Como esta antiga cidade tornou-se a capital do perfume da Índia

Por séculos, perfumistas de Kannauj desenvolveram uma alquimia para criar “ouro líquido”.

Por Rachna Sachasinh
fotos de Tuul E Bruno Morandi
Publicado 5 de jan. de 2021, 12:00 BRT
Jovem tira pétalas de uma imensidão de rosas num centro de triagem em Kannauj, na Índia. ...

Jovem tira pétalas de uma imensidão de rosas num centro de triagem em Kannauj, na Índia. Por mais de 400 anos, artesãos de Kannauj produzem attar de rosas utilizando o mais antigo processo de fabricação de perfume conhecido do mundo.

Foto de Tuul and Bruno Morandi

Tegh Singh chega à sua fazenda de flores nas margens do rio Ganges antes do nascer do sol, pronto para colher pétalas de rosas no ápice da floração. Circulando pelos densos arbustos de Rosa damascena plantados ao acaso, ele trabalha rapidamente, jogando as pétalas rosa-claro em um saco de juta pendurado no ombro. No momento em que os primeiros raios de sol refletem no rio, Singh, 35 anos, já está em sua motocicleta, transportando a carga cheirosa para Kannauj, pequena cidade conhecida como “a capital do perfume na Índia”.

Há séculos, em Kannauj (pronuncia-se kun-nauj), no cinturão do Ganges, nordeste da Índia, são produzidos perfumes botânicos à base de óleo, denominados attar, utilizando os mais antigos métodos de destilação conhecidos no mundo. Procurado por membros do Império Mogol e pessoas comuns na cultura obcecada por fragrâncias da Índia antiga, o attar de Kannauj era utilizado para perfumar tudo: corpos, comida, fontes, casas.

Embora os attars tenham saído de moda no século 20, os perfumistas de Kannauj continuam a exercer o ofício da mesma maneira – conquistando recentemente uma nova geração de admiradores nacionais e internacionais de sua fragrância sensual e atraente.

A fragrância do attar

Attar é a perfumaria do velho mundo. Derivado do latim per e fume (por meio da fumaça), a história do perfume começa com pessoas que maceravam e infundiam extratos botânicos diretamente no óleo ou na água. A perfumaria moderna usa o álcool como veículo ou solvente pelo simples motivo de ser barato, neutro e facilmente difundido. Mas os attars são tradicionalmente feitos com óleo de sândalo, o que os torna untuosos e altamente absorventes. Basta uma pequena gota no punho ou atrás da orelha para o perfume penetrar na pele e permanecer agradável, às vezes por dias.

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    Nas regiões do interior próximas a Kannauj, as rosas damascenas são colhidas cedo todos os dias por mãos experientes e entregues aos mestres fabricantes de attar.

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    Saco de rosas sendo entregue na fábrica da M.L. Ramnarain Perfumers, uma das cerca de 350 destiladoras que ainda operam em Kannauj.

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    Igualmente atraentes para homens e mulheres, os attars têm uma qualidade andrógina. Eles exalam notas florais, amadeiradas, almiscaradas, esfumaçadas, verdes ou de ervas intensas. Lançados de acordo com a estação, os attars podem ser quentes (cravo, cardamomo, açafrão, oud) e refrescantes (jasmim, pândano, vetiver, calêndula).

    Kannauj os produz, bem como o emocionante attar mitti, que recorda o cheiro da terra após uma chuva e é feito com porções de argila crua do rio Ganges. Shamama, outra invenção própria de Kannauj, é uma mistura destilada de 40 ou mais flores, ervas e resinas amadeiradas, cuja fabricação leva dias e o envelhecimento meses. A fragrância consegue harmonizar o aroma doce, de especiarias, defumado e a umidade, capaz de conduzir quem o utiliza para um reino de outro mundo. Casas de perfumes renomadas na Europa usam o attar de Kannauj – seja rosa, vetiver ou jasmim – como um acorde, uma nota atraente na composição da perfumaria moderna.

