como se o antigo cão americano não estivesse morto; eles vivem através do câncer venéreo”, diz ela. “É uma história um pouco triste, mas é a que temos.”