Encontrada oferenda inca centenária em lago sagrado

Mantida intacta por 500 anos, a rara oferenda que escapou de ser roubada oferece um vislumbre da religião e rituais incas.

Por A. R. Williams
Publicado 12 de ago. de 2020, 17:30 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT
Membro da equipe de pesquisa mergulha no Lago Titicaca, que corta a fronteira entre a Bolívia ...

Membro da equipe de pesquisa mergulha no Lago Titicaca, que corta a fronteira entre a Bolívia e o Peru. Os incas reverenciavam o lago como um deus e lhe faziam oferendas, possivelmente até sacrifícios humanos.

Foto de T. Seguin, Université Libre de Bruxelles, Antiquity Publications Ltd.

O Lago Titicaca era um local sagrado para o antigo Império Inca andino, que, em seu auge no início do século 16, controlava territórios entre regiões atuais da Colômbia e do Chile. Os incas construíram mais de 80 templos e outras estruturas para uma série de rituais na Isla del Sol, ou Ilha do Sol, na parte sul do lago na Bolívia, onde, segundo o mito de sua origem, nasceu o deus Sol e seus primeiros antepassados surgiram de uma rocha. Os incas mergulhavam oferendas nas águas enquanto faziam orações fervorosas.

Uma nova descoberta, publicada no periódico Antiquity, oferece novas informações sobre o sistema de crenças inca, que provavelmente estava ligado à política, a pedidos de fertilidade e a uma deusa conhecida como Mama Cocha — a mãe do mar — além de oferendas sangrentas que manchavam as águas de um dos maiores lagos do mundo.

Durante um levantamento subaquático do lago, que se estende pela Bolívia e pelo Peru, uma equipe internacional de arqueólogos retirou de um recife uma caixa de oferendas feita de andesito, uma pedra vulcânica local, a cerca de 5,5 metros abaixo da superfície do lago. Medindo cerca de 35 por 25 por 16 centímetros, a caixa continha uma cavidade vedada com uma tampa de pedra arredondada e manteve-se intacta desde que foi depositada no local há mais de cinco séculos.

A caixa de oferendas era feita de uma pedra vulcânica local e foi vedada com uma tampa de pedra arredondada. Diferentemente das descobertas anteriores, essa oferenda estava intacta e coberta por sedimentos, indicando que não havia sido mexida desde que foi mergulhada no lago há 500 anos.

Foto de T. Seguin, Université Libre de Bruxelles, Antiquity Publications Ltd.

A caixa de oferendas continha uma lhama em miniatura feita de conchas de cor coral e uma pequena pulseira de ouro. Um antigo relato espanhol dizia que algumas caixas de oferendas também continham sangue de crianças ou animais sacrificados.

Foto de T. Seguin, Université Libre de Bruxelles, Antiquity Publications Ltd.

No interior da caixa, os cientistas encontraram um pequeno cilindro folheado a ouro e uma estatueta de lhama feita da concha, em tons de coral, de uma ostra espinhosa do gênero Spondylus, rara e valiosa na época. Os arqueólogos acreditam que o cilindro possa ser uma réplica em miniatura de uma chipana, espécie de pulseira que os nobres incas usavam no antebraço direito. A lhama representa o robusto animal de carga utilizado pelos incas.

Oferendas valiosas, diversos significados

Essa não foi a primeira descoberta do gênero no lago. Rumores fascinantes de tesouros submersos atraíram conquistadores espanhóis ao Titicaca e um relato datado de 1541 faz menção a dez homens afogados nessa busca. Em épocas mais modernas, mergulhadores, incluindo o famoso explorador mergulhador Jacques Cousteau, vasculham essas águas desde a década de 1950.

Várias expedições ao longo de décadas encontraram mais de vinte caixas de pedra em diferentes formatos em outro recife, mas apenas quatro continham seus conteúdos preservados total ou parcialmente. Essas oferendas eram estatuetas humanas, retratando homens e mulheres, além de lhamas, e eram feitas de materiais raros e valiosos — prata, ouro e conchas de Spondylus. Miniaturas de tupus dourados — alfinetes para segurar xales incas — foram encontradas em uma dessas caixas, sugerindo que as estatuetas humanas eram originalmente decoradas com o vestuário tradicional em cores vivas que desintegraram devido à infiltração de água na cavidade da oferenda.

