Leões-marinhos continuam sendo alvejados por pescadores nos EUA
Apesar da proteção legal aos leões-marinhos, os pescadores recorrem à força letal para evitar que eles atrapalhem sua pesca.
Todas as manhãs, os cuidadores do Aquário de Shedd, em Chicago, nos EUA, agitam chocalhos e utilizam seus apitos para que Cruz, um leão-marinho de cerca de 102 kg, saiba que é hora do café da manhã. Ele é cego, então, seus cuidadores utilizam sons, toques e cheiros para orientá-lo em seu recinto.
A história de Cruz teve início em 2013, quando socorristas o encontraram encalhado em uma praia movimentada em Santa Cruz, Califórnia. A equipe de resgate informou que ele parecia exausto, abaixo do peso, e completamente indefeso. Mas foram seus olhos que os preocuparam – o esquerdo estava embaçado, e ele não tinha o direito.
O leão-marinho ferido foi levado às pressas para o Centro de Mamíferos Marinhos, em Sausalito, onde raios-X revelaram vários fragmentos de metal alojados em seu crânio. Ele havia levado pelo menos um tiro de espingarda na cabeça. Ele foi tratado até que recuperasse a saúde, mas como não podia mais se defender na natureza selvagem, o Aquário de Shedd o acolheu. Atualmente, de acordo com seus cuidadores, Cruz está se desenvolvendo.
“Ele foi um dos que tiveram sorte”, conta Madelynn Hettiger, gerente do aquário de mamíferos marinhos. “Se ele não tivesse conseguido chegar até a orla, é possível que nós nunca tivéssemos tido conhecimento desse animal”.
Este ano, mais de uma dezena de mamíferos marinhos atingidos por balas, incluindo um golfinho-roaz fêmea prenha, morreu nas praias dos EUA. De acordo com a NOAA Fisheries, a agência encarregada de fazer cumprir as medidas de proteção para mamíferos marinhos, aproximadamente 700 leões-marinhos da Califórnia foram encontrados feridos à bala ou apunhalados entre 1998 e 2017. Apenas alguns infratores foram acusados, sendo que todos eram pescadores.
Os leões-marinhos, que o pescador Brand Little conhece por experiência, são animais muito inteligentes, peritos em furtar salmões, sardinhas e lulas de anzóis ou capturados em uma rede. A reportagem conversou com Little em maio, durante a temporada comercial do salmão, depois que ele havia conduzido seu barco para o porto de Santa Cruz para descarregar sua pesca – 37 salmões-reis, valendo aproximadamente 4,5 mil dólares. Foi uma pescaria bem-sucedida, de acordo com Little. “Eu só perdi um peixe”.
Aquele peixe não havia quebrado sua linha ou escapado do anzol – ele havia sido roubado por um leão-marinho da Califórnia. Onde quer que os pescadores vão, diz Little, os leões-marinhos os acompanham. “Você não consegue fugir deles. Nós saímos e viajamos por seis horas e eles acompanham. Seis horas! Três deles em cada lado”.
Quando perguntamos para outro pescador de Santa Cruz como ele faz para manter os leões-marinhos longe de sua pesca, ele disse sem rodeios: “Espingarda”. O pescador, que concordou em falar sob a condição de anonimato porque tem receio das repercussões legais, diz que perder um peixe para os leões-marinhos ameaça seu meio de subsistência.
“Eu fico no mar até que meu ombro fique machucado”, disse, fazendo alusão à contusão causada pelo coice de sua espingarda. “É a minha pesca. Eu tenho o direito de ir atrás da minha pesca”.
Por vários motivos, incluindo as mudanças climáticas e a perda do habitat, os estoques de salmão ao longo da Costa Oeste estão diminuindo há décadas. Como resultado, os pescadores dizem que não podem mais perder peixe para o que eles chamam de “imposto do leão-marinho”.
“É frustrante”, continuou o pescador. “Às vezes você fica no mar o dia inteiro, circulando por oito horas. E você gastou $150 de combustível para o dia e, finalmente, você sente uma fisgada na linha. Você está trazendo para cima e, então, você vê um leão-marinho roubá-lo”.
Os pescadores esportivos também reclamam dos leões-marinhos. “Eles roubam nossa isca com frequência”, disse Evan Wagley, dono da Guardian Charters, uma empresa de fretamento para pesca esportiva localizada em San Diego. As sardinhas e lulas que ele utiliza como isca atraem os leões-marinhos, que descobriram a melhor maneira de roubá-las. “Eles sabem que se engolirem a isca inteira, eles ficarão com o anzol preso em sua boca”, diz Wagley. “Então, eles mordem apenas o corpo”.
Os pescadores têm tentado de tudo para espantar os leões-marinhos: armas de paintball, bombinhas conhecidas como “seal bombs”, que são explosivos fracos, e até mesmo bastões elétricos utilizados no manejo do gado. “Eu tentei um estilingue”, disse resignadamente o pescador de Santa Cruz que pediu para não ser identificado. “Eu tentei algumas coisas, eles não se importam”. Em sua experiência, a única forma de manter os leões-marinhos famintos na baía é uma barreira de balas.
Os cientistas da NOAA têm avaliado a eficácia de inúmeros métodos de dissuasão — variando de balas de borracha e foguetes a gravações de baleias assassinas predadoras para espantar os leões-marinhos — e concluíram que “não existe um único método de dissuasão não letal conhecido como sendo universalmente eficiente para desencorajar as focas e leões-marinhos do porto do Pacífico de se envolverem em comportamentos problemáticos”.
