Estudo controverso aponta a origem do homem moderno

Pesquisa reacende longo debate sobre como e onde nossa espécie surgiu.

Por Maya Wei-Haas
Publicado 30 de out. de 2019, 17:30 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Novo estudo afirma que antigas áreas alagadas ao sul do rio Zambeze formaram um oásis de ...
Novo estudo afirma que antigas áreas alagadas ao sul do rio Zambeze formaram um oásis de onde todos os humanos modernos surgiram. Hoje, a região é um dos maiores salares do mundo, conhecida como Salar de Makgadikgadi.
Foto de Beverly Joubert, Nat Geo Image Collection

UMA CAMADA DE PÓ BRANCO cobre a paisagem árida do Salar de Makgadikgadi, em Botsuana, um dos maiores do mundo. Mas cerca de 200 mil anos atrás, esse cenário vazio era uma região alagada repleta de vida, caracterizada por tons de azul e verde. Essa paisagem exuberante, localizada no meio de um deserto inóspito no sul da África, certamente teria sido um bom lugar para os primeiros humanos chamarem de lar.

Agora, um novo e controverso estudo publicado na revista científica Nature argumenta que esse oásis, conhecido como Makgadikgadi–Okavango e caracterizado por áreas alagadas, não foi um lar qualquer, mas a “pátria” ancestral de todos os humanos modernos. Os pesquisadores estudaram o DNA mitocondrial de atuais residentes do sul da África. O DNA mitocondrial é o material genético armazenado no núcleo de nossas células e transmitido de mãe para filho. Posteriormente, eles combinaram os dados genéticos com uma análise do clima passado e da linguística moderna, bem como das distribuições culturais e geográficas das populações locais.

Os resultados do estudo sugerem que mudanças no clima permitiram que alguns grupos da população antiga saíssem das áreas alagadas e ocupassem zonas verdes recém-formadas. Milhares de anos depois, uma pequena população de parentes desses viajantes deixaria a África em algum momento e acabaria povoando todos os cantos do mundo.

“Todos viemos da mesma terra natal no sul da África”, diz Vanessa Hayes, do Instituto Garvan de Pesquisa Médica, na Austrália, que liderou o novo estudo.

O estudo reacende um longo debate sobre o local exato de surgimento dos homens modernos da África e recebeu críticas ferozes de vários cientistas. Eles ressaltam que, embora todos os humanos vivos hoje tenham DNA mitocondrial transmitido a partir de um ancestral comum — a chamada Eva mitocondrial —, essa é apenas uma pequena fração do nosso material genético total. Portanto, mesmo que a população fundadora sugerida seja a fonte do nosso DNA mitocondrial, de acordo com o novo estudo, muitas outras provavelmente contribuíram para o pool genético que temos hoje.

“As inferências realizadas a partir de dados do DNA mitocondrial possuem grandes falhas”, diz Mark Thomas, geneticista evolucionário da University College London, por e-mail, acrescentando que, em sua opinião, o estudo equivale a uma “contação de histórias”.

No entanto, Rebecca Cann, geneticista da Universidade do Havaí, em Manoa, que foi revisora do estudo e conduziu um trabalho pioneiro sobre DNA mitocondrial, argumenta que a nova pesquisa é inovadora, cruzando várias disciplinas em busca de respostas.

“Isso dará início a inúmeros diálogos e estimulará novos estudos”, diz ela. Embora o estudo não seja perfeito, ela acrescenta, “possibilitará um certo progresso.”

O quebra-cabeça genético

A árvore genealógica dos hominíneos tem raízes profundas na África. O fóssil mais antigo já encontrado de nosso gênero, Homo, é um fragmento de mandíbula de 2,8 milhões de anos descoberto na África Oriental. A nossa espécie, Homo sapiens, não apareceu na árvore até muito tempo depois, ramificando-se há pelo menos 260 mil anos. Contudo o exato local na África onde isso aconteceu ainda é ponto de discussão.

