Beirute já se reergueu uma vez – e está fazendo isso novamente

Há um mês, a capital libanesa explodiu. Nessa última reconstrução, os moradores lutam para preservar seu patrimônio.

Por Abby Sewell
Publicado 13 de set. de 2020, 08:15 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT
A janela de uma casa danificada no bairro de Geitawi, em Beirute, no Líbano, emoldura a ...

A janela de uma casa danificada no bairro de Geitawi, em Beirute, no Líbano, emoldura a vista do porto da cidade, onde uma enorme explosão em 4 de agosto matou pelo menos 191 pessoas e causou danos a mais de 6 mil edifícios.

Foto de Vassilis Poularikas, NurPhoto, Associated Press

BEIRUTE ESTAVA NO INÍCIO de seu processo de reconstrução após 15 anos de guerra civil quando Joseph e Nijmeh Erdahy decidiram construir suas vidas juntos. O ano era 1991, e eles haviam se casado e alugado um apartamento no primeiro andar de uma casa de arenito do século 19 no distrito de Ashrafiyeh (Achrafieh), parte oriental da capital libanesa. Era próximo do hospital em que Nijmeh trabalhava como enfermeira.

Eles viveram no local durante as três décadas seguintes, até que um enorme estoque de nitrato de amônio armazenado de forma incorreta no porto de Beirute explodiu um mês atrás, em 4 de agosto de 2020. A explosão destruiu as paredes e as janelas da casa dos Erdahy.

Abalados, mas a salvo, Joseph e Nijmeh recolheram itens essenciais que conseguiram encontrar nos destroços e, com o filho Elie, de 24 anos, portador de deficiência de desenvolvimento, foram abrigados pelo irmão de Joseph. Desde então, se mudaram para um apartamento temporário de um quarto e o que não lhes falta é incerteza quanto ao futuro.

“Nossos filhos nasceram e cresceram naquela casa”, conta Joseph. “Tudo aquilo que eu e minha esposa conquistamos com o trabalho de uma vida toda desapareceu em um minuto — bum, em um minuto”.

A casa deles está entre os cerca de 6 mil edifícios danificados ou destruídos pela explosão — entre esses, cerca de 640 eram da época do Império Otomano e resistiram à Segunda Guerra Mundial, ao período colonial do Mandato Francês antes da independência do Líbano, em 1943, e ao período modernista antes de 1971. A explosão matou pelo menos 191 pessoas, feriu mais de 6,5 mil e causou o deslocamento de até 300 mil pessoas. Um aumento subsequente nos casos do novo coronavírus dificultou ainda mais a situação.

Algumas das estruturas danificadas eram monumentos culturais famosos, como o Museu Sursock e o Palácio Sursock, que fica nas redondezas. Nas áreas modernas de Gemmayze (Gemmayzeh) e Mar Mikhael, muitos dos edifícios antigos haviam sido restaurados e abrigavam cafés, bares e restaurantes famosos entre os turistas e moradores. Mas a maioria era de uso residencial.

Os edifícios sobreviveram à guerra civil, à guerra de 2006 com Israel e à especulação imobiliária e ao desenvolvimento urbano descontrolado dos últimos anos. Agora, enquanto o Líbano se prepara para iniciar o processo de reconstrução, arquitetos, ativistas, acadêmicos e moradores se organizam para garantir que a história e a arquitetura dos bairros danificados sejam preservadas — e também o direito de pessoas como os Erdahy de continuar ali.

“Creio que o perigo não está na reconstrução física”, diz Christine Mady, chefe do departamento de arquitetura da Universidade de Notre Dame – Louaize, do Líbano. “O perigo está em perder o tecido social que existe nessas ruas”.

No dia seguinte à explosão, enquanto a equipe de resgate buscava sobreviventes em meio à destruição, uma mulher caminha entre os escombros de seu apartamento, no bairro de Gemmayze.

