Ampliação de base espacial da ditadura ameaça repetir despejo de quilombolas

O Centro de Lançamento de Alcântara, no Maranhão, foi construído na década de 1980 sobre o maior território quilombola do Brasil, removendo compulsoriamente 312 famílias. Agora, ampliação planejada pelo governo Bolsonaro quer deslocar mais comunidades.

Por Ana Mendes
Publicado 16 de jul. de 2021, 13:29 BRT, Atualizado 21 de jul. de 2021, 10:32 BRT
Colagem reúne fotos de arquivo do Centro de Lançamento Quilombola e entorno. A fim de expandir a ...

Colagem reúne fotos de arquivo do Centro de Lançamento Quilombola e entorno. A fim de expandir a área da base espacial, o governo federal editou, em março de 2020, uma resolução destacando o Ministério do Desenvolvimento Regional para realizar remoções de comunidades afetadas. O processo está suspenso por decisão liminar da Justiça Federal.

Foto de Nay Jinknss
Eu não sabia que ia ser militar
Sérvulo Borges, ex-militar e atual liderança quilombola, conta como uma equipe formada majoritariamente por pessoas negras removeu compulsoriamente, entre 1986 e 1989, 312 famílias quilombolas que viviam à beira mar em Alcântara, no Maranhão.

Nota do editor: Esta reportagem foi produzida de forma remota. As imagens foram feitas em visitas anteriores à pandemia.

O protesto dela foi o silêncio. Ela ficou calada vendo sua casa ser esvaziada por militares da aeronáutica. Primeiro viu o gato sendo levado, depois, o cachorro, as galinhas e, por último, ela mesma. “Ela foi a última”, lembra Sérvulo Borges, o jovem recruta que segurava um dos braços da senhora, que quase não podia caminhar, tanta era a idade que tinha.

Um porrete de madeira alinhava os passos, mas, a cada passada, mais longe ficava da sua casa. O major capelão Ildefonso Graciano Rodrigues a agarrava pelo outro lado, auxiliando a marcha. 

Aos 50 metros a senhora parou, fez com que os dois homens lhe soltassem os braços e se voltou para sua casa, chorando. Durante cinco minutos, sem dizer uma palavra, olhou para a paisagem onde provavelmente nasceu, cresceu e desejava morrer. Mas que nunca mais veria. 

Planejado pelos militares no final da década de 1970 e executado a partir de 1982, na ditadura, o Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) removeu compulsoriamente 312 famílias quilombolas que viviam à beira-mar em Alcântara, no Maranhão, estado no Nordeste do Brasil com o tamanho do Vietnã.

Localizadas na Amazônia Maranhense, as famílias realocadas faziam parte de 32 comunidades quilombolas, das quase 200 que existem no município. Alcântara é o município que tem o maior número de comunidades quilombolas do país – são mais de 3,3 mil famílias, ou cerca de 22 mil pessoas. 

À esquerda: No alto:

Centro da cidade de Alcântara, vista a partir do Porto do Jacaré. A rua que se vê é a ladeira do Jacaré, tem este nome porque no período escravocrata os escravos saiam dos barcos carregando latas de Querosene Jacaré. As pedras da rua, são conhecidas como 'cabeça de negro'.

À direita: Acima:

Centro da cidade de Alcântara, no Maranhão. Alcântara é o município que tem o maior número de comunidades quilombolas do país, são mais de 3,3 mil famílias, ou cerca de 22 mil pessoas.

fotos de Ana Mendes

A cidade histórica de Alcântara fica a 1h20 de barco da capital São Luís, no Maranhão.

Foto de Redação National Geographic

Os quilombolas são descendentes de pessoas escravizadas, traficadas do continente africano durante mais de três séculos, que formaram agrupações de refúgio e resistência, os quilombos, aos quais hoje chamamos de comunidades quilombolas ou remanescentes de quilombos.