    A arte de fabricar perfumes

    Kannauj produz attar (também conhecido como ittar) há mais de 400 anos – mais de dois séculos antes de Grasse, na região de Provença, na França emergir como uma potência no setor de perfumaria. Conhecido localmente em idioma hindi como degh-bhapka, o método artesanal utiliza alambiques de cobre aquecidos com lenha e esterco de vaca.

    Kannauj fica a quatro horas de carro de Agra e a apenas duas horas da histórica Lucknow, antigo estado principesco governado pelos nababos de Oude. Como muitas cidades indianas menores, Kannauj permanece entre o passado e o presente. É um local onde o tempo não passa, simplesmente se acumula.

    Muralhas de arenito em ruínas e minaretes com cúpulas e arcos arredondadas lembram a grandiosidade antiga da cidade como sede do Império Harshavardhana no século 6. Na avenida principal, motocicletas e algumas Mercedes reluzentes passam por vendedores de frutas empurrando carrinhos de madeira cheios de goiabas e bananas que já passaram do ponto.

    Entre as ruas estreitas de Bara Bazaar, o mercado principal, Kannauj remete totalmente à época medieval. Nesse labirinto, lojas antigas estão repletas de garrafas de vidro delicadamente lapidadas contendo attar e ruh, ou óleo essencial, cada um com uma fragrância melhor que a outra. Pessoas sentam-se de pernas cruzadas em tapetes acolchoados, cheirando frascos e passando as essências atrás das orelhas com longos cotonetes perfumados. O responsável por esse antigo comércio é o attar sazh, ou perfumista, que encanta e seduz com a aura de um alquimista imperial.

    “Os melhores perfumistas do mundo passaram por essas ruas estreitas, abrindo caminho através da lama e esterco de vaca para colocar as mãos no attar de Kannauj. Realmente não há nada igual”, comenta Pranjal Kapoor, sócio da quinta geração da M.L. Ramnarain Perfumers, um dos mais antigos dos cerca de 350 destiladores que ainda operam na cidade.

    Tegh Singh chega e descarrega seus sacos de flores no armazém de Kapoor, um pátio de pedra ao ar livre que serve como destilaria. Ram Singh, mestre artesão de attar da destilaria de Kapoor, coloca as pétalas em um alambique de cobre bulboso e o enche com água doce. Antes de fechar a tampa, Ram Singh espalha uma pasta de argila e algodão nas bordas, que endurece e cria uma vedação resistente.

    Quando o líquido das flores começa a ferver, o vapor flui do alambique, por meio de uma vara de bambu, para um recipiente de cobre contendo óleo de sândalo, que absorve prontamente o vapor repleto do aroma de rosas.

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      Rodeadas por alambiques e vasos de cobre, rosas recém colhidas são preparadas para virar óleo essencial na fábrica da M.L. Ramnarain Perfumers, uma das destilarias mais antigas de Kannauj.

      Foto de Tuul and Bruno Morandi

      Depois de colhidas por Tegh Singh, as rosas levam seis horas se tornarem um attar. Durante todo esse processo, Ram Singh fica na ponta dos pés, vagando entre o alambique e o reservatório, verificando a temperatura da água com as mãos e ouvindo o chiado do vapor para intuir se deve colocar mais lenha no fogo. “Faço isso desde menino”, diz Ram Singh, de 50 anos de idade, que foi aprendiz de um guru de attar por uma década.

      O processo é repetido no dia seguinte, com um novo lote de pétalas de rosa para alcançar a potência desejada. Depois de concluído, o attar de rosas é envelhecido por diversos meses em uma garrafa de pele de camelo que absorve a umidade. Apesar da produção antiquada, o valor do attar de rosas é semelhante ao de ouro líquido. Um quilo pode chegar a R$ 16 mil.

