Para construir as cidades do futuro, temos que sair dos nossos carros

Reestruturar áreas urbanas saudáveis significa reparar os danos deixados em comunidades destruídas para servir o automóvel.

Por Robert Kunzig
fotos de Andrew Moore
Publicado 25 de mar. de 2019, 17:58 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
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XANGAI, CHINA – Duas vias expressas se cruzam na metrópole de 24 milhões de habitantes. O país ganhou meio bilhão de moradores urbanos desde 1990 – e quase 190 milhões de automóveis. O plano agora é privilegiar as vias de pedestres e o transporte coletivo.
Foto de Andrew Moore

Confira a reportagem completa na edição de abril da revista National Geographic Brasil.

A FINALIDADE DAS CIDADES é congregar as pessoas. Mas, no século 20, fizemos o contrário: nós as dispersamos. No ano passado, Peter Calthorpe me levou a um passeio de carro para realçar alguns aspectos dessa dispersão. O intuito era mostrar as suas propostas para restaurar o propósito original das cidades. Calthorpe é um arquiteto que, no final da década de 1970, participou do projeto de um dos primeiros edifícios públicos de alta eficiência energética – um prédio que até hoje continua em uso em Sacramento, na Califórnia. Mas ele logo ampliou o seu foco. “Para quem se interessa em alcançar resultados ambientais e sociais, não basta projetar apenas um edifício”, diz ele. “É preciso levar em conta a comunidade como um todo.” Atualmente, ele dirige a empresa Calthorpe Associates, um escritório de urbanismo pequeno, porém muito influente. Em sua espaçosa e minimalista sala em Berkeley, tem lugar de destaque numa das paredes o manifesto do Congresso para o Novo Urbanismo, que denuncia “a proliferação de vastas manchas urbanas indiferenciadas”. Calthorpe contribuiu para a criação do grupo em 1993.

Esperamos até o fim da manhã para o tráfego melhorar um pouco e aí saímos no Tesla azul de Calthorpe rumo ao Vale do Silício, no sul de San Francisco. “O problema dos ambientes urbanos voltados para os carros”, diz ele, “é que, se não existe outra opção, as pessoas vão recorrer ao automóvel. E isso é ruim para o clima, para o bolso, para a saúde. O tempo é perdido no trânsito. Sob todos os aspectos, é algo prejudicial.”

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WELWYN GARDEN CITY, INGLATERRA Um século atrás, o britânico Ebenezer Howard concebeu duas “cidades-jardim” ao norte de Londres. As pessoas já começavam a abandonar as cidades lotadas da Europa e dos Estados Unidos.
Foto de Andrew Moore

Na década de 1990, Calthorpe ajudou a convencer as autoridades de Portland, no Oregon, a construírem uma linha de VLT (veículos leves sobre trilhos), em vez de mais uma via expressa – e também a adotarem um zoneamento que concentrasse residências, escritórios e estabelecimentos comerciais ao longo do percurso. O “desenvolvimento urbano com base no transporte coletivo” firmou a sua reputação como um urbanista visionário. O conceito não é uma ideia nova, conta Calthorpe, e sim um chamado para “a gente reinventar os antigos subúrbios servidos por linhas de bonde, em que havia núcleos comerciais fabulosos e áreas para caminhadas, tudo interligado pelo transporte público”. No caminho, apesar de termos saído mais tarde, não escapamos de um congestionamento.

SEGUNDO A UTOPIA DE CALTHORPE, as cidades deixariam de se expandir com tanta voracidade e de pavimentar a natureza circundante. Em vez disso, encontrariam maneiras eficazes de incorporar a natureza em seu interior, ali onde as pessoas seriam mais beneficiadas. Elas cresceriam em núcleos pequenos e compactos, quadras que podem ser percorridas a pé e próximas da rede de transporte público. Essas cidades do futuro voltariam a mesclar todas as atividades: o trabalho não mais seria separado da moradia ou do comércio, como ocorre hoje, evitando assim que os motoristas circulem entre áreas do uso distinto. E deixariam de separar os ricos e os pobres, os idosos e os jovens, os brancos e os negros – como se dá atualmente em países como os Estados Unidos e o Brasil.

