Rico é o país que protege seus manguezais
Em nome de um suposto desenvolvimento econômico, o governo removeu a proteção de mais de 1 milhão de hectares de manguezais em 2020. Mas esses ecossistemas geram maior valor agregado quando estão vivos, defende pesquisador.
Região de mangues próxima à comunidade Furo da Deolândia, na Resex São João da Ponta, Pará. As reentrâncias paraenses e amazônicas se estendem por centenas de quilômetros à leste da foz do rio Amazonas e formam uma mosaico de mangues, mar, praias, dunas, restingas, baías, enseadas, ilhas, rios, furos e igarapés.
O ano de 2020 foi muito ruim para o meio ambiente no Brasil. Observamos incêndios florestais que devastaram a Amazônia e o Pantanal por meses. Neste último, estima-se que uma área equivalente a mais de 10 vezes o tamanho da cidade de São Paulo tenha virado cinzas. Na Amazônia, a ocorrência de incêndios mais que dobrou – 11 mil km2 de florestas, a maior taxa em 12 anos. As queimadas, apesar de ocorrerem naturalmente nos ciclos de muitas florestas, têm sido intensificados por ações humanas e mudanças na gestão territorial de áreas que deveriam estar protegidas.
Houve uma forte mudança na política ambiental brasileira relativa à conservação dos recursos naturais ao longo dos últimos anos. Muitos desses recursos encontram-se em áreas protegidas, cada vez mais pressionadas, com a conivência ou, até mesmo, o estímulo de governos. A exploração e o uso desses recursos têm sido justificados pela necessidade de crescimento econômico a todo custo, uma visão enraizada na sociedade brasileira, mas que não pode ser confundida com o desenvolvimento social. O fato é que a conservação das áreas protegidas existentes gera um enorme valor agregado, tanto para o governo quanto para as comunidades costeiras diretamente dependentes de seus recursos. A Amazônia, por exemplo, possui vital importância para a segurança hídrica de milhões de brasileiros que vivem nas maiores metrópoles no Sudeste do Brasil, a milhares de quilômetros de distância.
Para cuidar melhor dos nossos ecossistemas e recursos, precisamos compreender a importância deles para a qualidade de vida dos brasileiros – e o caso das florestas de manguezais em zonas costeiras é emblemático.
O Brasil possui centenas de estuários e baías costeiras nas quais os manguezais se desenvolvem, ocupando a faixa litorânea conhecida como entremarés, alagada diariamente pela subida e descida do nível do mar. É comum encontrarmos manguezais próximos ou dentro de zonas urbanas costeiras, onde milhões de pessoas residem. Cidades como Belém (PA), Rio de Janeiro (RJ), Vitória (ES), Santos (SP) e Recife (PE) são exemplos de grandes centros urbanos e portuários que se desenvolveram em regiões inicialmente rodeadas por manguezais, hoje reduzidos a uns poucos remanescentes.
Apesar de tão agredidas, as florestas de manguezais são fundamentais para o sustento alimentar, trabalho e proteção climática. Centenas de milhares de brasileiros utilizam ou dependem diretamente dessas florestas para comer, produzir artesanato e se divertir. Outros milhões são beneficiados indiretamente ao consumir crustáceos, moluscos e peixes que usam manguezais como abrigo e local de berçário.
“Remover florestas de manguezais para instalar tanques de cultivo de camarão, uma prática comum no mundo, lança na atmosfera mais de 1 tonelada de CO2 por hectare, 10 vezes mais carbono do que o liberado pela conversão da mesma área de floresta amazônica em pasto”
Os manguezais também atuam como eficientes filtros aquáticos e removem anualmente enormes quantidades de nutrientes e contaminantes despejados por atividades como a agricultura, além de resíduos urbanos e industriais. Uma área de mangue em zona urbana pode remover até 40 vezes mais poluentes do que a mesma área costeira sem vegetação. A ocupação e urbanização da linha da costa com a construção de casas, edifícios, muros, portos ou marinas leva ao aumento de poluentes na água, diminuem a balneabilidade costeira e põe em risco a saúde da população. Tudo isso contribui para elevar os custos de tratamento de água em zonas urbanas.
Manguezais também podem ser um enorme ativo financeiro para governos de todas as esferas. Florestas de mangue aprisionam enormes quantidades de carbono, auxiliando na prevenção de mudanças climáticas mais rigorosas no futuro. Para se beneficiar desse ativo, governos precisam contabilizar essas propriedades em cada região e garantir que manguezais não sejam removidos. Quando desmatados, os manguezais liberam CO2 na atmosfera, um gás estufa que piora a situação climática mundial. Por exemplo, remover florestas de manguezais para instalar tanques de cultivo de camarão, uma prática comum no mundo, lança na atmosfera mais de 1 tonelada de CO2 por hectare, 10 vezes mais carbono do que o liberado pela conversão da mesma área de floresta amazônica em pasto. Dessa forma, ao tratar o carbono aprisionado em manguezais como um ativo financeiro, governos podem se beneficiar em mercados internacionais se conseguirem demonstrar que as florestas reduzem emissões de gases estufa na atmosfera. Empresas brasileiras que possuem atividades poluidoras também podem financiar a restauração de florestas de manguezais derrubadas, garantindo que as taxas de sequestro em determinadas áreas compensem as taxas de emissões de gases associadas às suas atividades. Mercados financeiros de todo o mundo estão à procura de projetos sustentáveis que agreguem valor climático e benefícios sociais, o que faz das florestas de manguezais uma oportunidade única de investimento – sua conservação contribui tanto para a melhora ambiental em ambientes costeiros como para a dignidade de milhões de pessoas pelo Brasil.
Apesar de tudo isso, o Brasil mudou a sua legislação ambiental e acabou com a proteção de mais de 1 milhão de hectares de florestas de manguezais em 2020. Como poderemos nos adaptar a um futuro tão desafiador sem poder contar com recursos naturais fornecidos por remanescentes de florestas e de outros ecossistemas naturais?
Outras nações que experimentaram significativas perdas de florestas de mangues viram o rápido avanço da aquicultura costeira e da especulação imobiliária para uso turístico. Hoje, países como Mianmar, Malásia, Índia e Indonésia estão investindo no replantio e recuperação de florestas de mangues para proteger suas fontes de alimento e qualidade da água e combater eventos climáticos extremos e elevação do nível do mar. Nesses lugares, grandes fundos internacionais financiam a recuperação das áreas desmatadas, ajudando a melhorar a vida das pessoas enquanto se beneficiam dos créditos climáticos pela remoção de gases estufa da atmosfera.
Por possuir a segunda maior área de manguezais no mundo, o Brasil tem um incrível potencial ainda inexplorado. O caminho à frente definirá como nossa sociedade irá se relacionar com os bens naturais ainda preservados. Isso será crucial para nos prepararmos para um mundo cada vez mais hostil. É vital reunir o apoio da sociedade para um modelo de desenvolvimento sustentável que associe os amplos serviços da natureza à nossa capacidade produtiva. É preciso disseminar para centenas de milhões de pessoas deste país que natureza e desenvolvimento social não são antagônicos e que só teremos crescimento econômico equilibrado e boa qualidade de vida para uma parcela maior da sociedade brasileira se garantirmos a proteção e restauração dos nossos ecossistemas costeiros e continentais.
Angelo Bernardino é explorador da National Geographic Society, doutor em oceanografia pela Universidade de São Paulo e professor associado de oceanografia na Universidade Federal do Espírito Santo.