Caminhar é a atividade ideal na pandemia. Entenda por quê

Essa revolução em movimento é benéfica para você e para o mundo.

Por Eric Weiner
Publicado 29 de ago. de 2020, 08:30 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT
Mahatma Gandhi e seus seguidores caminharam 387 quilômetros ao longo da costa oeste de Gujarat, na ...

Mahatma Gandhi e seus seguidores caminharam 387 quilômetros ao longo da costa oeste de Gujarat, na Índia, para protestar contra uma lei britânica que obrigava os indianos a comprar sal britânico em vez de produzi-lo no próprio país.

Foto de Mansell, The LIFE Picture Collection, Getty Images

CAMINHAR MUDA O mundo. Quando os manifestantes iniciaram seu protesto por justiça racial em Washington, nos EUA, em 28 de agosto, seguiram os passos daqueles que, ao longo da história, optaram por caminhar como forma de se manifestar. De Mahatma Gandhi e o movimento de independência da Índia a Martin Luther King, Jr. e o movimento pelos direitos civis, caminhar e protestar sempre estiveram lado a lado.

Em 1930, Gandhi e 80 de seus seguidores partiram de seu ashram em Ahmadabad, rumo ao sul, em direção ao mar da Arábia. Quando chegaram à costa, 24 dias depois, o número de seguidores havia aumentado para alguns milhares, que observaram Gandhi apanhando punhados de sal dos depósitos naturais, em flagrante violação da lei britânica. A grande Marcha do Sal foi um marco importante na jornada à independência.

Anos depois, King, admirador de Gandhi que havia viajado para a Índia, instituiu o conceito de “amor severo” na resistência não violenta e uma marcha como parte do movimento pelos direitos civis. A campanha de Birmingham, no estado do Alabama, em 1963, começou com uma série de protestos, culminando na histórica marcha de Washington, em agosto daquele ano. Os protestos foram pacíficos, mas não passivos. Como o colega ativista de King, John Lewis, já bem sabia, caminhar pode ser um ato poderoso de oposição e que pode levar a “problemas benéficos“.

 

Em 14 de fevereiro de 1982, John Lewis (quarto a partir da direita) ajudou a liderar milhares de manifestantes pelos direitos civis na Ponte Edmund Pettus, em Selma, Alabama, como parte de uma jornada de 160 milhas para protestar contra a prisão de duas mulheres negras por acusação de fraude eleitoral e para apoiar a Lei de Direitos de Voto de 1965. Naquele ano, durante a primeira marcha através da ponte pelos direitos de voto, Lewis e outros foram brutalmente espancados.

Foto de Bettmann Archive, Getty Images

Em 2015, o ex-presidente Barack Obama e líderes políticos atravessaram a Ponte Edmund Pettus em homenagem ao 50º aniversário das marchas pelos direitos civis de Selma a Montgomery.

Foto de Saul Loeb, AFP, Getty Images

Nem todos aqueles que podem caminhar têm o mesmo acesso a caminhos que permitem tal atividade. De acordo com uma pesquisa do Trust for Public Land, cerca de 100 milhões de residentes nos Estados Unidos não contam com um parque a menos de 10 minutos a pé de casa. Um projeto de lei que foi aprovado este mês prevê investimentos em parques e áreas naturais com o objetivo de apoiar a conservação, a infraestrutura e o acesso.

Caminhar é mais do que caminhar, e sempre foi. Caminhar acalma. Caminhar inspira e aguça a mente. O ato de caminhar é democrático, embora o acesso a uma caminhada segura nem sempre seja garantido. A liberdade é a essência do caminhar e todos devem ser capazes de experimentar essa liberdade de ir e vir quando quiserem, de vagar e, como o escritor Robert Louis Stevenson colocou, “seguir este caminho ou aquele, conforme sua vontade”.

Uma panaceia pandêmica

A pandemia nos privou de muita coisa. Não tirou apenas vidas e meios de subsistência, mas autonomia também. Sentimo-nos presos, impotentes. Somos impedidos de fazer muitas coisas. Contudo podemos caminhar.

