Mesmo com solo pobre e clima árido, ecossistema brasileiro é um dos mais diversos e antigos do mundo
O Campo Rupestre reveste os topos das montanhas de Minas Gerais e da Bahia e foi ignorado pela ciência por muito tempo. Hoje, cientistas querem elevá-lo à categoria de bioma.
Uma estrada poeirenta serpenteia as montanhas, tirando lascas dos precipícios e dando vertigem aos viajantes que dividem o espaço apertado com caminhões que descem a serra. Na época das chuvas, com a poeira transformada em um lamaçal escorregadio, subir essa muralha natural é uma verdadeira aventura.
Esse é o retrato das inúmeras vezes em que percorremos a estrada que leva à parte alta do Parque Nacional da Serra do Cipó, em Minas Gerais, muito antes da chegada do asfalto à região. Chegar ao Alto Palácio, como a área é chamada, é como entrar em um mundo cuja atmosfera revela um passado distante. A paisagem muda de maneira tão abrupta que mal é possível reconhecer as terras baixas após subirmos alguns quilômetros pela estradinha tortuosa que leva a um dos locais mais fascinantes do planeta.
Ao cair da tarde, as serras se vestem de tons de prata e dourado antes de ganharem um tom avermelhado de beleza singular. Mas algo além da grandiosidade da paisagem e das arvoretas tortuosas chama a atenção do viajante: uma infinidade de rochas despontando do solo pedregoso, todas apontando para o oeste.
Um olhar cauteloso revela também uma explosão de vida: flores minúsculas e coloridas surgem por todos os lados. Entre as pedras, uma infinidade de insetos esconde-se com nossa aproximação, e calangos e sapinhos tímidos observam-nos de seus abrigos. O sol castiga o corpo, mas o vento forte e quase constante refresca e alenta. Não é preciso andar muito para logo encontrar uma das muitas cachoeiras de água gelada que brotam na região.
Alheio ao conhecimento dos desavisados, esse é um dos mais antigos cenários geológicos e biológicos do planeta. Trata-se do Campo Rupestre, ecossistema que reveste os topos de montanhas de Minas Gerais e da Bahia, que foi ignorado pela ciência e pela sociedade até muito recentemente.
Jardim do Brasil
Um dos expoentes desse ecossistema é a serra do Cipó. Apelidada pelo paisagista Roberto Burle Marx de “Jardim do Brasil”, a região compõe apenas um pequeno trecho daquela que é a maior e mais antiga cadeia de montanhas do Brasil, a cordilheira do Espinhaço. Com cerca de 1,2 mil km de extensão e 1,8 bilhões de anos de idade, a cadeia de montanhas corta os estados de Minas Gerais e Bahia no sentido Norte-Sul. Nos seus primórdios, muito antes da separação dos continentes, essas montanhas atingiam alguns milhares de metros de altitude, e talvez fossem como os Andes primitivos da América do Sul. Após tanto tempo sob a ação implacável do clima, a cordilheira formada principalmente de quartzito e arenito foi sendo erodida e rebaixada até chegar à sua conformação atual, com picos de 2 mil metros acima do nível do mar.
Os minerais que sustentam a vida vegetal foram continuamente levados pelas chuvas e pelo vento e acabaram nas áreas mais baixas, restando aos topos de montanha do Espinhaço os solos mais pobres da Terra. Os organismos que ali vivem enfrentam variações dramáticas de temperatura, restrição hídrica severa, ventos fortes e radiação solar intensa. “Durante milhões de anos, as plantas evoluíram uma diversidade tão grande de estratégias para sobreviver neste ambiente que já não mais conseguem viver em nenhuma outra parte do mundo”, afirma Rafael Oliveira, professor da Universidade de Campinas (Unicamp) que estuda as adaptações das plantas de Campo Rupestre.
Pela lógica, um lugar tão inóspito e adverso abrigaria uma baixa diversidade de espécies. Porém, ironicamente, ali se estabeleceram alguns dos ambientes mais diversos do planeta. Como isso foi possível? A chave está no próprio tempo. A cordilheira do Espinhaço é um ambiente muito antigo e livre de flutuações climáticas extremas. Em regiões fortemente afetadas pelas Eras do Gelo, ocorreram vários eventos de extinções que levaram à perda de espécies. Mas em locais mais estáveis, onde o clima não variou tanto ao longo do tempo geológico, as linhagens de plantas puderam desenvolver adaptações extraordinárias para sobreviver às adversidades ambientais. E isso resultou em uma diversidade incrível de formas de vida sobre as rochas.
O Campo Rupestre, nos topos das montanhas mineiras, baianas e goianas, ocupa menos de 1% do território brasileiro e, ainda assim, compreende 15% de todas as espécies de plantas do país. É sem dúvida uma das regiões do planeta com a maior concentração de vida por unidade de área. Estudos recentes mostram que a diversidade do Campo Rupestre pode ser superior até mesmo à das grandes florestas verdes, como a Amazônia e a Mata Atlântica.
