Embarque em um trem pelo interior raramente visto da Coreia do Norte
Essa rota ferroviária atravessa cidades e vilarejos historicamente fechados a estrangeiros.
quando criança nos anos 1960, Mark Doran era fascinado por marias-fumaça. Em 1978, uma década após elas serem desativadas da Grã-Bretanha, sua terra natal, ele foi à Alemanha Oriental em uma “caça ao vapor” e também porque era uma “terra proibida”.
Quarenta anos mais tarde, esse fascínio levou Doran à Coreia do Norte—pela segunda vez. Em 2016, ele pegou o trem de Moscou-Ulaanbaatar-Pequim que atravessa a Sibéria e a Mongólia até Pyongyang.
Contudo, em setembro, o gerente aposentado da British Railways fez uma viagem ainda mais obscura: de Pyongyang até a costa nordeste da República Popular Democrática da Coreia, atravessando cidades e vilarejos historicamente fechados a estrangeiros.
“Resolvi que essa era a maior aventura ferroviária existente”, contou Doran à National Geographic Travel.
Em setembro, o grupo dele percorreu de Pyongyang a Rason, perto das fronteiras da Rússia e da China. A viagem só passou a ser permitida para estrangeiros no ano anterior, segundo a organizadora da viagem, a Koryo Tours de Pequim (como tudo na Coreia do Norte, entretanto, o futuro dessas viagens não está garantido e está sujeito aos caprichos do governo).
O turismo na Coreia do Norte ainda é raro, apesar de possivelmente ser uma surpresa à maior parte dos norte-americanos que, atualmente, são proibidos de ir até lá.
Os sul-coreanos, cujo país ainda está tecnicamente em guerra com a Coreia do Norte, também são proibidos de ir, porém alguns milhares de turistas—na maioria europeus, japoneses, australianos, canadenses e russos ocasionais—optam, a cada ano, por férias ao norte da zona desmilitarizada mais fortificada do mundo.
Estrangeiros não têm autorização para viajar em trens nacionais da Coreia do Norte. Contudo há uma ressalva: um vagão-leito passa algumas vezes por mês de Pyongyang a Moscou através da “Ponte da Amizade” na fronteira russa, segundo a Koryo. No caminho para a Rússia, o trem faz uma parada final na Coreia do Norte em Rason, no nordeste do país, onde os visitantes podem desembarcar e prosseguir para a Rússia ou cruzar a China.
“Nosso pequeno grupo de doze viajantes intrépidos completou o percurso de 36 horas atravessando o cenário maravilhoso, paisagens intocadas e um litoral deslumbrante”, afirmou Doran.
Bem diferente de férias comuns, essas viagens restringem a liberdade de movimentação, em vez de permiti-la. Os passeios são monitorados e acompanhados de perto por inspetores do governo. Os estrangeiros podem ver apenas o que o regime quer que eles vejam.
A maioria dos passeios se limita a Pyongyang, a capital inexplorada onde a elite é autorizada a viver, que visita monumentos e se refestela com comida abundante (para contradizer relatos de fome e mortes em massa por inanição). Em um ano como 2018, os turistas podem assistir ao impressionante espetáculo dos Jogos das Massas.
Em setembro, os Jogos retornaram após o intervalo de cinco anos para comemorar o 70o aniversário do país. “Pense na cerimônia de abertura das Olimpíadas com esteroides multiplicada por cem e poderá chegar perto”, contou Ruth Clark, outra viajante britânica do trem.
O programa de vários dias conta com 100 mil participantes. É um cortejo de ginastas e dançarinos com um pano de fundo de iconografia comunista, um mosaico humano enorme feito por milhares de alunos sincronizados segurando e folheando livros coloridos.
O trem que atravessa o interior da Coreia é o oposto dessa experiência. Nicholas Bonner, fundador da Koryo, fez a rota em 2004, enquanto filmava State of Mind, documentário que retrata dois jovens ginastas que treinam para os Jogos das Massas. O estado de desenvolvimento da Coreia do Norte é tal que quase nada mudou desde a primeira jornada que ele fez, conta ele.
“Nenhum prédio moderno e uma das costas mais lindas do leste da Ásia”, disse Bonner. “As praias intocadas, pequenas enseadas. É uma das vistas marítimas mais imaculadas que se pode ver. É pobre, mas é deslumbrante.”
“Não é o trem mais rápido, então se você cair dele, provavelmente poderia correr e pular de volta nele”, brincou.
De fato, a condição das ferrovias da Coreia do Norte é, em uma palavra, “vergonhosa”, conforme disse o atual líder Kim Jong-un a Moon Jae-in, o presidente da Coreia do Sul, quando os dois líderes se encontraram em abril. As conversas entre eles incluíram ligar os dois países por ferrovias. Ao contrário da vizinha, a Coreia do Sul dispõe de um serviço ferroviário de alta velocidade de renome internacional.
O primeiro desses trens iniciou uma missão exploratória partindo da zona desmilitarizada em 30 de novembro de 2018, com uma análise das ferrovias do norte feita por engenheiros de ambos os países.