Dependendo da sua forma de pensar, cada caminhada se torna uma peregrinação, uma porta para o novo e para revelações. Muitos avanços surgiram em meio ao ato de colocar um pé na frente do outro. Corremos dos problemas. Caminhamos em direção às soluções.

Enquanto escrevia o livro A Christmas Carol, Charles Dickens andava cerca de 25 ou 30 quilômetros pelas ruas de Londres, analisando o enredo em sua mente enquanto a cidade dormia. Beethoven encontrou inspiração enquanto passeava pela arborizada cidade de Wienerwald, nos arredores de Viena; Nietzsche nos Alpes suíços. “Não acredite em nenhuma ideia que não tenha nascido ao ar livre e a partir da liberdade de movimento”, disse o bravo filósofo.

A romancista Louisa May Alcott frequentemente realizava longas caminhadas pelo campo perto de sua casa, em Concord. Às vezes, era acompanhada por seu colega autor e transcendentalista, Henry David Thoreau. Eles passavam horas perambulando (Thoreau adorava essa palavra) pelos prados e campos da zona rural de Massachusetts, reivindicando a “porção do infinito” que lhes cabia, como disse Thoreau.

Jean-Jacques Rousseau superou todos eles. Ele costumava caminhar cerca de 32 quilômetros em um único dia. “Mal consigo pensar quando fico parado”, comentou ele. “Meu corpo precisa estar em movimento para tornar minha mente ativa.” (Enquanto caminhava, ele anotava pensamentos, dos mais ousados aos mais acanhados, em cartas de baralho que sempre carregava com ele.)

Os benefícios de uma caminhada

Estudos recentes confirmam o palpite de Rousseau. Nossa mente é mais criativa a cinco quilômetros por hora, a velocidade de uma caminhada em ritmo moderado. Em um estudo, os psicólogos da Universidade de Stanford Marily Oppezzo e Daniel Schwartz dividiram os participantes em dois grupos: caminhantes e não caminhantes. Em seguida, aplicaram um teste desenvolvido para medir o “pensamento divergente”, um importante componente da criatividade. Eles descobriram que o pensamento criativo foi “consistente e significativamente” mais alto nos caminhantes do que nos não caminhantes. Também não foi preciso caminhar muito para aumentar a criatividade — algo entre 5 a 16 minutos.

Quando caminhamos, disse o falecido psicólogo Colin Martindale, entramos em um estado de “atenção desfocada”. Uma pessoa nesse estado não está dispersa, pelo menos não no sentido comum da palavra. Ela está concentrada e distraída ao mesmo tempo. Conseguimos enxergar mais quando caminhamos, como o autor Edward Abbey observa em suas memórias Desert Solitaire (Deserto solitário, em tradução livre): “Não conseguimos ver nada quando estamos no carro; é preciso sair do maldito veículo e caminhar.”

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    Pedestres caminham pelas ruas de uma cidade inglesa ao amanhecer.

    Foto de Ezra Bailey, Getty Images

    Diversos estudos indicam que pessoas que caminham regularmente são mais saudáveis e vivem mais do que aquelas que não caminham. E você não precisa caminhar muito rápido ou por longas distâncias para aproveitar esse benefício. Um estudo recente, publicado no periódico JAMA Internal Medicine, derrubou o mito dos 10 mil passos. É um número arbitrário. É possível obter benefícios à saúde — principalmente no caso de adultos mais velhos — dando apenas alguns milhares de passos por dia, e em um ritmo prazeroso.

    Caminhar é uma forma comprovada de perder peso, pois não queima calorias apenas, como também reduz o apetite. Um estudo realizado por pesquisadores da Universidade de Exeter constatou que uma caminhada de 15 minutos “reduz a vontade de comer chocolate” e, por sua vez, o consumo de alimentos como forma de aliviar o estresse. A caminhada também demonstrou alívio para dores nas articulações, aumento da imunidade e redução do risco de desenvolver câncer de mama. Gandhi caminhou ao longo de sua vida e atribuiu sua vitalidade, em parte, a esse hábito.