Para retirar as comunidades das suas terras que ocuparam por séculos, os militares criaram estrategicamente equipes formadas por pessoas negras, com a intenção de persuadir as famílias, expulsas entre 1986 e 1989. “Um preto com outro preto conversando, mesmo que ele seja doutor, mas ele é preto”, diz Borges, hoje um homem de mais de 60 anos, que se comunica com a destreza de um professor. 

Borges, quilombola e ex-militar, narra o período que serviu na aeronáutica aumentando o tom da voz, espichando e repetindo algumas palavras específicas para ajudar na interpretação da sua história. “O opressor com o oprimido iguais, achando que são iguais”, reflete ele, acentuando a palavra achando.

O major Ildefonso, padre capelão, “negro, preto, preto, retinto”, lembra Borges, era um paulista bonito e alto, dono de uma voz macia como a do cantor Emílio Santiago. Era ele quem acompanhava o grupo, que tinha assistentes sociais negras, a maioria maranhenses, “que, chegando na comunidade, falavam o mesmo linguajar”, diz Borges. “Nhora, pra cá, nhora pra ali”, remenda, fazendo referência ao vocabulário local. E, além delas, “tínhamos nós, os soldados filhos de Alcântara”.  

Os ‘filhos de Alcântara’ foram 30 jovens selecionados pela aeronáutica para fazer um curso em São Paulo e trabalhar na futura base. “Eu, Sérvulo Borges, eu não sabia que eu ia ser militar. Eu tava indo para fazer um curso, mas nunca me disseram, ‘tu vai ser soldado.’”

O avião era terrivelmente barulhento, tuc, tuc, tuc. “Passamos o dia inteiro naquela coisa horrível”, conta Borges relembrando a viagem que ele e os outros 29 meninos fizeram em uma aeronave Buffalo CC-115 rumo à São Paulo. Era o primeiro voo da vida de Borges, e certamente de outros meninos ali também. “Tinha jovem semianalfabeto, jovens analfabetos que só assinavam o nome”, conta ele. Era julho de 1982 e fazia frio no Sudeste, “um frio de doer a alma”.

Foram cinco meses em São José dos Campos, no interior de São Paulo, e um na capital, fazendo aulas de equitação. Eles fizeram muitos cursos, mas Borges se encantou com um desde o início: “Eu me encontrei na enfermagem, aquela coisa do cuidar, cuidar das pessoas”. 

Mas, quando voltou para Alcântara como enfermeiro, não foi para cuidar. 

Jovens soldados alcantarenses são recepcionados após treinamento em São Paulo.

Foto de Arquivo Jornal O Imparcial, Projeto Museu de Rua, 1986, Museu Histórico de Alcântara

Os meninos voltaram para tirar as pessoas dos seus lares centenários. Eles foram compor as equipes de remoção e transferir os próprios parentes para sete agrovilas construídas pela aeronáutica, localizadas longe, bem longe dos lugares de origem, a cerca de 20 quilômetros do litoral ou quatro horas de viagem a pé – trecho que os quilombolas fizeram inúmeras vezes em busca de alimento nos primeiros anos morando nas agrovilas. 

“Parte desses jovens eram das comunidades que estavam na linha do mapa da transferência”, conta Borges, apontando a astúcia da estratégia militar em pegar meninos alcantarenses, levá-los para São Paulo e trazê-los “bonitos, fortes, malhados, roupa toda bonitinha com botão dourado, barba feita, cabelo muito bem arrumadinho, carteira com grana”.

A felicidade do jovem soldado no centro da fotografia ilumina a cena. Ele e os outros estão vestidos com uniformes militares de mangas compridas, destoando das roupas dos amigos, vizinhos e familiares que vieram recepcioná-los. Eles distribuem e recebem abraços saudosos. Todos estão muito felizes com o retorno dos meninos há tantos meses longe de Alcântara. 

