Cães farejadores estão sendo treinados para encontrar cinzas de corpos cremados

Restos mortais humanos cremados têm um odor característico que é facilmente detectado pelos cães, mesmo que se encontrem entre os destroços de uma casa destruída por um incêndio florestal.

Por Lori Cuthbert
Publicado 7 de nov. de 2018, 14:00 BRST, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Piper, uma border collie do Instituto de Ciência Forense Canina, avisa o seu treinador que encontrou ...
Piper, uma border collie do Instituto de Ciência Forense Canina, avisa o seu treinador que encontrou os restos mortais cremados em uma casa que ruiu, tomada pelas chamas, durante o incêndio de Carr, na Califórnia.
Foto de Lynne Engelbert

NENHUMA PESSOA deveria ter de passar pela experiência traumática de perder um ente querido duas vezes. Alguns cães estão ajudando a evitar que isso aconteça.

Quando os incêndios florestais, como os que assolaram a Califórnia no último verão , se aproximam de regiões habitadas, não há tempo para proteger bens materiais. Os moradores abandonam suas casas levando apenas o essencial. Dentre os pertences valiosos que têm de ser deixados para trás, estão as cinzas de um ente querido, geralmente guardadas dentro de uma urna, em cima de uma prateleira ou da lareira. Contudo, agora já é possível recuperar essas cinzas, graças à ajuda de cães profissionalmente treinados que as recuperam dentre os destroços das casas que desmoronaram nos incêndios.

“Essas pessoas estão completamente arrasadas”, afirma Lynne Engelbert, do Instituto de Ciência Forense Canina, que utiliza cães especialmente treinados para detectar restos mortais de seres humanos cremados.

Os restos mortais de humanos cremados têm um odor característico que os cães detectam facilmente, mesmo que se encontrem entre os destroços de uma casa que foi totalmente  destruída por um incêndio florestal , que provavelmente tenha chegado a uma temperatura de cerca de 815 graus Celsius.

Esses cães “não tentam sentir o cheiro de uma pessoa, eles tentam farejar cinzas humanas”, esclarece Engelbert.

O incêndio de Carr, que ocorreu na Califórnia e durou 39 dias, entre julho e setembro deste ano, destruiu mais de mil casas e queimou cerca de 93 hectares. Sete pessoas que tiveram suas casas consumidas pelas chamas entraram em contato com o Instituto de Ciência Forense Canina e pediram ajuda para encontrar os restos mortais dos seus entes queridos, esse serviço é prestado gratuitamente. A menos que o local tenha sido comprometido pela presença de humanos, os cães utilizados nessas operações de busca conseguem farejar cinzas em questão de minutos mesmo que estejam soterradas a cerca de 20 centímetros de profundidade.

“Quando vamos a um local, temos que lidar com emoções muito fortes”, explica Engelbert, bombeira experiente que, há trinta anos, realiza operações de busca com cães, incluindo as que ocorreram em Nova York depois da tragédia de 11 de setembro de 2001. “Quando é hora de partirmos, há abraços, lágrimas e sentimentos muito afetuosos.”

“É por isso que faço esse trabalho”, ela confessa.

Piper, Jasper, e Jett—todos eles estiveram presentes nas operações que foram realizadas recentemente no rescaldo do incêndio de Carr, e ajudaram a recuperar cinzas humanas, inclusive as de alguns nativos norte-americanos falecidos havia muito tempo. Em 2017, Piper e Engelbert voaram até à ilha de Nikumaroro, no Kiribati, para ajudar na operação de busca do corpo de Amelia Earhart , uma ação realizada por uma equipe do Instituto de Ciência Forense Canina com o apoio da National Geographic e do Grupo Internacional de Recuperação de Aeronaves Históricas.

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    Piper, a border collie, fareja o chão à procura de ossos humanos escondidos na floresta, durante um exercício de treinamento do Instituto de Ciência Forense Canina, em Saratoga, na Califórnia.
    Foto de Laura Morton, Nat Geo Image Collection

    Os quatro cães envolvidos na operação detectaram vestígios humanos embaixo de uma árvore da ilha, onde alguns objetos tinham sido encontrados, como um canivete, pó compacto, um puxador de zíper e alguns potes de vidro. Contudo não havia nenhum sinal de ossos humanos no local que pudessem ter sido identificados como pertencentes à Earhart ou a seu piloto, Fred Noonan.

    Superfocinhos

    Essa capacidade para sentir cheiros tão sutis só é possível devido aos incríveis focinhos dos cães. Esses animais conseguem cheirar pelo menos uma parte por trilhão, uma sensibilidade pelo menos três vezes superior às dos dispositivos criados por humanos para o mesmo fim. Em comparação ao olfato humano, o dos cães é cerca de 100 mil vezes mais preciso.