As oferendas “têm diversos significados e também denotam respeito”, incluindo grandes afirmações políticas e simples pedidos agrícolas, escreveu por e-mail Christophe Delaere, coautor do artigo. Delaere é diretor científico de projetos de arqueologia subaquática da Universidade Livre de Bruxelas no Lago Titicaca.

Essa reverência dos incas ao lago provavelmente foi influenciada por tradições de um antigo povo presente na região antes dos incas — os tiwanakus, uma civilização pré-hispânica que se acredita ter vivido na atual região da Bolívia, Peru e Chile entre cerca de 200 a.C. e 1.000 d.C.

“Desconfio que os incas utilizavam locais exclusivos para suas oferendas, escolhidos por razões definidas antes de sua ocupação”, escreveu por e-mail Johan Reinhard, arqueólogo especializado em paisagens sagradas pré-hispânicas. “Os incas faziam oferendas em locais que já figuravam nas crenças de povos anteriores a sua chegada ao Lago Titicaca.”

As oferendas estavam provavelmente ligadas a um culto dos antepassados incas e a cerimônias de peregrinação realizadas na Ilha do Sol. Ao utilizar o lago como centro de seu mito de origem e assim torná-lo um local para a realização de rituais, os incas transmitiam uma mensagem sobre seu império.

“As oferendas cerimoniais feitas ao lago eram gestos simbólicos e políticos destinados a legitimar, por meio de rituais, o poder da ocupação inca nesse espaço sagrado”, explicam em seu artigo Delaere e José M. Capriles, coautor, arqueólogo da Universidade Estadual da Pensilvânia.

A bordo de uma embarcação de pesquisa no Lago Titicaca, Christophe Delaere, diretor do projeto, e outros membros da equipe contam sua descoberta ao arqueólogo Johan Reinhard.

Foto de T. Seguin, Université Libre de Bruxelles

Ouro e sangue

Além disso, os arqueólogos acreditam que o cilindro de ouro pode ter sido agregado à lhama em um gesto de boa vontade à expansão do Império Inca a essa região rica em ouro em meados de 1400. “Os incas acreditavam que tradições religiosas não estavam dissociadas de tradições político-econômicas. Estavam todas intrinsecamente ligadas”, conta Reinhard, que não integrou a equipe que fez a descoberta.

Também é possível que a oferenda recém-descoberta e outras possam estar associadas a pedidos de fertilidade para rebanhos de lhama e alpaca que, segundo a mitologia inca, são originárias de lagos. Os incas também podem ter feito orações pedindo por terras férteis e colheitas abundantes. A concha de Spondylus, nativa das águas próximas à costa do Equador a cerca de 1,9 mil quilômetros de distância, era utilizada em rituais que pediam chuva em razão de sua associação com o mar e com Mama Cocha, a deusa mãe da água, ambos ligados ao Lago Titicaca segundo a mitologia inca.

De acordo com Alonso Ramos Gavilán, clérigo espanhol do século 17, que escreveu uma monografia sobre os rituais incas no lago, as oferendas depositadas em suas águas eram acompanhadas por grandes manchas de sangue pela água. Às vezes, era feito o sacrifício de uma criança ou animal para acalmar os deuses e o sangue da vítima era derramado na cavidade de uma caixa de oferendas, lacrada em seguida. Conforme a caixa era afundada no lago por meio de cordas, a água infiltrava na cavidade, misturava-se com o sangue e se espalhava pelo lago, manchando de vermelho a água ao redor.

Os arqueólogos acreditam que a caixa recém-descoberta possui aberturas que podem ter sido utilizadas para passar cordas para afundá-la a partir de um barco. A caixa também continha sangue? Por ora, é impossível saber, pois qualquer vestígio foi eliminado há muito tempo. Mas é totalmente possível que o sangue fizesse, de fato, parte de um ritual sombrio que mergulhava essa oferenda no fundo do lago, juntamente com as súplicas de um império.

Com a continuidade do trabalho dos cientistas de exploração das extensas profundezas do Lago Titicaca — com área de quase 8,3 mil quilômetros quadrados — certamente surgirão mais evidências sobre os rituais inusitados e misteriosos dos incas.

“Às vezes pensamos que todo o planeta já foi explorado, mas 70% dele está coberto por água”, afirma Delaere. “O mundo subaquático foi muito pouco explorado e oferece infinitas possibilidades de pesquisas e descobertas.”

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