A imagem, publicada no jornal O Imparcial na década de 1980, mostra os soldados alcantarenses sendo recebidos com carinho na cidade após o treinamento. “Qual pai vai dizer que esse projeto é ruim?”, questiona Borges.

Os 30 ‘filhos de Alcântara’ removeram os quilombolas. Alguns seguiram a carreira militar e hoje estão aposentados pela aeronáutica, outros saíram na mesma época que Borges, oito anos depois do curso em São Paulo, e foram se dedicar a outras profissões. Se algum deles têm críticas à maneira como as coisas aconteceram, não é fácil saber. “Esse pessoal tem medo de se posicionar”, avisa Borges, “tem uns que nem conversam comigo.”  

Mesmo os que não serviram por muito tempo na aeronáutica não querem dar entrevista. Entretanto, Borges consegue nos indicar um que aceitaria falar. “Conversei com ele, você pode ligar, ele topou dar entrevista”, diz Borges à nossa equipe. Ligamos e agendamos uma conversa, mas o ex-militar não atende o telefone na hora marcada. E nem depois.  

“Dos 30, só eu tive coragem de sair e criticar esse projeto”, enfatiza Borges, que hoje é uma das principais lideranças quilombolas locais, integrante da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, uma organização quilombola nacional que atua em Alcântara.

Em 1994, outdoor na avenida Carlos Cunha, em São Luís, capital do Maranhão, fazia propaganda do programa espacial recém-lançado pelo governo.

Foto de Murilo Santos

Um projeto que não decolou

Um outdoor em uma das principais avenidas de São Luís, capital maranhense, diz, “o Maranhão foi para o espaço”. O ano é 1994, mas poderia ser hoje. “E quem ganha com isso é a comunidade”, diz o anúncio, trazendo as logomarcas do CLA, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais e da Nasa, a agência espacial estadunidense. 

O Brasil almejava, na época, uma parceria internacional para conseguir alavancar o projeto aeroespacial brasileiro. Ainda hoje, o desejo é o mesmo.

Inaugurado por José Sarney, maranhense e presidente do Brasil entre 1985 e 1990, o CLA fazia parte do “mais ambicioso projeto científico elaborado em um país em desenvolvimento”. Era assim que o extinto Ministério da Aeronáutica, responsável pela implantação e consolidação do centro, descrevia a Missão Espacial Completa Brasileira, da qual o CLA fazia parte. 

O Brasil queria decolar. Queria ter uma política espacial nacional forte e desenvolver a tecnologia do Veículo Lançador de Satélites (VLS), um foguete capaz de transportar satélites até a atmosfera. Durante os últimos 40 anos, foram três tentativas de lançamentos do VLS. Todas falharam – a última, em agosto de 2003, matou 21 pessoas em uma explosão ainda em solo. 

Três tentativas fracassadas, bilhões de reais investidos e o Brasil não está entre os países que detém a tecnologia do veículo lançador. O CLA executa, com sucesso, o lançamento de foguetes de treinamento e sondagem, e outros projéteis menores, mas não o VLS. 

“Os militares fracassaram em todas as tentativas de lançar seu principal foguete no espaço e, por isso, estão entregando a base”, afirma Danilo Serejo, quilombola, coordenador do Grupo de Assessoria Jurídica das Comunidades Quilombolas de Alcântara e membro do Movimento dos Atingidos pela Base (Mabe), comentando a tentativa de aluguel do complexo para empresas estrangeiras e nacionais. Em abril deste ano, o governo federal apresentou os nomes de quatro empresas, selecionadas em um processo licitatório, para utilizar comercialmente a base. São três estadunidenses e uma canadense. 

Danilo caracteriza a comercialização da base como um desvio de finalidade. “A base em Alcântara nunca deu certo. Foi construída às custas de nosso sangue e nossos direitos”, afirma.