Foto de Patrick Baz, AFP, Getty Images

Ciclos de destruição e reconstrução

Após a guerra civil, o Estado libanês não tinha condições de financiar a reconstrução de Beirute. A reconstrução do que um dia foi o movimentado centro da cidade foi entregue a uma empresa privada, a Solidere, vinculada ao ex-primeiro-ministro Rafik al-Hariri.

Os críticos dizem que a subsequente reconstrução apagou a história do centro da cidade e transformou seus mercados e praças públicas, antes cheios de vida, onde pessoas de todas as religiões e classes sociais costumavam se misturar, em um complexo de edifícios imaculados, repletos de lojas de luxo e rodeados por avenidas movimentadas que impedem o acesso de pedestres. Os locais históricos que restaram, como o antes opulento Grande Teatro, construído em 1920, e a antiga sede do jornal de língua francesa  L’Orient, do mesmo período, estão praticamente inacessíveis ou abandonados e em ruínas.

“O coração da cidade sempre foi vibrante e misto”, conta Howayda al-Harithy, professora de arquitetura e desenho urbano da Universidade Americana de Beirute e diretora de pesquisas do Laboratório Urbano de Beirute. Mas agora, diz, “É uma cidade fantasma porque é um espaço para a elite. Não é acessível para a maioria das pessoas, e isso fica comprovado pelo fato de estar [quase] sempre vazio”.

Nesse meio tempo, os bairros vizinhos — que agora foram afetados pela recente explosão — continuaram “bastante diversificados”, diz Harithy. Embora a maioria seja historicamente cristã, nos últimos anos essas partes da cidade atraíram jovens de diferentes classes e crenças, incluindo refugiados sírios e também turistas internacionais, jornalistas e voluntários de ONGs.

“Esses bairros atraem jovens artistas e também famílias mais velhas que viveram ali durante as décadas de 1970 ou 1980, e contam com muitas moradias acessíveis para grupos de baixa renda. Não queremos perder isso”, afirma Harithy.

Jad Tabet, presidente da Ordem dos Engenheiros e Arquitetos de Beirute, que está à frente de uma pesquisa sobre os edifícios danificados pela explosão, foi um dos dissidentes que fez pressão para preservar a história do centro da cidade durante a reconstrução pós-guerra.

“Mas como era o fim da guerra, as pessoas desejavam olhar para o futuro”, conta. Tabet diz que a ideia por trás do projeto Solidere era “reconquistar o lugar de Beirute como um centro financeiro, um centro de negócios. Isso não deu certo e hoje Dubai está fazendo o que Beirute deveria ter feito.”

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    Entre os cerca de 6 mil edifícios danificados está o Palácio Sursock, uma gloriosa estrutura do século 19 no bairro de Ashrafiyeh.

    Foto de AFP, Getty Images

    “Em uma fração de segundo, tudo foi destruído novamente”, conta o proprietário do Palácio Sursock, Roderick Sursock, em uma das salas. O palácio também sofreu danos na guerra civil do Líbano. Sua mãe, Lady Yvonne Sursock Cochrane, faleceu em decorrência de ferimentos causados pela explosão.

    Foto de Felipe Dana, Associated Press

    Os perigos do desenvolvimento

    Tabet diz que acredita ser improvável que exista um projeto em grande escala como o Solidere após a explosão — tanto por motivos econômicos quanto por uma pressão cada vez maior nos últimos anos para preservar locais históricos.

    Mas muitos moradores temem uma devastação mais informal da história da região, causada pela especulação imobiliária que havia começado a reconfigurar os bairros históricos de Beirute antes da explosão.

    Uma pesquisa de 2018 realizada pelos pesquisadores do Laboratório Urbano de Beirute constatou que pelo menos 350 autorizações para demolição haviam sido solicitadas nos últimos 15 anos em áreas que foram agora afetadas pela explosão, de acordo com o que escreveu Mona Fawaz, do laboratório.