    Movimento evolucionário

    É possível dizer muito sobre uma pessoa pela forma como ela anda. O Pentágono desenvolveu recentemente um avançado radar capaz de identificar até 95% das caminhadas individuais, que são tão distintas quanto as impressões digitais ou a assinatura de uma pessoa. Caminhar é algo pessoal. As pessoas desfilam e se gabam quando estão na frente de outros, mas raramente fazem isso sozinhas. Esses comportamentos são sociais. Caminhar, a forma mais lenta de viajar, é o caminho mais rápido para o nosso eu mais autêntico. Como a autora Cheryl Strayed relata após sua jornada épica de 1,6 mil quilômetros pela Trilha da Costa do Pacífico: “Quando terminei minha longa caminhada, havia perdido seis unhas do pé, mas ganhado tudo o que era importante para mim”.

    Caminhar, quando feito corretamente, é a própria humildade em movimento. É uma das poucas atividades simples ainda disponíveis para nós, que, de acordo com a autora Rebecca Solnit, permanece “basicamente a mesma desde o início dos tempos”.

    O jornalista Paul Salopek percorre o corredor de Wakhan no Afeganistão, parte do Out of Eden Walk de 33,8 mil quilômetros, que segue o caminho percorrido pelos primeiros humanos a sair da África na Idade da Pedra.

    Foto de Matthieu Paley, National Geographic

    Cerca de seis milhões de anos atrás, os primeiros hominídeos deixaram de apoiar as mãos no chão, assumiram a postura ereta e passaram a andar sobre dois pés. Essa nova postura trouxe muitos benefícios inesperados. As mãos ficaram livres para a confecção de ferramentas, bem como para apontar, acariciar, gesticular, dar as mãos, fazer gestos obscenos e roer as unhas.

    O Colaborador da National Geographic Paul Salopek está fazendo o mesmo percurso dos primeiros humanos que migraram da África durante a Idade da Pedra e se estabeleceram em todo o mundo. E está fazendo isso lentamente, um passo de cada vez.

    Sua aventura de uma década é nobre; porém, não livre de sofrimento. Andamos sobre dois pés, mas fazemos isso utilizando um esqueleto que foi projetado para quatro. Essa desconexão entre a anatomia antiga e o uso moderno é o que mantém os profissionais da podiatria empregados. Pés chatos, inchaço, bolhas, joanetes e dedos em martelo são apenas algumas das consequências que enfrentamos por nossa existência bípede. No entanto enfrentamos tudo isso com prazer.

    Buscando inspiração

    Para mim, caminhar é a atividade perfeita em uma pandemia. Mantendo uma distância segura, mas não isolado, aceno para um vizinho ou carteiro, interagindo em um daqueles preciosos e breves encontros que a pandemia nos roubou. Às vezes, caminho como um errante, vagando sem rumo pelas ruas de minha cidade natal, Silver Spring, no estado de Maryland, observando sem desejo algum, movendo-me sem chegar, indo aonde minha vontade me leva.

    Em outros momentos, sou mais um caminhante do tipo rousseauniano. Minha trilha favorita fica no norte de Vermont, em uma reserva ambiental chamada Eagle Point. Próximo da fronteira canadense, o local reúne muita natureza em seus 170 hectares: pântanos, prados, florestas, bem como castores, ratos-almiscarados, guaxinins, coiotes, ursos-negros, veados-de-cauda-branca e 60 espécies de aves. No entanto é do próprio solo de que mais gosto. Macio e flexível, foi feito para caminhar. Viajei para lá recentemente, como faço todos os anos. Com o sol do fim do verão aquecendo meu rosto, coloquei um pé na frente do outro, repetidamente, de forma provocadora — e alegre também.

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