Além disso, cada pequena parte da Cordilheira do Espinhaço contém suas próprias espécies, de forma que a preservação de uma determinada região, como a serra do Cipó, não garante proteção às espécies da Chapada Diamantina, por exemplo. Cerca de 40% das plantas da região, cerca de 2 mil espécies, não podem ser encontradas em nenhuma outra parte do planeta. Isso significa que em uma área menor do que a Bélgica e Holanda juntas, podemos encontrar mais espécies de plantas do que em toda a Europa Ocidental.
Essas características peculiares têm levado à uma discussão na comunidade científica sobre se o Campo Rupestre pode representar um novo bioma para o Brasil, e não uma parte do bioma Cerrado, como é tradicionalmente classificado. A partir das afinidades evolutivas baseadas em análises de DNA das plantas, cientistas conseguiram reconstruir a história biogeográfica do Campo Rupestre e, ao que tudo indica, foram as espécies antigas do Campo Rupestre que depois colonizaram o Cerrado, e não o contrário. O Campo Rupestre é, então, pai do cerrado – não o seu filho.
Ocupação humana
A Cordilheira do Espinhaço não é rica apenas pela sua diversidade biológica, mas também por uma diversidade geológica e cultural sem paralelos no Brasil. Os registros mais antigos de grupos humanos na região datam de 12 mil anos atrás, e milhares de sítios arqueológicos contendo desde pinturas rupestres a objetos manufaturados, armas e urnas funerárias já foram identificados. Grande parte da história do Brasil Colônia está intimamente relacionada à extração de ouro e diamante provenientes do Espinhaço e escoado para os portos do Rio de Janeiro a fim de abastecer Portugal. As canelas-de-ema, plantas típicas dos campos rupestres que são altamente inflamáveis, serviram como tochas que iluminaram os caminhos dos primeiros bandeirantes.
Os tropeiros, o escambo, a religião, a escravidão e as relações comerciais do Brasil Colônia não podem ser entendidos sem a complexidade histórica das sociedades relacionadas ao Espinhaço. Cidades históricas como Diamantina, Ouro Preto, Tiradentes, Mucugê e Pirenópolis, assentadas sobre os campos rupestres, definiram grande parte da história do país. Ainda existem vilarejos isolados onde populações tradicionais vivem de maneira similar há séculos, extraindo das sempre-vivas e das plantas nativas o sustento do dia-a-dia.
Um desses vilarejos está situado no extremo norte de Minas Gerais, numa região conhecida como Vale do Rio Peixe Bravo. Ali se situa um tipo muito particular de Campo Rupestre – o ferruginoso, ou Campo Rupestre sobre canga, como também é chamado por se desenvolver sobre uma couraça de rocha ferruginosa de mesmo nome. Nessa região, o clima é árido, as chuvas são escassas e o alimento é difícil de conseguir. Os moradores locais – quilombolas, geraizeiros e ribeirinhos – precisam se virar com o que a terra oferece em cada época do ano para sobreviver.
O senhor Nilson, nascido e criado na comunidade do Peixe Bravo, nunca frequentou uma escola, mas aprendeu a ler e entender muito bem os sinais da natureza. Ele conta que durante a infância não havia brinquedos industrializados – as próprias crianças os inventavam. Durante uma das nossas conversas ele reconstituiu o cotidiano da região usando gravetos, frutos e folhas: burrinhos de carga, carros de boi e personagens do sertão rapidamente tomaram forma em suas mãos. Brinquedos artesanais, alimentos, ferramentas e medicamentos obtidos a partir da flora e da fauna nativa são apenas alguns dos exemplos da íntima relação entre os povos tradicionais do Espinhaço e os Campos Rupestres.
Outro exemplo de campos ferruginosos é a região de Carajás, na Amazônia, onde os afloramentos rochosos formam ilhas de ferro em meio ao coração da Amazônia. “Em Carajás, pelo menos 60 espécies de plantas (entre orquídeas, ipoméias, gramíneas) só ocorrem na região e, por isso, estão severamente ameaçadas de extinção pelo crescente impacto da mineração, que elimina de forma irreversível as áreas de canga”, afirma Pedro Viana, pesquisador do Museu Emílio Goeldi, no Pará. Inúmeras cavernas ainda desconhecidas para a ciência se escondem embaixo das cangas. Dentro delas, já foram encontrados morcegos raros ameaçados de extinção e também novas espécies de invertebrados troglóbios cegos, brancos e com pernas longas – animais adaptados para a vida na escuridão. Praticamente todos esses invertebrados (insetos, centopeias, pequenos besouros e aracnídeos) são endêmicos – só vivem ali. Cada caverna encontrada é uma “caixa preta” a ser aberta, com seus próprios segredos e mistérios.