PROTEÇÃO NO PAPEL
Até o fim dos anos 1950, os pescadores ao longo da Costa Oeste da América do Norte não sentiam remorso por atirarem nos leões-marinhos. O estado de Oregon pagava até mesmo uma recompensa de até $10 por leão-marinho morto. Mas, até os anos 1960, o número de leões-marinhos havia sido reduzido à beira do colapso da população, e a União Internacional para Conservação da Natureza, que define o estado de conservação das espécies, classifica os leões-marinhos como muito raros.
Essa diminuição se deve, em parte, ao incentivo em 1972 pela adoção da Lei de Proteção de Mamíferos Marinhos (LPMM), que tornou ilegal caçar, ferir ou importunar mamíferos marinhos. Posteriormente, os leões-marinhos se recuperaram, seu número quase triplicou de menos de 90 mil em 1975 para quase 260 mil em 2014.
“As populações de leões-marinhos são saudáveis – um sinal do sucesso da LPMM e de outros estatutos que auxiliam na recuperação de ecossistemas”, disse Penny Ruvelas, que chefia a filial da Divisão de Recursos Protegidos da NOAA Fisheries de Long Beach.
Os cientistas estimam que o habitat dos leões-marinhos pode suportar até aproximadamente 300 mil indivíduos ao longo da Costa Oeste antes que os processos naturais reduzam a população.
Com o número de leões-marinhos em crescimento, os tiros, previsivelmente, não pararam. Os arquivos do subsolo pouco iluminado do Centro de Mamíferos Marinhos contêm balas e esferas extraídas de leões-marinhos e de outros mamíferos marinhos feridos ao longo dos anos. Entre 2003 e 2015, a equipe de reabilitação do centro acolheu 165 leões-marinhos, duas focas comuns, um lobo-marinho e um leão-marinho de steller. Alguns chegaram mortos, outros vivos, mas todos tinham fragmentos de balas. A maior parte dos animais veio da Baía de Monterey durante o verão, no pico da temporada de salmão.
A maioria dos tiros ocorre no mar, fora da vista de qualquer testemunha. A única evidência são as balas no corpo do leão-marinho, que pode vir à costa dias ou semanas depois – ou podem afundar e nunca mais serem vistos.
As espingardas não são as únicas armas utilizadas. Em 2003, dois homens na Baía de Morro, Califórnia, foram acusados criminalmente pela tentativa de matar um leão-marinho de cinco meses de idade com uma balestra. E, em 2007, um homem em Newport Beach, Califórnia, utilizou uma faca de carnes para apunhalar um leão-marinho fêmea de aproximadamente 183 cm até a morte depois que o animal havia, supostamente, roubado a isca de sua vara de pescar.
“Sabemos que os registros de mortalidade relacionados ao ser humano que coletamos são uma estimativa mínima dos impactos”, disse Lynne Barre, chefe da filial da Divisão de Recursos Protegidos da NOAA Fisheries em Seattle.
Ocasionalmente, leões-marinhos repletos de balas são resgatados, reabilitados e liberados novamente na natureza selvagem. Mas alguns, como Cruz e Silent Knight, um macho de cerca de 317 kg que levou um tiro de espingarda na face que o cegou, não conseguem sobreviver sozinhos. Silent Knight está vivendo o resto de seus anos no Zoológico de São Francisco.
CRIME E PENA
As penas para quem é flagrado matando um leão-marinho podem ser de até um ano de cadeia ou uma multa de até 25 mil dólares. Mas, a menos que os investigadores tenham uma evidência em vídeo, uma testemunha ou uma confissão, é quase impossível localizar os infratores da LPMM, de acordo com Barre. Desde 2003, apenas cinco pessoas na Califórnia foram condenadas pelo crime de ferir ou matar um leão-marinho, e em cada um desses casos havia uma testemunha.
Considere a sentença de março de 2005 de John Gary Woodrum, o proprietário da 22nd Street Sportfishing em San Pedro, como exemplo. Dois agentes trabalhando para o Escritório de Aplicação da Lei da NOAA Fisheries se fizeram passar por pescadores em seu barco em uma operação disfarçada, e atestaram que haviam testemunhado Woodrum disparando sua arma em leões-marinhos fora da Ilha de Santa Catalina.
Woodrum admitiu ter utilizado seu rifle calibre .22 para atirar em diversos leões-marinhos. De acordo com os documentos do tribunal, ele foi multado em 5 mil dólares, sentenciado a dois meses em uma prisão federal, e condenado a 250 horas de serviços comunitários no Centro de Tratamento de Mamíferos Marinhos, em San Pedro. E ele foi colocado em liberdade condicional por um ano.
Como é muito difícil pegar as pessoas que matam leões-marinhos, e principalmente quando os pescadores trabalham à noite, as agências estaduais dependem muito da educação e do apoio da comunidade para diminuir as retaliações violentas contra os animais.
Nos últimos anos, os cientistas da NOAA têm feito um esforço considerável para desenvolver formas não letais para manter os leões-marinhos e outros pinípedes longe das docas, barragens e de outras estruturas construídas pelo homem. Tem-se dado menos atenção à invenção de meios de dissuasão para uso no mar.
A NOAA publica informações sobre métodos não letais em seu site, e especialistas em mamíferos marinhos como Barre falam com grupos de pesca locais sobre como fazer melhor uso dos meios de dissuasão existentes como a pirotecnia, apitos e armas de ar comprimido.
“Estamos tentando divulgar mais informações para as comunidades pesqueiras – principalmente onde observamos uma incidência maior de animais que foram feridos – para que as pessoas saibam que existem opções não letais que elas podem utilizar”, diz Barre.
A campanha de educação e de apoio tem obtido êxito em alguns pequenos casos, como no aumento do número de pescadores que perguntam sobre métodos não letais. Mas, de acordo com Barre, até que os cientistas desenvolvam um meio de dissuasão dos leões-marinhos verdadeiramente eficiente, é provável que os pescadores continuem a recorrer ao uso ilegal de força letal.