      “Não há manômetros, medidores, nem eletricidade”, indica Kapoor, acrescentando orgulhoso que seus produtos humildes competem com os produzidos pelas casas de perfume modernas de Grasse. “A diferença é entre cozinhar daal [lentilhas] em uma cozinha rústica de vilarejo ao ar livre em comparação com cozinhá-las em um fogão a gás ou um micro-ondas. O sabor nunca mais será o mesmo.”

      História destilada

      Os primeiros perfumes botânicos conhecidos datam do antigo Egito, quando plantas eram maceradas e infundidas diretamente em um óleo base. Embora a primeira hidrodestilação de plantas seja atribuída ao médico persa Ibn Sina, também conhecido como Avicena, no século 10, escavações arqueológicas no Vale do Indo revelaram alambiques rudimentares, sugerindo que a fabricação de perfumes básicos se desenvolveu antes.

      No século 15, Gyatri Shahi, governante islâmico do sultanato de Malwa, na Índia central, escreveu o Ni’matnamaLivro dos Prazeres, em tradução livre –, sobre o mundo dos prazeres sibaritas. Inúmeras passagens transmitem as virtudes de estar cheiroso.

      Os mogóis marcharam para a Índia no século 16, levando consigo um apetite olfativo intenso. O primeiro governante mogol, Barbur, celebrou a relação complexa entre fragrância e contentamento espiritual e sensual, e esse etos se difundiu nos corredores das cortes do Império Mogol pelos dois séculos seguintes.

      Perfumeiros jogam pétalas em um alambique de cobre. Antes de apertar a tampa, o aro é coberto com uma mistura de barro e algodão para lacrar.

      Foto de Tuul E Bruno Morandi

      Depois de selados os alambiques, as flores são fervidas em água. O vapor é direcionado a um vaso de cobre contendo óleo de sândalo, que acaba embebido pelo vapor saturado de rosas.

      Foto de Tuul and Bruno Morandi

      O filho de Barbur, Akbar, tinha um departamento dedicado exclusivamente ao desenvolvimento de fragrâncias para usos corporais e culinários. A Ain-e-Akbar, ou Constituição de Akbar, detalha as preferências do imperador em utilizar attars perfumados ao enxugar seu corpo, queimar incensos e passar grandes quantidades de perfume em portas e móveis. Acredita-se que rainhas e cortesãs utilizavam um estoque pessoal de attar em frascos de vidro em miniatura pendurados ao redor do pescoço.

      O imperador mogol Jahanghir e sua rainha Noor Jahan – pais de Shah Jahan, que construiu o Taj Mahal – são considerados os primeiros patronos reais de Kannauj. De acordo com o folclore local, Noor Jahan despertou o interesse pelo attar de rosas depois de se deixar seduzir pela fragrância das rosas de Kannauj durante um banho.

      Ressurgimento de fragrâncias

      Mas por que Kannauj? Se triangularmos Agra, Lucknow e Kanpur – três fortalezas do Império Mogol com um apreço por fragrâncias – Kannauj está no centro. Construída sobre o rico solo aluvial do Ganges, a cidade é particularmente adequada para o cultivo de jasmim, vetiver e rosa damascena, que herdou seu nome da cidade de Damasco mas é nativa da Ásia central. Já existiam mestres perfumistas em Kannauj, explica Kapoor. Os mogóis simplesmente aumentaram a demanda e Kannauj seguiu o fluxo.

      Atualmente, Kannauj está retomando o posto. Quando o poder foi transferido para a Índia britânica, a demanda por attar diminuiu. O preço do sândalo puro de Mysore sempre foi alto, mas quando o governo indiano restringiu a venda de sândalo no fim da década de 1990, o preço do attar disparou. Ao mesmo tempo, indianos preocupados com status e ávidos por se mostrarem modernos e em ascensão, fidelizaram-se aos perfumes e desodorantes importados do Ocidente. Substitutos naturais, como a parafina líquida, são utilizados no lugar do sândalo e, embora essa iteração de attar seja uma boa aproximação, não se compara ao original.