Fósseis com uma grande mistura de características de humanos modernos e hominíneos mais primitivos parecem estar espalhados por toda a África, incluindo restos mortais em Florisbad, na África do Sul, de 260 mil anos, restos mortais em Omo, na Etiópia, de 195 mil anos, e restos mortais em Jebel Irhoud, no Marrocos, de 315 mil anos. Mas, com o calor da África, o DNA desses fósseis antigos parece ter sofrido intensa degradação.

Ao passo que a busca pelo DNA primitivo continua, muitos pesquisadores passaram a estudar a diversificada genética das populações da África. Uma das linhas mais antigas de DNA mitocondrial é comumente encontrada em povos que vivem no sul da África, e em nenhum outro além do povo KhoiSan — forrageiros, pastores e caçadores que falam idiomas cujo som das consoantes lembram cliques. Muitos estudos anteriores, incluindo alguns dos próprios trabalhos de Hayes, vasculharam os ancestrais desses povos em busca de pistas sobre o passado de nossa espécie.

Mas, nesse novo estudo, o objetivo de Hayes e seus colegas era identificar onde exatamente surgiu essa linha genética tão antiga. Para preencher algumas lacunas no registro genético, os pesquisadores sequenciaram o DNA mitocondrial de 198 indivíduos da Namíbia e da África do Sul — alguns dos quais se identificam como pertencentes à tribo KhoiSan e outros não — e os combinaram com dados coletados anteriormente referentes a um total de 1,2 mil indivíduos. Posteriormente, eles agruparam as populações do sul da África por etnia e linguística para definir a geografia dos povos que hoje carregam essas linhas de DNA mitocondrial tão antigas. Eles ainda desenharam uma árvore com relações genéticas mitocondriais que data de 200 mil anos, nos primórdios de nossa espécie.

101 | Origem da Humanidade
Conheça esta história que começa aproximadamente 7 milhões de anos atrás e ainda é envolta em muitos mistérios.

A análise revelou que, por cerca de 70 mil anos, as primeiras populações humanas permaneceram estáveis. A análise climática revelou que as enormes áreas úmidas existentes em todo território de Botsuana podem ter proporcionado um lar estável aos primeiros seres humanos. Mas, cerca de 130 mil a 110 mil anos atrás, algo mudou: “Tudo virou uma loucura”, diz Hayes. “Todas essas novas linhagens humanas simplesmente começam a aparecer.”

O estudo sugere que corredores verdes provavelmente foram abertos durante esse período, primeiro no nordeste e depois no sudoeste, o que pode ter incentivado os grupos a se espalharem para locais onde alguns ainda vivem hoje. Hayes, que trabalha há muito tempo com povos no sul da África, discutiu os resultados com os participantes do estudo logo após a análise.

“Eles foram os primeiros a saber, muito antes de vocês”, ela conta. “E eles realmente amam esse tipo de história. É a história deles.”

Eva mitocondrial e companhia

Esse novo estudo se concentra principalmente na análise das populações africanas de hoje, algo que muitos estudos genéticos anteriores não abordaram. “Todos reconhecem que os europeus já vêm sendo estudados há tempo demais”, diz Joshua Akey, geneticista da Universidade de Princeton. “À medida que os estudos se ampliam e analisam amostras de uma maior diversidade genômica humana, obtemos uma compreensão mais profunda e clara da história do homem.”

Em linhas gerais, os resultados do novo estudo apontam aspectos semelhantes a alguns trabalhos anteriores: as populações atuais do sul da África abrigam uma linha genética mitocondrial profunda. Mas os detalhes daquilo que foi relevado pela última análise permanecem incertos, diz John Hawks, paleoantropólogo da Universidade de Wisconsin-Madison.

É difícil saber se as populações que vivem nessas regiões hoje são iguais às populações que viveram centenas de milhares de anos atrás, afirma ele. Consequentemente, é possível que os pesquisadores estejam rastreando migrações em massa no sul da África. Mas também é possível que houvesse algo benéfico na genética mitocondrial, proporcionando uma vantagem seletiva que permitiu que o DNA se espalhasse sem grandes mudanças populacionais.