Como se não bastassem a sucessão de fracassos e a violação de direitos dos quilombolas, o Estado prevê a ampliação da base. Tal ampliação tem sido tentada por anos a fio. O atual governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro tenta atualizar um projeto rejeitado pela sociedade civil e engavetado em 2000, que previa um acordo com os EUA e a expansão da base em mais 12 mil hectares. Isso significaria o deslocamento de outras comunidades. 

Em 26 de março de 2020, no começo da pandemia de covid-19, o governo publicou a resolução nº 11, que prevê a remoção de moradores para ocupar mais 12.645 hectares no território quilombola. Ao mesmo tempo, Bolsonaro assinava um novo acordo com os EUA em Washington. 

Cerca de 2 mil famílias seriam afetadas, mas uma decisão liminar da Justiça Federal no Maranhão suspendeu qualquer ação de planejamento ou execução de realocação até a conclusão do processo de consulta prévia, livre e informada, das comunidades afetadas. O Ministério Público Federal também recomendou à União que não remova os quilombolas, sobretudo durante a pandemia.

E quando acabar a pandemia?

Danilo chama a atuação do Estado de terror psicológico. Aos 37 anos, ele tem quase a mesma idade da base. Sua vida é marcada pela presença do projeto aeroespacial em Alcântara e, mais especificamente, na sua comunidade, Canelatiua, que será remanejada caso haja uma expansão. “A ameaça de remoção atua como um fantasma que perturba a nossas vidas há muito tempo”, conta ele com a sua voz suave. 

A calma aparente não é resignação. Mestre em Cartografia Social e Política da Amazônia pela Universidade Estadual do Maranhão, Danilo lançou, em 2020, o livro A atemporalidade do colonialismo, contando em detalhes a complexa história político-social da base de Alcântara. 

Destinado a ser mais uma vítima das violações de direitos impetradas em Alcântara, Danilo é um importante porta-voz do seu povo e já esteve em alguns países chamando atenção para o que acontece no seu território e exigindo a definitiva titulação das terras quilombolas. 

Jovem à cavalo em Alcântara na época da construção do centro de lançamento. A foto foi publicada no livro Centro de Lançamento de Alcântara: uma janela brasileira para o futuro, editado pela Força Aérea Brasileira em 2014. Para acessar lugares que a aeronáutica considerava inóspitos e pantanosos, inalcançáveis até por veículos 4x4, criou-se a 'cavalaria espacial'.  

Foto de Arquivo Força Aérea Brasileira

O edital de chamamento público para o aluguel da base, publicado em português e em inglês, traz o mesmo argumento que a ditadura usou para avançar sobre a Amazônia, e aponta a “baixa densidade demográfica” da região como uma das principais características do CLA. 

Alcântara tem 15 habitantes por km². Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, uma cidade que ganha quase 100 novos prédios anualmente, considerada uma das capitais do agronegócio do país, tem 22. Com só sete habitantes por km² a mais que Alcântara, ninguém descreveria Ribeirão Preto como uma zona de “baixa densidade demográfica”.

Em 18 de setembro de 1980, um decreto estadual, assinado pelo então governador João Castelo, estabeleceu que 52 mil hectares de Alcântara seriam desapropriados para fins de utilidade pública. Conforme informações do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais na época, o impacto do decreto recairia sobre 80 comunidades e 2 mil famílias – uma população de cerca de 10 mil pessoas. 

Essa área, dez anos depois, em 1991, foi ampliada por Fernando Collor e passou para 62 mil hectares, o que equivale a mais da metade do município de Alcântara. Praticamente toda a faixa litorânea foi definida como ‘área de segurança’.

Cavalaria espacial 

Major Ildefonso, o capelão negro, foi um dos idealizadores do Pelotão de Cavalaria. “Primeira cavalaria espacial da história”, tal como definiu, orgulhoso, o coronel Varjão Monteiro, diretor do Grupo para Implantação do CLA.

