Famoso navio funerário anglo-saxão foi provavelmente o último de seu tipo

A descoberta arqueológica em Sutton Hoo — um feito retratado no filme “A Escavação” — talvez seja tudo o que restou de uma suntuosa tradição funerária medieval inglesa.

Por Erin Blakemore
Publicado 4 de fev. de 2021, 07:00 BRT

Este capacete impressionante foi enterrado com seu proprietário anglo-saxão, que era um guerreiro de elite ou possivelmente até mesmo um rei, em Sutton Hoo no início do século 7 d.C.

Courtesy British Museum

Arqueólogos podem ser bem cautelosos. Eles se resguardam, questionam os dados a cada passo e têm tendência a rejeitar qualquer indício de sensacionalismo. Mas quando foram descobertos os antigos túmulos de Sutton Hoo, no sudeste da Inglaterra, até os acadêmicos mais circunspectos elogiaram. Magnífico! Monumental! Inigualável!

Em 1939, arqueólogos descobriram um túmulo anglo-saxão de 1,4 mil anos, onde também estava enterrado um navio inteiro, bem como um esconderijo assustadoramente repleto de artigos mortuários. A descoberta espetacular mudou a compreensão dos historiadores do início da Idade Média na Grã-Bretanha, diz Sue Brunning, a curadora que cuida dos lendários artefatos do Museu Britânico. “Tudo se transformou de uma hora para outra.”

Oitenta e dois anos depois, o navio enterrado em Sutton Hoo está de volta em A Escavação, novo filme da Netflix estrelado por Carey Mulligan, Ralph Fiennes e Lily James. Mas no início do século 7 d.C., quando a última pá de terra foi jogada sobre o guerreiro anglo-saxão e seus tesouros, a prática de enterrar mortos com seus principais pertences estava ficando fora de moda. Um século depois de Sutton Hoo, a maioria dos túmulos ingleses continha basicamente corpos em decomposição. Mas o que causou essa mudança?

“Os humanos enterraram pessoas em navios durante séculos e milênios”, diz Brunning. O mesmo acontecia com objetos mortuários. No início do período medieval na Europa, com frequência as pessoas eram enterradas com pelo menos alguns dos objetos de que mais gostavam, joias, moedas, arreios para cavalos e muito mais.

O tesouro escondido de Sutton Hoo foi descoberto por Basil Brown, escavador inexperiente contratado pela proprietária das terras Edith Pretty, que estava curiosa para saber o que havia sob os túmulos em sua propriedade, em Suffolk perto do rio Deben. Ao longo de uma série de escavações, Brown lentamente desenterrou 263 objetos preciosos sepultados no navio anglo-saxão de mais de 24 metros de comprimento. Os opulentos objetos encontrados, feitos de materiais que variavam de ferro a ouro, osso, cristais de granada e penas, incluíam um capacete com máscara protetora para o rosto, ombreiras delicadamente confeccionadas, utensílios domésticos e armas — muitos deles indicando vínculos com lugares distantes, como a Síria e o Sri Lanka.

Uma foto da escavação original em Sutton Hoo mostra o que restou do navio de madeira enterrado no sudeste da Inglaterra há cerca de 1,4 mil anos.

Courtesy British Museum

O filme ‘A Escavação’ reconta a história da escavação em Sutton Hoo a partir da perspectiva da proprietária das terras Edith Pretty (interpretada por Carey Mulligan) e do arqueólogo Basil Brown (Ralph Fiennes).

Via Netflix, Entertainment Pictures, Alamy

Os artefatos descobertos em Sutton Hoo mudaram instantaneamente a imagem que os historiadores tinham da era que já foi chamada Idade das Trevas. Os bens mortuários haviam sido produzidos com primor, usando materiais do mundo todo e sugeriam que a sociedade medieval retratada em poemas épicos como Beowulf pode estar mais próxima de ser realidade do que mito. “Antes, acreditava-se que esse tipo de coisa era basicamente uma fantasia”, conta Brunning.

Mas a prática de guarnecer túmulos já havia começado a se extinguir quando a elite anglo-saxônica de Sutton Hoo deu seu último suspiro. Entre os séculos 6 e 8 d.C., os túmulos na Inglaterra tornaram-se mais simples e escassos.

