DNA extraído de ‘chiclete’ da Idade da Pedra traz revelação incrível

Pela primeira vez, cientistas utilizam saliva de 5,7 mil anos para sequenciar o genoma humano completo de uma antiga caçadora-coletora, além de uma infinidade de micróbios que viviam no interior de seu organismo.

Por Kristin Romey
Publicado 3 de jan. de 2020, 11:02 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Reconstrução artística de ‘Lola’, que viveu em uma ilha no mar Báltico há 5,7 mil anos.
Image by Tom Björklund

Ela viveu em uma ilha no mar Báltico por volta de 3.700 a.C. Era intolerante à lactose, talvez sofresse de periodontite e havia recentemente se alimentado de patos e avelãs. Como tantos outros antigos caçadores-coletores europeus, ela provavelmente tinha olhos azuis, pele e cabelos escuros.

O que não sabemos sobre aquela que pesquisadores chamam de Lola, no entanto, é quanto tempo viveu — ou mesmo quando ou onde morreu — porque tudo o que se sabe sobre Lola provém do DNA extraído de um pequeno pedaço de resina vegetal que ela mastigou e cuspiu cerca de 5,7 mil anos atrás.

Este retrato genético único na história foi revelado em um estudo publicado na revista científica Nature Communications e marca a primeira vez em que pesquisadores conseguiram reconstruir um genoma humano completo do passado distante com “material não humano” em vez de restos mortais.

Além da história genética de Lola, a equipe internacional de pesquisadores também pôde identificar o DNA de plantas e animais que ela provavelmente tinha consumido pouco antes, bem como o DNA de inúmeros micróbios que viviam no interior de sua boca — conhecidos em conjunto como microbioma bucal.

“É a primeira vez que extraímos um genoma humano antigo completo de algo que não seja um osso humano, o que, por si só, já é bastante surpreendente”, afirma Hannes Schroeder, professor associado de genômica evolutiva do Globe Institute da Universidade de Copenhague e coautor do estudo. “O mais interessante nesse material é a possibilidade de obter DNA microbiano”.

Embora nossa compreensão científica do microbioma humano ainda esteja em seus primórdios, os pesquisadores começam a entender sua importância para nossa saúde. Alterações em nosso microbioma podem afetar tudo, desde a suscetibilidade a infecções e a doenças cardíacas até comportamentos.

Schroeder afirma que, com o sequenciamento do DNA antigo associado ao microbioma de indivíduos, os pesquisadores poderão entender como o microbioma humano evoluiu ao longo do tempo — revelando, por exemplo, como a transição da dieta da caça e coleta para a agricultura há milhares de anos pode ter influenciado nosso microbioma para melhor ou para pior.

“Chiclete” da Idade da Pedra

A resina de bétula (também chamada de alcatrão), uma substância adesiva produzida com o aquecimento da casca de bétula, era utilizada para colar lâminas de pedra em cabos na Europa desde pelo menos o Pleistoceno Médio (de 750 mil a 125 mil anos atrás, aproximadamente). Foram encontradas massas dessas resinas com marcas de dentes humanos em antigos locais de fabricação de ferramentas, onde arqueólogos supõem que a resina fosse mastigada para torná-la mais maleável antes do uso. Devido à natureza antisséptica da casca da bétula, ela também pode ter sido utilizada por suas propriedades medicinais.

Às vezes, a resina mastigada é o único indício da presença humana em locais onde não são encontrados restos mortais, e os arqueólogos suspeitam há muito tempo que essas massas, que passam despercebidas, podem ser fonte de DNA antigo. Contudo só recentemente obtiveram as ferramentas necessárias para extrair dados genômicos do que muitos chamam de chiclete antigo.

Resina de bétula mastigada e cuspida por Lola por volta de 3.700 a.C.
Foto de Theis Jensen

No início deste ano, foram sequenciados genomas humanos quase inteiros a partir de resina de bétula de 10 mil anos escavada originalmente há 30 anos no sítio arqueológico de Huseby Klev, na Suécia. “Esses artefatos são conhecidos há bastante tempo”, afirma Natalija Kashuba, aluna de doutorado do departamento de Arqueologia e História Antiga da Universidade de Uppsala e principal autora do estudo de Huseby Klev. “Só não estavam no centro das atenções.”