A cavalaria foi criada para acessar os lugares que a aeronáutica considerava inóspitos e pantanosos. “Impossível um veículo, mesmo com tração nas quatro rodas, transitar por toda a extensão do perímetro do que seria o futuro centro”, aponta o livro Centro de Lançamento de Alcântara: uma janela brasileira para o futuro, produzido pela Força Aérea em 2014.

Borges esteve entre os cavaleiros alados, outro dos apelidos dado ao pelotão. “Eu lembro de quando a cavalaria ia fazer mobilização, esses recrutas iam de cavalo levar recado”, conta Inácio Diniz, agrônomo e integrante do Mabe. Inácio, um adulto franzino de mãos pequenas, foi removido da antiga comunidade Marudá, com seus pais e irmãos, quando tinha sete anos, em 1986. “Eu achava legal ver os cavalos. Ficava curioso.”

Foi utilizando as trilhas e caminhos abertos pelos quilombolas durante séculos de ocupação que os militares da aeronáutica conseguiram chegar às localidades mais distantes, levando a notícia de que 32 comunidades seriam destruídas e as famílias levadas para o interior do município. Todas as comunidades remanejadas localizavam-se no litoral, “um verdadeiro paraíso”, lembra Inácio.

À esquerda: No alto:

Com população de cerca de 80 famílias, a comunidade quilombola Arenheguaua fica a 54 quilômetros do centro de Alcântara.  A comunidade já é certificada como quilombola pela Fundação Palmares, mas ainda aguarda o processo de titulação das terras. A comunidade foi uma das que evitaram a remoção pelo governo federal na década de 1980.

À direita: Acima:

Mulher processa a castanha de babaçu na comunidade Mamuna, a 35 km do centro de Alcântara. Abundante nos territórios tradicionais, o babaçu e seus derivados podem ser consumidos ou virar matéria-prima de biocosméticos – e são uma importante fonte de renda para os quilombolas. 

fotos de Ana Mendes

Porco do mato caçado no manguezal é levado para a comunidade de Mamuna, que segue em seu território tradicional.

Foto de Ana Mendes
À esquerda: No alto:

Militina Garcia Serejo coleta ostra na comunidade de Mamuna. Alcântara faz parte das chamadas Reentrâncias Maranhenses, faixas litorâneas ricas em biodivesirdade e entrecortadas por igarapés, rios e manguezais.

À direita: Acima:

Habitante da comunidade Mamuna coleta ostras. A comunidade fica a 35 km do centro de Alcântara e tem uma população de 71 famílias remanescentes de escravizados, que ainda vivem em seu território tradicional. 

fotos de Ana Mendes

Alcântara faz parte das chamadas Reentrâncias Maranhenses, uma área de preservação ambiental que se estende até a divisa com o estado vizinho, o Pará. As reentrâncias são faixas litorâneas, altamente entrecortadas por igarapés e rios, nas quais a água doce e a baía salgada chegam a se confundir. É difícil saber onde terminam os igarapés e onde começa o mar. 

Margeada por extensos manguezais, as praias dessas regiãos sofrem as maiores variações de maré do mundo, as macromarés – são cerca de seis metros de sobe e desce diário. Quando a maré baixa, as vastas faixas de areia ficam ornamentadas com lagos provisórios que cintilam, ofuscados pelo sol, onde siris e pequenos peixes nadam, esperando o ciclo da cheia, que acontece cerca de seis horas depois. 

Foi nessa exorbitância de águas que Inácio viveu parte da infância. “Meu café da manhã era peixe”, conta ele, lembrando que nas madrugadas nem sequer sentia a ausência do pai, que saía silenciosamente para buscar o pescado fresco para o desjejum da família. 

O amanhecer de Inácio tinha cheiro do café passado pela mãe e do peixe fresco trazido pelo pai, assado na lenha. “Tiraram o meu maior prazer”, fala, referindo-se à mudança para a agrovila, “aqui é só café com farinha mesmo”.