Uma tradição em decomposição

Para tentar entender como e por que a prática foi extinta, a arqueóloga Emma Brownlee, pesquisadora do Girton College da Universidade de Cambridge que se especializou em práticas fúnebres do início da era medieval, analisou registros arqueológicos que documentam mais de 33 mil túmulos dessa época. Sua análise, publicada recentemente no periódico Antiquity, abrangeu 237 cemitérios no noroeste da Europa, a maioria deles na Inglaterra.

Usando descrições e desenhos de dezenas de milhares de sepulturas escavadas nos últimos 60 anos, Brownlee calculou meticulosamente o número médio de objetos por sepultura, até chegar na última conta ornamental. Ela também reuniu outras informações importantes, como quanto tempo os cemitérios ficaram em uso e o que as técnicas de datação mais confiáveis sugeriam sobre sua idade.

Em seguida, o processamento de números foi iniciado. Seu mapa mostra que a Inglaterra abandonou a tradição de enterrar artigos mortuários já em meados do século 6. Na época em que o guerreiro anglo-saxão foi enterrado por volta de 625, os túmulos contendo objetos estavam em vias de extinção.

“Depois do século 7, ninguém mais era enterrado junto com objetos em seus túmulos”, diz Brownlee.

Como seus dados se referem à Inglaterra, Brownlee alerta que os ingleses não foram necessariamente os primeiros. No entanto seus dados mostram que a Inglaterra concluiu sua mudança para enterros mais simples por volta de 720, enquanto o restante do noroeste da Europa levou mais meio século para seguir o exemplo.

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    O indivíduo enterrado em Sutton Hoo foi sepultado com sua espada. Uma pesquisa recente da curadora do Museu Britânico Sue Brunning sugere que o proprietário anglo-saxão da arma era canhoto.

    Courtesy British Museum

    O nascimento da Inglaterra — e a morte dos túmulos contendo objetos

    A evolução das práticas de sepultamento coincidiu com uma época de profundas mudanças na Inglaterra. Uma vez sob o domínio romano, a Inglaterra tornou-se independente por volta de 410 e enfrentou uma série de conquistadores, incluindo os anglo-germânicos e saxões.

    Entre o período de 400 e 600 d.C., essas potências pagãs se fundiram em reinos que se converteram ao cristianismo no século 7. Os reinados anglo-saxões mais poderosos sobreviveram à invasão viking que começou no século 9. Eles passaram a se unir como o Reino da Inglaterra em 927 e formaram a base da monarquia britânica moderna.

    Acredita-se que o guerreiro enterrado com o navio tenha sido um rei anglo-saxão, talvez Redualdo da Ânglia Oriental, que governou um reino que incluía a região de Suffolk entre aproximadamente 599 e 624. As datas nas moedas enterradas no local coincidem com o período de seu reinado, e a qualidade e o valor dos bens na sepultura sugerem ser uma pessoa de extrema influência.

    O mesmo também se aplica à existência da sepultura propriamente dita. “O próprio ato de arrastar um navio do rio morro abaixo, cavar um buraco grande o suficiente para que ele caiba e construir a câmara mortuária é quase como uma peça de teatro”, explica Brunning. “Podemos imaginar que envolveu grupos imensos de pessoas. O funeral em si teria sido uma ocasião grandiosa, e o túmulo era tão grande que provavelmente poderia ser visto do rio mais abaixo quando as pessoas passassem navegando.”

    Arqueólogos acreditam que Sutton Hoo também era um cemitério para os parentes da realeza, que foram sepultados em cerca de 17 outros túmulos perto do suposto rei. Outro navio menor também foi encontrado no local.

    O poder político pode ter sido o que levou à mudança nas práticas de sepultamento, segundo o arqueólogo Heinrich Härke, especialista em sepulturas do período medieval inicial e professor da Universidade HSE em Moscou, que não participou da pesquisa. À medida que os líderes de toda a Inglaterra começaram a consolidar o poder e a formar reinos durante o século 6, esclarece Härke, pode ter passado a ser menos importante a exibição de poder enterrando artigos ornamentais.

    Outro arqueólogo do período medieval inicial, Andrew Reynolds, da University College London, tem sua própria teoria: a ascensão dos reis empobreceu todos que não faziam parte da classe mais alta.

