Seguindo o rastro da lendária rainha pirata da Irlanda
Quase cinco séculos atrás, uma menina irlandesa de 11 anos fez um pedido a seu pai: ansiosa para seguir os passos do intrépido navegante, ela implorou para embarcar com ele em seu navio e se juntar à sua próxima expedição. Seu pedido foi negado, o motivo que seu pai deu fora que seus longos cabelos ruivos ficariam presos nas cordas do navio.
Na próxima vez que o capitão viu sua filha, ela estava quase careca. A garota atrevida havia cortado os próprios cabelos e estava prestes a abrir um novo caminho para as mulheres irlandesas. Esses foram os primeiros passos de uma futura rainha pirata.
Seu nome era Grace O’Malley. No entanto, o apelido gaélico que por muito tempo ecoou nos mares agitados da Irlanda foi Granuaile (Gron-ya-wail), ou “Grace Calva”. A mulher mais feroz da história irlandesa, ela negociou com a Rainha Elizabeth I, rebelou-se contra o exército inglês e durante décadas comandou navios que saquearam nos oceanos que circundam a Irlanda, mesmo quando estava grávida.
Agora, a história dessa extraordinária pirata está pronta para atingir um público mais amplo. Uma rota turística sobre Granuaile está sendo desenvolvida pelo Conselho do Condado de Mayo e pelo Failte Ireland, o órgão nacional de turismo do país. Anna Connor, oficial de desenvolvimento de turismo do Conselho, afirma que placas de sinalização guiarão os visitantes pela majestosa zona rural de Mayo até os locais que Granuaile tomou para si.
Com cerca de 5,5 mil quilômetros quadrados de extensão, Mayo é o terceiro maior dos 26 condados da República da Irlanda, semelhante em tamanho ao estado norte-americano de Delaware, mas com apenas um sétimo de sua população. Localizado na costa oeste da Irlanda, Mayo é conhecido por suas montanhas sagradas, praias serenas, rios ricos em salmão, pastos repletos de gado e pitorescas vilas de pescadores. A língua gaélica nativa ainda é comumente falada nas comunidades tradicionais.
Granuaile é uma das heroínas de Mayo e sua história é particularmente relevante agora que a Irlanda completa 100 anos de independência da Grã-Bretanha, com eventos comemorativos sendo realizados ao longo de 2021. Connor afirma que a rota de Granuaile vai homenagear uma mulher que foi “uma das últimas líderes irlandesas a se defender do domínio inglês na Irlanda”.
A rota incluirá a pitoresca cidade de Westport, onde Granuaile nasceu em 1530; as praias de Clew Bay, onde seus navios atracavam; seus castelos nas ilhas montanhosas de Clare e Achill; e a abadia da ilha de Clare, onde ela foi enterrada aos 73 anos.
A baía de Clew Bay, representada em um desenho de 1841, leva à cidade costeira de Westport, no condado de Mayo.
Uma ponte decorada com flores atravessa o rio Carrowbeg, em Westport.
A rota planejada foi apreciada por Joe McDermott, historiador de Mayo e guia de turismo que sugeriu que a rota também incluísse a abadia de Murrisk. Esse convento do século 15 foi construído pelos O’Malleys na base de Croagh Patrick, uma montanha de 760 metros de altura com vista para Clew Bay e que há muito é um local de peregrinação católica.
A maioria dos locais propostos para a rota estão fechados desde o fim de dezembro devido a um estrito isolamento causado pela pandemia do novo coronavírus, mas serão reabertos neste mês. Quando estiver concluída, o que, segundo Connor, pode demorar mais de dois anos, os turistas precisarão de pelo menos dois dias para explorar adequadamente cada local da rota.
Governante das ondas
Na rota, os visitantes aprenderão não apenas sobre Granuaile, mas também sobre seu pai, Owen O’Malley. Ele foi o líder do clã O’Malley, uma poderosa dinastia que governou os mares de Mayo por vários séculos, de acordo com a autora irlandesa Anne Chambers, a maior especialista em Granuaile.
No início do século 16, a Irlanda estava dividida em cerca de 40 clãs gaélicos, dinastias que reivindicavam a propriedade de regiões da nação e muitas vezes lutavam por território e riqueza, explica Chambers. Alguns desses grupos aceitaram a autoridade dos ingleses, que haviam assumido o controle total da Irlanda em 1541. Outros clãs, como os O’Malleys, se rebelaram contra a ocupação estrangeira. Na época, governar um clã não era apenas perigoso, mas também complexo no aspecto político.
Grace O’Malley garantiu a libertação de parentes capturados em sua audiência com a Rainha Elizabeth em 1593.
No entanto, quando Owen O’Malley morreu, na década de 1560, quem o sucedeu como líder do clã não foi seu filho mais velho. Em vez disso, Granuaile assumiu o poder. Com o conhecimento marítimo e as táticas militares aprendidas com seu pai, ela controlava duas galés, 20 navios e mais de 200 homens no tempestuoso Oceano Atlântico aos arredores de Mayo.
Granuaile não comandava de longe, não enviava suas ordens do conforto de castelos luxuosos. Pelo contrário, ela comandava do convés inclinado de um navio, gritando para sua voz se sobressair ao barulho das ondas, com os olhos fixos em seus homens. Mesmo grávida, ela permaneceu ao lado deles. A história conta que, em 1567, Granuaile tinha acabado de dar à luz no mar quando o seu navio foi atacado por piratas argelinos. Ela reuniu seus homens e repeliu os inimigos.