Além do peixe, antes das remoções, a alimentação era garantida pelo plantio de roças, cata de mariscos, caranguejos, siris e mexilhões, caça e coleta na mata – veado, porco-do-mato, paca, cutia, juçara, bacaba, buriti. Havia de tudo um pouco na mesa. E também a farinha, essencial na alimentação maranhense, extraída da mandioca e produzida anualmente nas comunidades. Depois dela, outra importante fonte nutricional é o óleo, o leite e o mesocarpo derivados da palmeira babaçu, preparados constantemente pelas mulheres.

O pouco que se precisava da cidade era comprado com o dinheiro da venda de alguns produtos que as famílias levavam a cada três meses para o comércio local. A principal fonte de renda era do óleo de coco babaçu. Muito utilizado na culinária maranhense, o óleo era trocado por café, açúcar e sal, principalmente no carnaval, quando a cidade fervilhava, e as mulheres vendiam entre 40 e 50 litros, o suficiente para abastecer a casa de itens alimentícios, vestimentas e outros.

À esquerda: No alto:

O cientista social e professor da Universidade Estadual do Maranhão Antônio César Costa Choairy mostrou, em sua dissertação de mestrado, que as agrovilas “têm configuração arquitetônica similar aos símbolos militares”. Acima, a agrovila Marudá, que remete ao sabre alado da aeronáutica.

Foto de Antônio César Costa Choairy
À direita: Acima:

Gládio alado, símbolo da Força Aérea Brasileira.

Foto de Força Aérea Brasileira
À esquerda: No alto:

Imagem aérea da Agrovila Só Assim, em Alcântara, Maranhão, remete à logomarca do Centro de Lançamento de Alcântara.

Foto de Antônio César Costa Choairy
À direita: Acima:

Logomarca do Centro de Lançamento de Alcântara.

Foto de Força Aérea Brasileira

Na agrovila não. Nelas, não há a enorme extensão de florestas de coco babaçu, típicas da região. Não há o mar e o mangue, não há os braços de água doce, os igarapés. Não há muito espaço e nem sequer a liberdade de morar perto de um parente ou amigo. As casas foram ocupadas através de sorteio e os filhos dos realocados que fossem constituir suas próprias famílias e quisessem construir novas casas nas cercanias dos pais, como era de costume nas comunidades antigas, não podiam. Estava terminantemente proibido. 

Em alguns casos, a aeronáutica derrubou casas construídas pelos quilombolas. “Na verdade, eles não queriam que ferisse o padrão que eles tinham estabelecido”, afirma Antônio César Costa Choairy, cientista social e professor da Universidade Estadual do Maranhão. 

Choairy afirma que as agrovilas “têm configuração arquitetônica similar aos símbolos militares”.  Na sua dissertação, defendida em 2019, Atos de Estado e geração de conflitos, ele coloca lado a lado imagens aéreas de algumas agrovilas e a logomarca do CLA e o Brasão da Aeronáutica, e aponta as semelhanças: “Isso tem um conteúdo simbólico”.

A imposição dos símbolos militares no mapa das agrovilas mostra a força da autoridade. “Eles estão dizendo ‘isso aqui é nosso e vocês vão ficar aí de favor’”, explica Choiary. 

Pensadas, construídas e administradas pelos militares, as agrovilas estão na área do decreto de 1980, atualizado em 1991, que destinava metade do município de Alcântara para fins de utilidade pública. “Elas são parte do projeto do CLA”, diz o pesquisador.

Muitos filhos dos quilombolas remanejados foram embora. Grande parte deles moram na periferia de Alcântara e de São Luís, mais especificamente nos bairros da Camboa e Liberdade. “A lógica dessas comunidades não está dentro desse padrão métrico que foi estabelecido pelo projeto arquitetônico das agrovilas”, finaliza Choairy. 

