Livro ‘perdido’ com primorosas ilustrações científicas redescoberto após 190 anos

Décadas de busca revelam plantas ilustradas de forma excepcional e anotações detalhadas realizadas por uma mulher americana que residia em Cuba nos anos 1800.

Por Czerne Reid
fotos de Robert Clark
Publicado 24 de abr. de 2019, 23:17 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
A Caesalpinia pulcherrima é uma espécie de arbusto com flores encontrada nos trópicos e subtrópicos das Américas. Essa ilustração da planta, que pode ser vista nos arquivos do Departamento de Obras e Manuscritos Raros da Universidade Cornell, é o trabalho de Anne Wollstonecraft, que criou volumes de ilustrações botânicas detalhadas no século 19, em Cuba. Redescoberto depois de quase 200 anos, o seu trabalho inclui fatos históricos, aplicações medicinais pelos indígenas, poesia e observações pessoais sobre mais de cem tipos de plantas.
Foto de Robert Clark

Perdido por 190 anos, um manuscrito composto por três volumes repletos de ilustrações coloridas da flora cubana foi encontrado na região norte do Estado de Nova York.

Capas desajeitadas em papelão marmorizado e uma folha de rosto manuscrita em letra cursiva anunciam Espécies de plantas e frutas da ilha de Cuba, de A.K. Wollstonecraft. Tal simplicidade contrasta com o conteúdo desses pequenos e gastos volumes. Nas diversas páginas do livro, estão 121 ilustrações mostrando com riqueza de detalhes plantas como a Cordia sebestena vermelha, a extremosa púrpura e a trompete-de-anjo branca.

São 220 páginas que acompanham as ilustrações contendo descrições em inglês referentes a fatos históricos, aplicações medicinais pelos indígenas, poesia e observações pessoais. Seguindo fielmente as convenções científicas, as ilustrações mostram a vegetação, os ciclos de vida e as dissecações das partes reprodutivas. Algumas plantas prensadas também estão no material. A autora escreveu que não consultou botânicos ou recebeu qualquer ajuda em seu trabalho.

Anne Sauer, diretora do Departamento de Obras e Manuscritos Raros da Universidade Cornell, folheia o manuscrito de Wollstonecraft no arquivo da biblioteca.
Foto de Robert Clark

“Uma joia da literatura botânica de Cuba”, é assim que o botânico Miguel Esquivel descreve o trabalho, classificando-o como uma das maiores descobertas desse tipo dos últimos tempos.

“Eu considero o manuscrito de Anne Wollstonecraft de extrema importância”, afirma o etnobotânico Paul Cox, diretor-executivo do Brain Chemistry Labs em Jackson, Wyoming. “Embora as plantas retratadas por ela em suas ilustrações e as descrições sejam, em geral, comuns, os detalhes das anotações sobre usos medicinais pelos indígenas agregam toda uma nova dimensão no entendimento de sua possível utilidade, conhecimento esse que hoje pode orientar pesquisadores na descoberta de novos medicamentos.”

Por exemplo, ela observa que as raízes da árvore da graviola eram utilizadas como antídoto contra envenenamento causado por peixes e suas folhas para tratamento antiparasitário e antiepilético. Ela também sugere que o nome em inglês para graviola, “soursop” (sour em inglês significa azedo), deriva de uma aproximação fonética do nome dado à árvore pelos habitantes indígenas da ilha, suir sach, que pode explicar de alguma forma o apelido paradoxal de uma fruta descrita como excessivamente doce.

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    Essa ilustração, intitulada “Largerstroemia”, é diferente porque está incompleta, com as florações coloridas e as folhas apenas traçadas a lápis. “Acredito que ela tenha utilizado essa técnica para representar o que estava vendo, que eram as flores da planta florescendo no início da estação, com as folhas começando a brotar,” diz Anne Sauer da Universidade Cornell. “Talvez sem as folhas totalmente crescidas, ela tenha usado o lápis para mostrar que estava prevendo como seria a aparência das folhas depois de nascidas e ela queria deixar claro que esse desenho não se baseava em sua efetiva observação”.
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    E se não fosse pelo historiador Emilio Cueto, advogado aposentado que se autodescreve como colecionador de tudo que é cubano, Wollstonecraft e seu trabalho poderiam ter permanecido na penumbra.