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        Quando o produto final fica pronto, o attar de rosas é envelhecido por vários meses em garrafas de pele de camelo, 

        Once the final product is produced, the rose attar is aged for several months in a camel-skin bottle.

        Foto de Tuul E Bruno Morandi

        Hoje em dia, a maior parte do attar de Kannauj é comercializada no Oriente Médio e entre as comunidades muçulmanas locais. Em Chandni Chowk, na Velha Delhi, o mercado Gulab Singh Johri Mahal, construído no século 17 pelo imperador mogol Shah Jahan, agora comercializa o attar de Kannauj e fragrâncias modernas. Gulab Singh está quase sempre repleto de muçulmanos em busca de attar para passar atrás das orelhas antes das orações de sexta-feira e para celebrar festivais como o Eid.

        Kannauj também produz uma quantidade extraordinária de água de rosas para o paan – um aperitivo popular nacional de tabaco e especiarias envolto em folha de bétele. Mas esses mercados não são suficientes para sustentar as destilarias da cidade, e muitos tiveram que fechar ou mudar sua produção para criar cópias de perfumes ocidentais.

        Apesar desses desafios, Kapoor está otimista. Ele passa a maior parte do tempo em contato com as principais casas de perfume internacionais, familiarizando-as com o attar e o terroir das plantas de Kannauj. “Os gostos ocidentais estão sendo influenciados pelo Oriente”, diz Kapoor. “Normalmente, [o Ocidente] prefere notas cítricas suaves, mas hoje em dia grandes empresas como Dior, Hermès e, é claro, as casas de perfume do Oriente Médio estão buscando fragrâncias douradas como rosas, oud e shamama.”

        Um nicho de mercado para attar de alta qualidade também está latente no mercado interno. Anita Lal, fundadora da Good Earth e Paro, duas marcas de estilo de vida contemporâneo enraizadas no design e sensibilidade tradicionais indianos, mantém seu negócio com óleos essenciais de rosa e vetiver clássicos, embora esteja ansiosa para reintroduzir o attar para gerações mais jovens.

        “A adversidade do attar tem dois lados”, diz Lal. “Primeiro, o sândalo é raro e, sem ele, é quase impossível capturar o encanto do attar. Segundo, o attar é considerado absurdamente antiquado. Compare-o com as estratégias de marketing ocidentais e a atração do perfume francês – bem, essa é a nossa concorrência.”

        Talvez a embaixadora global mais proeminente do attar seja Jahnvi Lâkhòta Nandan, nativa de Lucknow, que estudou para ser mestre perfumista em Genebra e Paris por sete anos antes de abrir a The Perfume Library, em Goa e Paris. Ela diz que, para as famílias governantes da velha Lucknow, “falar sobre perfume era um passatempo. Tudo ficava perfumado: roupas, maçanetas, o ar. E sempre foi entendido que esse attar deve ser proveniente de Kannauj.”

        A alquimia olfativa de Nandan contempla poesia, excentricidade e ciência em intensidades iguais. A cada ano, ela une mitologia e modernidade com um, às vezes, dois novos aromas, e o attar é uma parte importante de seu trabalho. Em 2020, a The Perfume Library lançou o Earthshine, uma mistura de junça, mimosa e o andrógino abricó-do-mato. “O abricó-do-mato está profundamente interligado com Kannauj”, diz Nandan, acrescentando que, como um elemento ornamental favorecido nos jardins da era mogol, o abricó-do-mato é uma ode perfeita a Kannauj e seus fabricantes de attar.

        “O attar fala com a alma. Todo esse fogo e fumaça em um pequeno espaço podem parecer apocalípticos, mas também são autênticos e belos”, conclui ela. “Não é possível recriar isso em um laboratório na Europa.”

        Rachna Sachasinh é jornalista independente e trabalha com tecelãs artesanais em Laos. Ela vive entre Chiang Mai, na Tailândia, e Luang Prabang, no Laos. Siga-a no Instagram.

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