“Conseguimos acesso a uma parte da história evolutiva em altíssima resolução, e isso é muito interessante”, diz Hawks. “Mas queremos acesso também ao restante da história.”

O DNA mitocondrial compõe uma fração muito pequena de nossos genomas: embora contenha cerca de 16,5 mil pares de bases, o DNA nuclear possui mais de três bilhões, explica Carina Schlebusch, geneticista evolucionária da Universidade de Uppsala, na Suécia. Desvendar informações em nossos genomas completos promete uma história mais complexa. Os pesquisadores criaram árvores semelhantes para o DNA do cromossomo Y, que é o material genético presente em indivíduos do sexo masculino. Embora os detalhes permaneçam desconhecidos, eles sugerem a existência de uma linha genética que se ramificou há muito tempo em alguns humanos modernos que vivem em Camarões, na África Ocidental.

“Em nossos outros cromossomos”, acrescenta ela, “existem milhares desses locais individuais que se dividem em populações que provavelmente também possuem seus próprios ancestrais em algum lugar do passado.”

Rastrear esses outros ancestrais é outra questão. O sinal do DNA nuclear é extremamente complexo. O que sabemos com base em genomas completos de africanos é que os resultados desse último estudo não estão totalmente em desacordo com trabalhos anteriores que apontam para a origem dos humanos no sul da África, diz Brenna Henn, geneticista populacional da Universidade da Califórnia, em Davis, que estudou extensivamente a história da população africana.

No entanto, os cientistas ainda estão descobrindo novas maneiras de estudar o DNA nuclear. Eles não conseguem simplesmente olhar para o código genético e lê-lo como um livro. São necessários processamento e modelagem intensivos para entender o que tudo isso significa, e as suposições feitas durante a análise podem afetar o resultado.

Há também alguns indícios de que ainda há muita coisa a ser descoberta. Vários estudos apontam para a presença de populações “fantasmas” que se ramificaram ainda mais cedo e que se misturaram com a nossa espécie, deixando para trás pequenos traços de seu DNA em alguns grupos africanos.

“Não sabemos onde eles se encaixam, não sabemos quem eles eram, mas sabemos que alguns deles andavam por aí até bem recentemente”, diz Hawks.

Cortando a árvore

Recentemente, a complexidade de nosso panorama evolutivo levou muitos pesquisadores a abandonarem a ideia de que emergimos de um único local que se ramificou para formar uma árvore genealógica global. Em vez disso, eles sugerem que nossa espécie evoluiu a partir de diferentes pontos na África, como uma rede ou rios trançados que deságuam uns nos outros, se separam e, às vezes, voltam a se unir, criando a intensa miscigenação que corre em nossas veias.

“Realmente, não vejo nenhuma razão para nos limitarmos a um local específico”, diz Thomas, coautor de um recente artigo que se opõe à ideia de uma única origem para nossa espécie.

Os autores do novo estudo reconhecem que a nossa espécie pode ter tido várias origens. Mas ainda não existem dados suficientes para confirmar isso de forma definitiva, diz a coautora do estudo Eva Chan, geneticista estatística do Instituto Garvan de Pesquisa Médica. E o último estudo foi uma tentativa interdisciplinar de preencher algumas lacunas na nossa história evolutiva.

“Isso não quer dizer que tenhamos o cenário neste exato momento”, afirma ela. “Com mais dados, ele continuará mudando.”

Esse estudo também destaca o fato de que a definição de espécie está ficando cada vez mais confusa. Ao passo que os humanos gostam de classificar tudo, a natureza não se encaixa em categorias assim tão restritas, diz Schlebusch. Não há uma linha distinta entre uma espécie e outra; as coisas não são claras.

A controvérsia sobre a nossa origem certamente continuará. Ao contrário de muitos campos de estudo, a evolução humana não permite a realização de experimentos, acrescenta Akey. Mas, novamente, talvez os cientistas precisem repensar o debate como um todo.

“Talvez não estejamos fazendo a pergunta certa,” afirma ele. “É possível que seja necessária uma pergunta com mais nuances.”

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