Além disso, as agrovilas foram construídas em locais que não eram propícios a moradias. Não à toa ninguém vivia lá. “Isso aqui era um brejo. Os carros da mudança tinham que ser puxados a guincho”, conta Leandra de Jesus Silveira, uma senhora que caminha a passos lentos, integrante do Movimento Mulheres Trabalhadoras Rurais de Alcântara, removida quando tinha 40 anos. 

Rua principal da agrovila Marudá, construída para abrigar quilombolas removidos da área onde se instalou o Centro de Lançamento de Alcântara. 

Foto de Ana Mendes
À esquerda: No alto:

Seu Jovêncio Sodre (Caem), 61 anos, nativo da comunidade de Traquaí, vende peixes na agrovila Marudá.

À direita: Acima:

Pequeno comércio na agrovila Marudá.

fotos de Ana Mendes

A área era utilizada pelas comunidades dos arredores como roçado.“Esse aqui era o lugar de trabalho deles”, conta Leandra, lembrando que a comunidade Rio Grande perdeu a área de plantio quando as agrovilas foram construídas. “Eles [os militares] tiraram nós do nosso lugar, bom e farto. E nós, vindo pra cá, tiramos a fartura de outras pessoas. Viu como foi construída a coisa?”

As glebas distribuídas para as famílias foram escolhidas aleatoriamente. “Para cá, para onde eles deram pra nós, não prestava para mandioca”, lembra Leandra. Ela e o marido tentaram escolher outro lugar para a plantação, diferente daquele que havia sido designado pela aeronáutica, mas “disseram que a gente estava destruindo o mato de um coronel lá”.

Inférteis, pequenas e cheias de restrições. Essas eram as principais reclamações dos novos moradores das agrovilas, que tiveram que se contentar com glebas em condições inesperadas e pequenas: 15 hectares para cada família. A área é menor que o módulo rural previsto no Estatuto da Terra, lei de 1964, que prevê 35 hectares como o mínimo necessário para quem vive da agricultura. Entretanto, em 1986, através de um decreto, José Sarney definiu que as áreas afetadas pelos CLA teriam glebas de 15 hectares. 

Muitas famílias se viram obrigadas a voltar todas as semanas às antigas comunidades para abastecer a casa com peixe, camarão, mariscos, coco babaçu e frutas. “Já pensou você andar quatro horas de viagem?”, questiona Inácio, que aos nove anos começou a fazer as viagens a pé com o pai e os irmãos. “A gente não tinha nem uma bicicleta naquela época. Como trazer 20, 30 quilos de peixe no ombro? Eu passei fome. Eu não tenho vergonha de dizer, eu passei fome.”

A fartura das antigas comunidades foi trocada por energia elétrica e água encanada, que chegaram tempos depois, pela estrada e uma casa de telha e tijolo. 

Mas além da fome e das perdas materiais, as perdas simbólicas também pesaram. Alguns parentes sepultados nas comunidades antigas tiveram que ser deixados para trás. A antiga Peru tinha o maior cemitério da região. No Dia de Finados, recebia pessoas de várias localidades, que passavam horas limpando sepulturas, florindo e acendendo velas. 

Quando foram removidos, houve quem quis tirar os restos mortais de seus entes de lá. Mas esse não era o desejo de alguns dos mortos. “Ele aqui não trouxe a mãe dele”, aponta Maria da Glória Silva, dona Glorinha, para o marido sentado ao seu lado. Glorinha fala e cuida do pequeno comércio que tem na sua casa, na agrovila Peru. “Tem cenoura?”, alguém interrompe a conversa. “Cenoura acabou”, ela responde. 

“Ela queria ser enterrada lá e que deixassem lá”, conta Maurício Silva, intervindo na conversa só quando chamado pela mulher, “né, Maurício?”. Maurício lembra que a mãe morreu dias antes da mudança para a agrovila. “Ela já tinha problema de saúde, mas, desde que foi chegando aqueles aviões, aquela revolução, ela foi ficando nervosa”, lamenta, contando que os idosos eram os que mais sofriam com a ideia de mudar-se.  