    De acordo com um estudo em Ciências Veterinárias publicado em 2016 na plataforma Frontiers, os cães conseguem detectar o equivalente a “uma gota de líquido derramado em um volume correspondente a vinte piscinas olímpicas”.

    Os cães têm centenas de milhões de receptores olfativos—comparativamente, os humanos têm apenas poucos milhões—e as suas narinas são capazes de sentir aromas de forma independente. É como se o focinho dos cães tivesse a capacidade de “cheirar em estéreo”. Esses superpoderes olfativos  permitem que eles encontrem bombas, pessoas desaparecidas e até doenças como o câncer.

    Quando os humanos recompensam os cães por terem conseguido sentir determinados aromas, os animais aprendem a desenvolver sensibilidade própria para esses cheiros—e a ignorar todos os outros. É assim que são treinados os cães utilizados em operações de busca.

    Os arqueólogos Alex DeGeorgy e Michael Newland separam e recuperam cinzas humanas de um trailer completamente destruído pelas chamas. A identificação das cinzas é feita pela cor, textura e por pequenos fragmentos de ossos que restaram do processo de cremação.
    Foto de Lynne Engelbert

    Segundo Sue Stejskal, oficial-adjunta e treinadora de cães de busca forense do Departamento de Polícia do Condado de St. Joseph, em Michigan, qualquer cão pode desenvolver essas capacidades. Contudo há raças que trabalham melhor com seres humanos e têm mais capacidade para se concentrar e alcançar o objetivo com sucesso.

    Quanto ao treinamento desses cães, o processo é semelhante a outros tipos de treinamento, explica Stejskal: “É necessário descobrir o que causa alegria no cão e recompensá-lo com isso sempre que ele conclui uma tarefa com sucesso.”

    Por exemplo, Stejskal treinou uma cocker spaniel canadense, a Maple, para detectar percevejos-da-cama. Ela alinhou diversas latas de tinta com aberturas e colocou diversas coisas no interior delas. Uma das latas continha percevejos. Quando Maple enfiou o focinho na lata que tinha os percevejos e farejou, o cão recebeu uma recompensa. Com o passar do tempo, Stejskal reduzia a quantidade de percevejos que colocava na lata. Depois, começou a colocar algumas distrações: percevejos mortos, brinquedos, comida—continuando a recompensar Maple sempre que esta escolhia a lata correta.

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    Separadamente, Stejskal treinou Maple para que ela se sentasse sempre que se deparasse com o cheiro dos percevejos. O passo seguinte era ligar esses dois comportamentos: identificar o cheiro, sentar e receber a recompensa. Por fim, a parte mais difícil: Stejskal fez algumas alterações na rotina de treino para que Maple aprendesse a sentir o cheiro dos percevejos em qualquer ambiente.

    Saindo para trabalhar

    Quando estava trabalhando nas operações conduzidas após o incêndio de Carr, Engelbert colocou à prova Piper, uma border collie preto e branco, como havia feito durante as buscas pelos restos mortais de Earhart. Piper é um dos oito cães treinados para operações desse tipo que são especializados em detectar restos mortais humanos cremados. Os treinadores do Instituto de Ciência Forense Canina estão preparando neste momento mais três cães para esse trabalho.

    O sinal de aviso que Engelbert usa com Piper para indicar que está na hora de ir trabalhar é bem simples: ela simplesmente diz “vamos trabalhar?” Piper está quase sempre pronta.

    No local onde uma casa foi devastada pelas chamas, os proprietários indicam às equipes de busca o local onde os restos mortais dos seus entes queridos estavam guardados, possivelmente na cozinha ou em cima da lareira. Uma urna pequena contém o equivalente a cerca de três colheres de sopa de cinzas, afirma Engelbert, e essa foi a menor quantidade que um de seus cães conseguiu identificar.

    Quando Piper encontra cinzas humanas, um processo que, às vezes, pode demorar apenas dois minutos, a cadela deita-se ao lado, ou mesmo em cima delas, explica Engelbert.

    Em seguida, arqueólogos voluntários começam a limpar a área, isolando a parte indicada pelos cães e limpando as primeiras camadas de cinza com escovas até chegarem às cinzas dos restos mortais humanos. Essas “são facilmente reconhecíveis—com uma textura mais granular, às vezes até contêm pequenos fragmentos de ossos”, afirma Engelbert.

    Quando encontram aquilo que procuravam, os cães são recompensados. No caso de Engelbert, o prêmio consiste em pegar uma toalha enrolada e brincar de “cabo de guerra” com a sua cadela.

    Os proprietários cujos restos mortais dos seus entes queridos foram recuperados também dão aos cães um apoio positivo.

    Os cães “recebem muito amor e carinho... e isso é terapêutico para as pessoas pelo simples fato de estarem lá”, explica Engelert. “Além de ajudarem a encontrar cinzas humanas, os cães também são terapêuticos aos proprietários fragilizados.”

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