Gradualmente, sob a orientação de Granuaile, o clã O’Malley acumulou grandes riquezas por meio do comércio, pesca e pirataria, afirma Chambers. De acordo com ela, “a forma como ela liderava no mar diferencia Grace O’Malley de todas as outras líderes femininas da história. A navegação marítima era considerada um privilégio masculino e, até certo ponto, ainda é. Era preciso muita habilidade e coragem para ganhar a vida nos mares ao longo da perigosa costa irlandesa”.
Os O’Malleys saqueavam navios ingleses que ousavam se aproximar de Mayo, e essas ações logo colocaram Granuaile na mira inglesa. Em 1577, ela foi condenada a dois anos de prisão. Esse período atrás das grades não apaziguou a ira de Granuaile. Chambers conta que, depois de ser libertada, Granuaile liderou seu exército em repetidas rebeliões sangrentas contra generais ingleses que tentaram roubar o território de sua família.
As diversas ilhas de Clew Bay oferecem inúmeros esconderijos, fazendo da baía um local ideal para piratas.
Quando um desses rivais matou um de seus filhos, sequestrou outro e destruiu sua frota, Granuaile empregou tanto agressão quanto diplomacia. Primeiro, ela apoderou-se de um navio inglês. Em seguida, fez o mais improvável dos pedidos: em 1593, Granuaile requisitou uma audiência com a rainha da Inglaterra, Elizabeth I.
Muitos piratas haviam visitado Londres antes dela. A maioria teve estadias breves e brutais, sendo enforcados em Wapping Dock e tendo seus corpos pendurados por dias sobre o rio Tâmisa. Mas a rainha Elizabeth estava intrigada com Granuaile, então ela lhe concedeu a mais rara das audiências no Palácio de Greenwich, em Londres.
Granuaile não se sentiu intimidada quando confrontou a rainha, escreveu Chambers em seu livro. Em vez disso, ela chegou com um assunto para tratar, um argumento para provar e uma faca em seu vestido. Ela não via a si mesma como inferior à realeza da Inglaterra. Eles eram imperadores limitados por fronteiras, enquanto ela era uma governante dos mares abertos, cuja riqueza e poder tinham sido conquistados por ousadia e ação, não recebidos por herança. Era a realeza que deveria ficar impressionada com ela.
Granuaile deixou esse encontro real não com uma reverência, mas com uma recompensa. Ela havia garantido a libertação de parentes capturados e recebido permissão para continuar sua audaciosa navegação marítima.
Em troca, Granuaile concordou em encerrar sua rebelião contra os ingleses. Os últimos dez anos de sua vida, depois disso, foram menos agitados, e ela morreu de causas naturais no Castelo Rockfleet, em Mayo. Situado na costa de Clew Bay, próximo à bela cidade de Newport, esse castelo de quatro andares do século 16 permanece em ótimas condições e será incluído na rota turística de Granuaile.
Os oponentes ingleses de Granuaile a rotularam de “traidora notável” e “mãe dos rebeldes”. Mas para muitos irlandeses, ela já era uma lenda antes mesmo de morrer. Agora, mais de 400 anos após sua morte, garotas irlandesas ainda se sentem entusiasmadas e encorajadas por sua história.
Ovelhas se espalham pelo interior do condado de Mayo, onde uma rota turística sobre Grace O’Malley está sendo desenvolvida.
Revivendo o legado
Em um país há muito tempo dominado pelo patriarcado, Granuaile foi um exemplo significativo de autonomia feminina, afirma Chambers. Segundo ela, “rompendo os limites do preconceito e da desigualdade entre os gêneros em um período de imensa agitação e mudança social e política, Grace O’Malley mudou as regras para se tornar uma das primeiras feministas de que se tem conhecimento no mundo”.
Só depois de sua morte é que o sexismo masculino finalmente venceu Granuaile. Chambers afirma que, até 40 anos atrás, a pirata era amplamente omitida da história irlandesa convencional. Isso se deveu em parte à ênfase exagerada nos protagonistas masculinos da Irlanda. Outro fator importante era que Granuaile não se encaixava no molde da “imagem patriótica, imaculada e zelosa da feminilidade gaélica promovida por gerações posteriores de historiadores irlandeses”.
Na verdade, Granuaile ainda poderia ser pouco conhecida, se não fosse por Chambers. Publicada em 1979, sua biografia de O’Malley, Granuaile: Ireland's Pirate Queen (Granuaile: a Rainha Pirata da Irlanda, em tradução livre), é considerada a maior responsável por ter revivido essa história. A vida de Granuaile agora é contada nas aulas de história das escolas públicas da Irlanda e tem sido tema de livros, artigos, documentários e peças teatrais.
E nos próximos anos, turistas de todo o mundo poderão seguir a rota de Granuaile por Mayo. Enquanto admiram as lindas paisagens desse condado, eles aprenderão uma história impressionante: a história de uma garota audaciosa que desafiou papéis de gênero, inimigos assassinos e a invasão de um poder colonial a fim de proteger o legado de sua família e abrir caminho para as mulheres irlandesas.