O trem atual proveniente de Pyongyang é, no entanto, rudimentar. “Era um antigo trem soviético dos anos 1950 ou 1960 e não acho que mudou muito desde então”, afirmou Ruth Clark, a companheira de viagem britânica, gerente de relações humanas de 48 anos. “Mas era limpo, os banheiros eram mantidos limpos e sempre tinham papel higiênico, as cabines eram boas, as roupas de cama estavam limpas, todos conseguíamos dormir um pouco”.
O vagão internacional contrastava com os nacionais, que Doran chamava de “imundos”. Entretanto levando em consideração tudo, “foi uma jornada de 34 horas, o que parece horrível, mas o tempo pareceu passar muito rápido, já que havia tanto para ver pelas janelas”, disse Clark.
Não havia vagão-restaurante, mas o grupo tinha passado em um supermercado em Pyongyang antes da viagem para comprar lanches e cerveja (sem equipamentos, eles tiveram de esperar o valor das compras ser calculado à mão em livros contábeis de papel).
Do trem, os passageiros viram trabalhadores da Coreia do Norte e acenaram. “Muitos deles, especialmente crianças, acenaram de volta. Podemos ter sido os primeiros estrangeiros que já tinham visto”, conta Doran.
“As cordilheiras centrais são formadas por vales e montanhas de floresta intocada com vistas de matas conforme avançávamos por cenários equivalentes a qualquer outro lugar do mundo. Estava sendo feita a colheita dos campos e pessoas estavam ali trabalhando. O transporte era feito basicamente por bicicletas em estradas de terra com ocasionais carroças puxadas por bois. Havia pouco o que identificasse que era 2018 e não cem anos atrás”, acrescentou.
Doran e Ian Bennett, o guia de turismo, avistaram uma surpresa quando o trem parou brevemente em Chongjin: uma locomotiva a vapor sob pressão no armazém, “uma das últimas do mundo em operação normal”, afirmou Doran.
Por serem estrangeiros no vagão internacional, ficaram isolados dos norte-coreanos.
“Fomos trancados em nosso vagão para não nos misturarmos com os moradores”, disse Clark. “Dividimos o vagão com guardas e alguns diplomatas coreanos. Pudemos sair em diferentes estações onde originalmente nos disseram que não poderíamos sair, então foi um bônus porque ficou um pouco apertado”.
Conforme Doran relembra, na chegada a Rason, “há uma 'fronteira' interna para impedir viagens não autorizadas feitas por cidadãos e nossos passaportes foram examinados. Diversos passageiros foram expulsos do trem, o que não ocorreu com ninguém de nosso grupo, já que os guardas não queriam provocar um incidente diplomático por serem rígidos demais. Eles claramente estavam mais nervosos do que nós!”
E, ainda, ao chegar a Rason, foi uma surpresa para os ocidentais descobrir que podiam andar um pouco sozinhos. Rason é uma zona franca composta de duas cidades: Rajin e Sonbong (RAjin + SONbong = RASON), perto da província Jilin da China e do distrito Khasansky da Rússia em Primorsky Krai. Historicamente, Rason tem servido a ambos os países por ser um porto de clima quente, razão pela qual o local é habituado à presença de estrangeiros.
Rason tem um cassino que atende visitantes chineses, embora sejam proibidas apostas por norte-coreanos. O único mercado do país aberto a estrangeiros está localizado em Rason, que ainda conta com uma indústria de pesca que se destinava a servir como um experimento para o desenvolvimento da Coreia do Norte no início dos anos 1990, mas, como tudo mais, foi paralisada por tensões geopolíticas.
Contudo, após a longa viagem de trem, houve oportunidade para andar desacompanhado.
Clark optou por fazer caminhadas pela manhã em volta da praça de frente para o hotel. “Foi uma boa maneira de ver o dia a dia dos moradores”, conta ela. Ela até fez uma massagem.
Doran se aventurou por um bar local. “A mulher do bar ficou surpresa em me ver e, para conseguir uma cerveja, tive de apontar para a bebida de outro cliente”, explica ele. Depois outros três se juntaram a ele para mais algumas rodadas. “Por fim, chegou um inspetor que se juntou a nós, provavelmente para socializar, mas possivelmente para se certificar de que não iríamos nos dispersar.”
Houve outras interações com moradores. O grupo visitou um orfanato e uma aula de inglês para alunos de 16 anos. “Conversamos sobre famílias e hobbies, mas evitamos falar sobre política, embora estivéssemos livres para conversar sem sermos monitorados”, afirmou Doran.
Não está claro se essas viagens de trem terão futuro.
Moon, da Coreia do Sul, disse que espera abrir duas ligações ferroviárias para o norte até o fim do ano, segundo a agência de notícias Yonhap do sul. Pode ser puramente simbólico, já que persistem as sanções. Ainda assim, talvez no futuro, cidadãos das duas Coreias possam se juntar de fato no trem. Existe algo inerentemente idílico em trens, ainda que seja dura a realidade.
“É possível interagir. Todos estão em uma jornada. É compartilhado alimento, passa-se o tempo junto”, conta Bonner. “Viagens de trem possuem uma atmosfera maravilhosa.”