Não bastasse o patrimônio biológico e cultural associado aos Campos Rupestres, eles são também o lar de várias das grandes bacias hidrográficas brasileiras, como a do São Francisco. Estima-se que 50 milhões de brasileiros dependem das águas que nascem nos topos da cordilheira do Espinhaço e podem ser diretamente afetadas pela extinção iminente do Campo Rupestre. Os habitantes da Região Metropolitana de Belo Horizonte consomem a água que se acumula nas rochas ferruginosas do Quadrilátero Ferrífero. “Os Campos Rupestres são o berço de 16 importantes bacias hidrográficas que drenam para outras regiões, Norte a Sul, abastecem milhares de municípios e 90% da população no sudeste do Brasil com água de ótima qualidade”, ressalta Marcos Callisto, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e especialista em recursos hídricos.
Nem tudo é flor
Historicamente, os Campos Rupestres são explorados pela abundância de metais preciosos. Inicialmente, o ouro e o diamante e, mais recentemente, o ferro. A extração mineral deixou profundas marcas não somente na paisagem, mas também nas pessoas e sociedades que ali se estabeleceram. Nos últimos anos, os Campos Rupestres ferruginosos foram palco das duas maiores tragédias socioambientais do Brasil – além da imensa perda humana, os rompimentos das barragens de rejeito de Mariana e Brumadinho devastaram as bacias do Rio Doce e do Rio Paraopeba, deixando um rastro de morte ao longo de seus leitos.
Para as pesquisadoras Elise Buisson e Soizig Le Stradic, a recuperação ambiental do Campo Rupestre é extremamente complexa. “Os desafios da restauração ecológica são muitos, pois a remoção total do solo com a mineração impede que a vegetação se reestabeleça naturalmente. As plantas têm crescimento muito lento, são difíceis de serem transplantas e produzem muito poucas sementes, o que dificulta a produção de mudas”. As duas francesas estudam o Campo Rupestre desde 2006.
Aliado à perda de hábitat pela mineração, os Campos Rupestres sofrem com uma crescente pressão da expansão urbana, especulação imobiliária por condomínios de luxo, queimadas frequentes, manejo indevido da fauna e da flora (extração ilegal de plantas para comércio, caça), a depleção dos recursos hídricos (poluição de rios, drenagem de nascentes) e também a conversão em áreas de pasto e silvicultura.
O efeito conjunto de todos esses fatores pode ter consequências catastróficas para o Campo Rupestre num futuro próximo. Estudos recentes utilizando modelos matemáticos de distribuição das espécies preveem uma redução de até 80% da área do Campo Rupestre nos próximos 50 anos devido às mudanças climáticas. Isso por que as plantas que ali vivem estão adaptadas a um microclima muito específico dos topos de montanha. Com o aumento da temperatura média da Terra, as espécies que vivem em terras baixas tendem a migrar para as terras altas. “Mas as espécies que ocorrem nos topos de montanhas simplesmente não têm para onde fugir e desaparecem, pois não conseguem lidar com o calor extremo”, alerta Geraldo Fernandes, professor da UFMG que publicou recentemente o primeiro livro dedicado à Ecologia do campo Rupestre.
Grande parte da área original dos Campos Rupestres já foi perdida, e menos de um terço se encontra protegido em unidades de conservação de proteção integral. De acordo com Alexsander Azevedo, biólogo do Instituto Biotrópicos e coordenador do Mosaico de Áreas Protegidas do Espinhaço: Alto Jequitinhonha – serra do Cabral, os desafios são muitos: “A falta de recursos financeiros para a gestão do Mosaico via ONG (secretaria executiva) e as carências das entidades gestoras [Instituto Estadual de Florestas e Instituto e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade] dificultam bastante o desenvolvimento de ações, restando apenas a força estratégica de alinhamento entre os gestores e cidadãos para a condução de ações conjuntas”.
Azevedo também relata que “reconhecer a relevância de tamanho patrimônio natural seria o primeiro passo para a transformação do conceito da sociedade a respeito da natureza ímpar dos campos rupestres”, disse ele. “Sem a participação social, as ações são muito pontuais e sem grande poder de integração acerca dos problemas vividos, tais como conflitos entre unidades de conservação e comunidades vizinha”. A situação não é diferente no Parque Nacional da Serra da Canastra, onde até hoje são flagradas atividades ilegais de mineração de quartzito, diamante, ouro, além de agropecuária.
O Campo Rupestre sobreviveu a milhões de anos de um clima implacável. Ventos, tempestades, chuvas – nada foi suficiente para destruí-lo. Pelo contrário, das adversidades desabrochou a mais inesperada diversidade. Entretanto, em poucas décadas ele pode desaparecer pelas mãos do homem. Só o tempo definirá o futuro do ecossistema mais antigo da América Latina que, mais uma vez, está à beira do abismo.