Para se alcançar tudo isso, não é preciso nenhuma arquitetura espetacular ou tecnologia futurista – ainda que um pouco disso venha a calhar. O crucial, na realidade, é corrigir os erros e as concepções equivocadas do passado recente. Ao sul do aeroporto de San Francisco, Calthorpe deixa para trás a via expressa Bayshore e tomamos a direção da cidade de Palo Alto, onde ele cresceu na década de 1960. Na verdade, porém, estamos percorrendo o antigo El Camino Real – antes trilhado pelos colonizadores e missionários espanhóis. “Agora, a antiga trilha passa pelo centro do Vale do Silício, e tudo o que se vê nela é só essa porcaria pouco adensada”, diz Calthorpe.

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    Foto de Andrew Moore

    Cidadezinhas atrás de cidadezinhas passam pela janela do carro, entre a sequência monótona de borracharias, locadoras de carros e motéis baratos. Para Calthorpe, porém, o mais interessante não é a feiúra, mas a potencialidade urbanística local. Não há muita gente morando à beira da estrada, de uso comercial. Por outro lado, há um dramático déficit de moradias no Vale do Silício. Dezenas de milhares de pessoas são obrigadas a fazer longos deslocamentos de carro para chegar ao trabalho. Em Mountain View, onde fica a sede da Google, a situação chegou a tal ponto que centenas de pessoas dormem em carros parados em estacionamentos.

    Ao longo dos 70 quilômetros do El Camino entre San Francisco e San Jose, numa faixa de 800 metros de cada lado da estrada, existem 3.750 lotes de uso comercial, com edifícios de, no máximo, dois andares. Tal informação foi obtida por Calthorpe graças a um programa de computador que ele e seus colegas criaram, o UrbanFootprint. Segundo Calthorpe, se a estrada fosse ladeada por prédios residenciais com três a cinco andares, e com escritórios e lojas nos térreos, a região poderia contar com mais 250 mil unidades residenciais. Com isso, seria possível sanar o déficit habitacional no Vale do Silício e, ao mesmo tempo, tornar a estrada mais bela em termos arquitetônicos – além de reduzir as emissões de gases do efeito estufa, o consumo de água e o desperdício de tempo pelas pessoas.

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    ROTERDÃ, HOLANDA – No bairro histórico da cidade, o novo Mercado Central pretende servir de inspiração por sua originalidade – mas também criar “um espaço de celebração e encontro”, diz o arquiteto Winy Maas. Debaixo dos apartamentos do prédio com arcos, há o mercado, bares e restaurantes.
    Foto de Andrew Moore

    O transporte público é a chave: ele teria de ser rápido e muito acessível. Dessa vez, porém, Calthorpe não está propondo nenhum sistema de VLT. Ficaria caro demais, diz ele, e outras tecnologias, mais eficientes, estão prestes a chegar.

    Uma delas é o terror de muitos planejadores urbanos: os veículos autônomos (VA), que dispensam os condutores humanos. Se ficarem nas mãos dos indivíduos ou de empresas como a Uber, avalia Calthorpe, os veículos autônomos só vão contribuir para o aumento da dispersão urbana. Em vez disso, ele vislumbra o aproveitamento dessa tecnologia em prol das comunidades. No centro do El Camino, em pistas separadas e arborizadas, ele sugere a adoção de micro-ônibus que circulariam sem condutores. Eles chegariam aos pontos de parada com intervalos de poucos minutos, ultrapassariam uns aos outros quando necessário e fariam poucas paradas, pois um aplicativo reuniria os passageiros com os mesmos destinos. Em suas faixas exclusivas, esses veículos robotizados não correriam o risco de atropelar ninguém.

    Calthorpe foi hippie, mas da estirpe favorável à tecnologia. No fim dos anos 1960, deu aulas numa escola alternativa na Serra de Santa Cruz, ensinando os adolescentes a construir domos geodésicos. Nos contrafortes, uma autoestrada estava sendo construída. “Naquela época, nem dava para avistar o vale”, lembra. “De tanta poluição no ar. Era óbvio que havia algo muito errado.” Hoje, a poluição atmosférica é menor, mas os aglomerados urbanos continuam disfuncionais – porém, esse é um problema que ainda parece solucionável para o inquieto arquiteto.