    Ao passo que o número de demolições e construções diminuiu devido à recessão econômica nos últimos anos com o colapso do sistema financeiro do país, pessoas desesperadas para tirar seu dinheiro dos bancos começaram a investir em imóveis.

    “Temos muito medo de perder nosso patrimônio, pois existem pessoas que querem tirar vantagem dessa situação”, diz Grace Rihan Hanna, arquiteta especializada em restaurações que se juntou a uma equipe de especialistas para avaliar e desenvolver planos de reabilitação para os edifícios históricos danificados.

    Hanna tem visitado residências como a de Bassam Bassila, fotógrafo e taxista que ainda vive na casa de dois andares da era otomana onde cresceu, em Ashrafiyeh. A explosão detonou as elegantes janelas de três arcos e a fachada da casa, transformando a sala de Bassila em um terraço aberto. Pedaços de arenito da parede que desabou estão empilhados no chão em frente à varanda — que agora está separada do restante do edifício por uma abertura perigosa — onde vasos de plantas repousam incrivelmente intactos.

    Antes da explosão, diz Bassila, ele estava resistindo às propostas do proprietário de um arranha-céus vizinho, que havia comprado o andar inferior do edifício em que Bassila mora e estava tentando persuadi-lo a vender seu andar também.

    Bassila conta que não tem dinheiro para reparar os danos em sua casa e está esperando a disponibilização de algum tipo de financiamento externo. Enquanto isso, ele continua firme, com ou sem uma fachada.

    “É a casa da minha família. Eu nasci aqui, meu pai nasceu aqui em 1901 e vivemos todos juntos… não posso ir embora”, diz. Além do significado pessoal do edifício, conta, é importante “que as pessoas se lembrem de que esse belo patrimônio existiu.”

    Andaimes sustentam o teto fraturado de uma tradicional casa libanesa em Beirute.

    Foto de Anwar AMRO, AFP, Getty Images

    No bairro de Ashrafiyeh, janelas estilhaçadas e outros danos comprovam o poder da explosão, que causou o deslocamento de até 300 mil pessoas.

    Foto de Mahmut Geldi, Anadolu Agency, Getty Images

    Preservação do patrimônio

    Dessa vez, a reconstrução da cidade pode ser diferente.

    Em uma medida considerada uma vitória pelos defensores do patrimônio, o Conselho Superior de Planejamento Urbano designou a área afetada pela explosão como “em estudo”, o que limita transações imobiliárias e novas construções, pelo menos por enquanto.

    A UNESCO fez um apelo para arrecadação de fundos com a intenção de angariar uma parte significativa dos $500 milhões de dólares provavelmente necessários para restaurar os patrimônios e locais culturais.

    Enquanto isso, o grupo de Hanna, que trabalha com a Diretoria Geral de Antiguidades e outras autoridades, lançou o projeto Beirut Built Heritage Rescue 2020 para avaliar os edifícios históricos danificados e estabilizar aqueles com risco de desabamento até que seja formulado um plano e disponibilizado financiamento para reparos maiores. O grupo avaliou cerca de 350 edifícios, dos quais mais de 90 correm risco de desabamento.

    O Laboratório Urbano de Beirute e outros grupos estão trabalhando para assegurar que os moradores de outras áreas afetadas tenham voz no possível plano de reconstrução. E o Instituto Issam Fares da Universidade Americana de Beirute — em conjunto com as ONGs Lebanese Transparency Association e Transparency International — deu início a um projeto para monitorar o processo de recuperação e reconstrução.

    Mas garantir que as famílias deslocadas possam voltar às suas casas não será fácil. Mesmo em edifícios que sofreram danos relativamente menores, muitos dos proprietários não possuem recursos para reparar janelas e portas quebradas e tornar suas residências habitáveis antes da chegada do inverno.

    De acordo com Tabet, os doadores “estão mais interessados no patrimônio. É mais glamuroso, mas não existem apenas patrimônios. As pessoas querem viver. Querem voltar para casa”.

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