Tempos depois das remoções, a aeronáutica presenteou as famílias com uma foto do local do qual saíram. “Agradecemos a colaboração e participação neste trabalho que representa o primeiro passo para a concretização da obra do Centro de Lançamento de Alcântara, que estamos realizando juntos”, dizia uma carta, redigida à máquina em uma folha ofício, assinada pelo engenheiro Coronel Armando Varão Monteiro. Junto às palavras de agradecimento, vinha a foto colada no meio da folha.

A foto, somada às memórias afetivas das antigas comunidades, com certeza deixou as pessoas mais saudosas. Muita gente padeceu de saudade. “Hoje eu entendo aquele olhar”, diz Borges, fazendo referência à senhora que ele conduziu pelo braço para fora de sua própria casa no período das remoções. “Toda vez que eu conto essa história eu desabo...”, diz ele, com a voz embargada. “Ela era negrinha, cabelo branquinho. Foi uma maldade que fizeram, e as sequelas estão todas aí.” 

Documento entregue pelo CLA as famílias remanejadas. A foto pertence ao arquivo pessoal de Seu Zé Caroço e foi publicada no livro Novos Capitães do Mato: conflitos e disputas territoriais em Alcântara de Benedito Souza Filho pela Editora Universidade do Maranhão em 2013.  

Foto de Arquivo Pessoal, Seu Zé Caroço

Cronologia do Centro de Lançamento de Alcântara

1978 
Planejamento do Centro de Lançamento de Alcântara.

1980 Decreto estadual, assinado pelo então governador do Maranhão João Castelo, estabelece que 52.000 hectares de Alcântara seriam desapropriados para fins de utilidade pública.

1983 Trinta jovens alcantarenses são levados pelos militares para São Paulo para fazer um treinamento e passam a compor as equipes que iriam remover 312 famílias quilombolas para implementação do CLA.

1986 Os militares iniciam a construção das sete agrovilas para acomodar as famílias removidas. Inicia-se a remoção compulsória das primeiras famílias.

1987 Em meados do ano, iniciam-se as obras do aeroporto, do centro técnico e do centro de lançamento e a segunda fase dos remanejamentos compulsórios.

1991 Em um novo decreto, o presidente Fernando Collor, amplia em mais 10 mil hectares a área destinada a fins de utilidade pública, passando para 62 mil hectares, o que equivale a mais da metade da área do município de Alcântara.

2000 Brasil e Estados Unidos tentam fazer um acordo para utilização do CLA. Depois de muitos questionamentos da sociedade civil sobre as cláusulas, o acordo é engavetado.

2008 É publicado no Diário Oficial da União um estudo identificando a extensão do território étnico de Alcântara. Segundo o documento, mais de 78 mil hectares deveriam ser titulados como terras quilombolas. Grande parte do território étnico está sobreposto pelo decreto de 1991.

2019 O Congresso Nacional aprova um novo acordo entre Brasil e Estados Unidos, para a utilização comercial da Base de Alcântara. O presidente em exercício, Jair Bolsonaro, vai aos Estados Unidos e assina o acordo com o então presidente americano, Donald Trump.

2020 O governo federal lança uma resolução, prevendo novas remoções dos quilombolas de Alcântara para a ocupação de mais 12 mil hectares e ampliação da base. O MPF recomenda a não remoção das comunidades enquanto durar a pandemia e a Justiça Federal no Maranhão dá decisão liminar que suspende as remoções até que todo o processo de consulta prévia às comunidades seja concluído.

2021 Uma chamada pública é lançada para que empresas nacionais e internacionais ocupem a Base de Alcântara. Quatro são selecionadas – três americanas e uma canadense. 

Esta reportagem foi produzida com o apoio de duas bolsas: Beca GK, em parceria com a Hivos/Todos Los Hojos en La Amazonia, e Rainforest Journalism Fund, em parceria com o Pulitzer Center. 

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