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    CINGAPURA – Um arranha-céu pode ser uma cidade-jardim? Cingapura subsidia jardins verticais como este no Hotel Oasia, que tem 191 metros de altura. Projetado por um escritório local, o edifício é resfriado por 54 espécies de árvores e vinhas, que atraem insetos e aves – e alcamam os nervos.
    Foto de Andrew Moore

    NO ANO PASSADO, quando o Congresso para o Novo Urbanismo realizou o seu encontro anual em Savannah, no estado da Geórgia, o principal conferencista foi o dinamarquês Jan Gehl, de Copenhague. Um octogenário clarividente, Gehl é reverenciado por suas constatações sensatas: os arquitetos e os urbanistas devem construir “cidades para as pessoas”, e não para os carros. Gehl passou décadas a observar como as pessoas se comportam nos espaços públicos, compilando dados sobre os tipos de comportamento que estimulam a convivência cívica e aqueles que mais contribuem para torná-la deprimente e vazia.

    “Há muita confusão quando se trata de imaginar a cidade do futuro”, comenta ele quando nos sentamos num café de uma praça. “Toda vez que arquitetos e visionários tentam delinear um quadro do futuro, eles sugerem ambientes nos quais ninguém gostaria de viver.” Abrindo o notebook, ele me mostra uma paisagem com torres e bulevares arborizados, e poucas pessoas aqui e ali, sem qualquer sinal de interação entre elas. “Veja quão pouco divertido é andar por lá”, comenta Gehl. “Há só esses poucos reféns, perdidos no meio dos carros autônomos.”

    “Torres em áreas verdes”, como chamam os novos urbanistas esse tipo de projeto, é um legado da arquitetura modernista, cujo padrinho foi o franco-suíço Le Corbusier. Em 1925, ele propôs que uma imensa área no centro de Paris, ao norte do Rio Sena, fosse demolida para que ali se construísse um conjunto de 18 arranha-céus de vidro, todos idênticos e que seriam ocupados por escritórios, elevando-se a 200 metros de altura e situados a 400 metros uns dos outros. Os pedestres caminhariam por “enormes gramados”, contemplando “esses prismas translúcidos que parecem flutuar no ar”. Os carros circulariam por vias expressas elevadas. Os automóveis, para Le Corbusier, haviam tornado obsoletas as ruas de Paris, “esse oceano de desejos e rostos”.

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    LA PAZ, BOLÍVIA – Em 2014, quando La Paz instalou as primeiras linhas de bondinhos suspensos sobre as congestionadas vias montanhosas, eles conectavam o centro ao bairro pobre de El Alto, 400 metros acima. Em 2018, as nove linhas transportaram 250 mil pessoas por dia.
    Foto de Andrew Moore

    Tal como grande parte das ideias de Le Corbusier, o Plan Voisin não saiu da prancheta. Mas a influência dele se estendeu a todo o planeta. Está presente em conhecidos conjuntos habitacionais nos centros das cidades americanas e nas aglomerações de edifícios corporativos. Também sobrevive nas dezenas de cidades novas que estão sendo planejadas e construídas ao redor do mundo, sobretudo na Ásia. Embora muitas dessas cidades tenham uma preocupação com os pedestres e o transporte coletivo – segundo uma de suas pesquisadoras, a geógrafa Sarah Moser, da Universidade McGill –, a realidade é bem outra. Um exemplo é Putrajaya, a nova capital administrativa da Malásia: metade dela é feita de áreas verdes, mas, como diz Moser, “é preciso andar muito para ir de um prédio a outro”.

    A influência de Le Corbusier é perceptível sobretudo nos centros urbanos erguidos pelos chineses nos últimos 40 anos. Calthorpe argumenta que essas fileiras de torres residenciais idênticas, formando “superquadras”, guardam semelhança com os subúrbios americanos, por mais diferentes que pareçam à primeira vista.

    “Há um problema comum em ambos os casos”, explica ele. “É o alastramento da mancha urbana indiferenciada.” O essencial dessa dispersão urbana, diz, é “um ambiente desconectado”. Os moradores dos espigões construídos em espaços verdes podem viver tão isolados – em relação aos vizinhos e às ruas inóspitas para os pedestres – como as pessoas que moram em vias sem saída nos subúrbios americanos. Nas novas cidades chinesas, as ruas estreitas repletas de lojas deram lugar a avenidas arborizadas com dez pistas, ocupadas por carros, e não por ciclistas ou pedestres. “Com isso, vai se esgarçando a estrutura social e econômica”, conclui.

    Confira a reportagem completa na edição de abril da revista National Geographic Brasil.

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