    De boca em boca

    Em 1828, os defensores de exilados cubanos e dos direitos humanos Padre Félix Varela e José Antonio Saco mencionaram no periódico escrito por eles, o El Mansajero Semanal, uma mulher americana em Cuba que desenhava plantas cubanas. Quase um século depois, em 1912, o acadêmico e pensador cubano Carlos M. Trelles citou o trabalho sem nunca tê-lo visto. As citações diziam que os membros da New York Horticultural Society haviam apreciado o trabalho da respeitada naturalista Maria Sibylla Merian, cujo célebre trabalho de 1705 Metamorphosis insectorum Surinamensium  era considerado como de grande influência ao ramo da entomologia.

    “Essa comparação desencadeou a minha crença da importância desse trabalho”, afirma Cueto. “As pessoas costumam exagerar, mas não a esse ponto”.

    Foi então que iniciou sua busca.

    Seguindo as indicações de Trelles, Cueto incluiu o trabalho de Wollstonecraft na bibliografia do catálogo da exposição sobre a flora e a fauna cubana de sua curadoria apresentada em 2002 no Museu HistoryMiami sem nunca sequer ter visto o trabalho ou saber se ainda existia.

    “Essa era a realidade das redes acadêmicas da época”, conta Anne Sauer, diretora do Departamento de Obras e Manuscritos Raros da Universidade Cornell. “Parte dos registros acadêmicos incluíam uma expressão acadêmica que dizia ‘eu nunca vi, mas ouvi dizer que existe e que é importante’. Você acaba se contagiando com o universo da história passada de boca em boca em certos casos”.

    Cada documentação sobre o manuscrito e menção histórica da autora apresentava uma grafia diferente de seu último nome. Algumas menções utilizavam seu nome de solteira, Kingsbury, e seu primeiro nome era relatado como Anne e Nancy alternadamente — fãs de Jane Austen entenderão.

    Cueto já havia pesquisado esse manuscrito mais de 100 vezes em catálogos online de bibliotecas, mas não obteve sucesso, até que em março de 2018 finalmente o encontrou. O nome da autora estava com a grafia incorreta, “Wollstonecroft,” devido à última vogal cursiva ambígua constante na folha de rosto do manuscrito. De qualquer modo, Cueto sabia o que tinha encontrado.

    “Eu disse: não acredito! Essa é aquela mulher. Era isso o que eu estava procurando. Era isso o que todos  estavam procurando”,  exclamou Cueto. “O material estava escondido por causa de uma série de erros ortográficos e acessos malsucedidos aos catálogos.”

    Mesmo após esse momento eureka, ele ainda não havia encontrado o manuscrito verdadeiro; o catálogo não mostrava o local onde estava. Foi então que ele contatou a Reitora da Biblioteca da Universidade da Flórida Judith Russell, com quem havia trabalhado nas exposições sobre Cuba. Ela descobriu que o material estava na Universidade Cornell, que havia sido entregue em 1923 por um dos docentes, descendente da autora. Contagiada pela animação de Cueto, Russell o acompanhou durante a viagem de campo para Ithaca para ver os volumes.

    “Nós dois tentamos conter as nossas expectativas,” conta Russell. “Ao chegarmos lá, foi inacreditável ver as fenomenais ilustrações botânicas com páginas repletas de relatos.”

    A árvore das mulheres

    Com base em investigações genealógicas, Russell relata que Wollstonecraft faleceu em 1828 aos 46 anos, deixando anotações incompletas, notas não transcritas e papéis de rascunho soltos entre os volumes.

    “Ela ainda não tinha acabado,” afirma Russell. “Sinto até arrepios em pensar que quase perdemos esse material”.

    Cueto agora está trabalhando para apresentar Wollstonecraft para as novas gerações, a cunhada da famosa defensora dos direitos das mulheres, Mary Wollstonecraft. Ele visitou Matanzas, a cidade adotada por ela, em busca de seu túmulo e de menções contemporâneas em arquivos de jornais locais e deduziu que ela estava entre os americanos que foram para a ilha caribenha no século 19 por questões de saúde.

    Sua maravilhosa ideia inclui exibir o manuscrito recém-descoberto no Museu Nacional de Mulheres nas Artes em Washington, D.C., onde poderá ser visto por milhões de pessoas que passam pela capital do país. Ele também vislumbra o manuscrito finalmente publicado como livro, com um prefácio narrando como esse trabalho perdido foi encontrado. Ele também quer que o livro seja traduzido para o espanhol para que os leitores cubanos possam desfrutá-lo.

    Até o momento, o manuscrito já foi digitalizado e está disponível para acesso online.

    “Nós descobrimos uma nova cientista e artista americana que ficou esquecida nessas disciplinas,” diz Cueto. “Se ela tivesse vivido por mais tempo, teria sido um grande nome da ilustração”.

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