    “O crescente controle das famílias reais inglesas sobre os recursos e as terras representou o primeiro golpe mortal nas liberdades anteriormente desfrutadas por comunidades em pequena escala”, afirma ele. “A riqueza tornou-se polarizada.”

    Depois, houve a ascensão do Cristianismo. À medida que a nova religião se estabeleceu na Europa, os túmulos saíram de moda e os locais de descanso da realeza migraram para cemitérios ou tumbas dentro de igrejas e catedrais. A quantidade de bens mortuários também diminuiu. A partir do século 8, tanto membros da realeza quanto pessoas que não faziam parte da elite eram geralmente enterrados com nada mais do que sudários, itens pessoais de joalheria ou ornamentos cristãos como crucifixos.

    Foto dos túmulos cobertos por uma geada em Sutton Hoo, ao amanhecer. Parte do cemitério descoberto perto do famoso navio foi deixada intocada para as futuras gerações de arqueólogos explorarem com novas questões e novas tecnologias.

    Foto de The National Trust Photolibrary, Alamy

    Reynolds vê o túmulo de Sutton Hoo como parte dessa transição, principalmente porque parece ter sido o local de sepultamento de apenas uma família anglo-saxônica, em vez de parte de um cemitério maior.

    “Todos os túmulos da elite desse período estão situados longe dos cemitérios utilizados por pessoas de menor status social”, diz ele. “O que podemos observar é uma tentativa por parte das pessoas que controlavam o acesso a bens de prestígio, e que quase certamente detinham o poder local, de se diferenciarem das outras, não apenas pela aquisição de itens para ostentação, mas também do ponto de vista espacial, para se manterem separadas.”

    Brownlee, por outro lado, acredita que o aumento do comércio e da conexão em toda a Europa Ocidental, e não a apropriação do poder monárquico, explica a tendência de enterros simples. “A mudança na maior parte das práticas de sepultamento aconteceu por meio da comunicação com pessoas de classe social similar”, ela conjectura, citando modelos sociológicos e linguísticos que mostram que a mudança cultural se dissemina mais rapidamente quando é proveniente de seus semelhantes.

    Talvez o túmulo de Sutton Hoo se baseie no medo que a realeza sentia, cogita Brunning. “Existem muitas teorias sobre isso ser uma reação à chegada do cristianismo — uma última exultação ao estilo de vida pré-cristão”, diz ela. “Pode ser um sinal de insegurança em vez de força, um gesto simbólico que encobre alguns sentimentos de falta de confiança.”

    Nenhuma prova cabal

    Sem nenhuma evidência definitiva, ainda é difícil para os acadêmicos revelarem exatamente como as práticas de sepultamento do passado se encaixam em mudanças sociais mais amplas. Mas uma parte não escavada do sítio arqueológico de Sutton Hoo oferece uma ponta de esperança de que essa dúvida possa ser respondida, pelo menos em se tratando da Inglaterra medieval.

    Após a escavação inicial de Brown, dois outros projetos de escavação continuaram explorando o local até o início da década de 1990. Além disso, parte do cemitério perto do famoso navio foi “deixado para as gerações futuras com novas questões e novas técnicas”, disse um porta-voz do Fundo Nacional ao jornal East Anglian Daily Times em 2019.

    Por enquanto, os pesquisadores precisam se contentar com o que já foi desenterrado por Brown e seus sucessores — ou, fazerem como Brownlee, tentar extrair novas perspectivas a partir dos dados antigos. Nesse ínterim, Brunning e seus colegas de curadoria preservarão meticulosamente os artefatos encontrados no túmulo — objetos que se referem a uma era de pompa e realeza que os historiadores consideravam mítica antes da descoberta feita por Brown.

    Independentemente da razão por trás do túmulo de Sutton Hoo e outros equivalentes cada vez mais escassos, sempre vale a pena pensar sobre como e por que as pessoas do passado enterravam seus mortos, e o que elas incluíam (ou não) com eles.

    “As sepulturas são uma das poucas partes do registro arqueológico que foram deliberadamente enterradas”, afirma Brownlee. “Quase todo o resto é acidental.” Segundo ela, cada item “foi colocado com um propósito específico. Redescobrir esse propósito faz parte do desafio.”

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