No estudo mais recente, o microbioma e o DNA de Lola foram extraídos de uma massa mastigada de bétula escavada no sítio de Syltholm, na ilha dinamarquesa de Lolland (daí o apelido de Lola). Arqueólogos de Syltholm encontraram evidências de produção de ferramentas e abate de animais no local, porém não restos mortais humanos.

A resina foi datada por radiocarbono em cerca de 5,7 mil anos, no advento do período Neolítico na Dinamarca. Foi a época em que as práticas dos caçadores-coletores do Mesolítico foram interrompidas com a introdução da agricultura ao sul e ao leste.

O DNA de Lola não apresenta marcadores genéticos associados às novas populações de agricultores que entraram pelo norte da Europa, reforçando a hipótese de que populações geneticamente distintas de caçadores-coletores sobreviveram na região por mais tempo do que se acreditava. Seu genoma também revela que ela era intolerante à lactose, o que confirma a teoria de que as populações europeias desenvolveram a capacidade de digerir lactose quando passaram a consumir laticínios provenientes dos animais domesticados.

A maioria das bactérias identificadas no microbioma bucal de Lola são consideradas residentes normais da boca e do trato respiratório superior. Algumas, entretanto, estão associadas à doença periodontal grave. O microbioma dela também mostra a presença de Streptococcus pneumoniae, embora seja impossível afirmar pela amostra se Lola estava com pneumonia no momento em que mastigou a resina de bétula. O mesmo também se aplica ao vírus Epstein-Barr, que infecta mais de 90% da população mundial, mas geralmente causa poucos sintomas (a menos que evolua para mononucleose).

Os pesquisadores também puderam identificar o DNA de patos-reais e avelãs a partir da resina mastigada, sugerindo que esses alimentos tinham sido consumidos por Lola pouco antes. Essa capacidade de distinguir o DNA específico de plantas e animais na saliva humana antiga aprisionada em resina pode nos permitir “conhecer” hábitos alimentares — como o consumo de insetos — que, sem isso, passariam despercebidos nos registros arqueológicos, afirma Steven LeBlanc, arqueólogo e ex-diretor de coleções do Museu Peabody de Arqueologia e Etnologia de Harvard.

LeBlanc foi o precursor da extração de DNA humano a partir de material não humano há mais de uma década, com um estudo pioneiro de 2007 sobre fibras mastigadas de mandioca descobertas em sítios arqueológicos no sudoeste dos Estados Unidos. Ele acredita que o conjunto de ferramentas atualmente disponível aos cientistas para obtenção do genoma humano completo e também de informações sobre a dieta e microbiomas a partir de materiais não humanos constituirá um novo parâmetro para entender como antigas populações se desenvolveram e mudaram ao longo do tempo, se eram saudáveis e qual sua forma de subsistência.

“É incrível como o campo de estudos avançou em tão pouco tempo”, diz ele. “Há uma grande distância entre o que éramos capazes de fazer e o que é possível fazer agora”.

Também é um bom lembrete de que mesmo os artefatos mais banais devem ser estudados e preservados, acrescenta LeBlanc, lembrando a época em que mostrava aos visitantes do Museu Peabody os pedaços mastigados e dissecados de mandioca de sua pesquisa.

“Olhavam para o pedacinho de fibra em mau estado e eu dizia que o museu o mantinha em exposição há mais de cem anos. Ninguém conseguia entender a importância de conservar esses objetos insignificantes. Então eu explicava que extraímos DNA humano deles e os visitantes ficavam simplesmente impressionados.”

LeBlanc imagina que os responsáveis pelo “chiclete da Idade da Pedra” da Europa enfrentaram questionamentos semelhantes sobre suas relíquias de resina de bétula, que agora podem conter informações valiosas capazes de mudar nossa compreensão do passado remoto.

“É provável que muitos ministros do governo tenham indagado: ‘por que desperdiçar dinheiro e espaço de armazenamento com essas massinhas pretas bobas?’”

“É por essa razão que os museus conservam esses materiais — porque ainda não sabemos o que fazer com eles.”

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