Piratas estão dizimando os tigres-de-bengala de um de seus últimos refúgios

Os mangues de Bangladesh são um ecossistema de importância internacional para a sobrevivência do temido felino, cuja população é de menos de 4 mil atualmente em todo o mundo.

Por Peter Schwartzstein
Publicado 28 de nov. de 2018, 17:30 BRST, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
A região do Sundarbans, um enorme mangue arbóreo que se estende por Bangladesh e pela Índia, ...
A região do Sundarbans, um enorme mangue arbóreo que se estende por Bangladesh e pela Índia, costumava ser evitado pelas pessoas, em parte por ser lar do temido tigre-de-bengala.
Foto de Steve Winter, Nat Geo Image Collection

MUNSHIGANJ, BANGLADESH Quando Rafikul Mali se tornou um pirata no Sundarbans, ele sabia que seria uma aventura difícil e desconfortável. Ele se preparara para encontros sucessivos com enormes aranhas e algumas das duas dúzias de espécies de cobra que serpenteiam por entre as matas do mangue, que rodeia boa parte da costa de Bangladesh e estende-se até a Índia. Ele se preparara também para um jogo cansativo de gato e rato com as forças de segurança, que há muito tentam e falham em desalojar as gangues de piratas de seus redutos nos manguezais.

Mas a ameaça com a qual ele e seus colegas piratas não contavam foi uma que rapidamente veio a dominar suas imaginações: o tigre-de-bengala. Algumas noites, os homens permaneciam acordados, atirando seus rifles na direção da vegetação rasteira. Em outras, quando o terror os dominava, eles voltavam aos seus barcos para algumas horas sem descanso no convés.

O mangue forma uma proteção contra tempestades violentas e a elevação do nível do mar. Com a infiltração cada vez maior de pessoas, entre elas piratas, no Sundarbans, os tigres sofrem perdas graves nas mãos de caçadores e moradores.
Foto de Md. Akhlas Uddin, Pacific Press/LightRocket via Getty Images

Após meses de terror paralisante, alguns dos mais ensandecidos decidiram enfrentar seu nêmesis de uma vez por todas. “Eles falaram: ‘Somos nós ou os tigres, a área não é grande o suficiente para todos nós’”, lembra Mali, um homem de aparência frágil com quase 40 anos, um abdome protuberante e cabelos cuidadosamente partidos de lado.

A região do Sundarbans, que se encontra além dos limites do controle do governo, serve há muito de refúgio para vigaristas e indolentes. Com o passar dos anos, gangues de piratas passaram a usar suas ilhas de vegetação densa como base, a partir das quais saqueiam carregamentos e sequestram moradores locais.

Mali se tornou um fugitivo ao zarpar para escapar da cadeia por posse ilegal de armas. Mas, após dois anos de pilhagem de navios e sequestros de moradores por resgate, ele diz ter começado a buscar uma saída. Quando, em 2016, o governo ofereceu anistia, ou seja, imunidade às acusações de alguns crimes em troca de rendição, Mali agarrou a oportunidade e hoje está de volta à fazenda da família.

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    Os tigres matam dezenas de pessoas a cada ano no Sundarbans. Se o marido de uma mulher for morto por um tigre, ela é chamada de “bagh bidhoba”, ou “viúva do tigre”. Ela provavelmente não conseguirá se casar novamente e enfrentará a pobreza.
    Foto de <p> Probal Rashid, LightRocket via Getty Images</p> <p>&nbsp;</p>

    Populações selvagens de tigres despencaram no subcontinente indiano com o encolhimento de seus habitats. O desmatamento em larga escala surrupiou suas florestas, e o aumento da presença humana adicionou ainda mais pressão a seus esconderijos remanescentes. Ao mesmo tempo, tigres estão sendo caçados para suprir a demanda da medicina tradicional chinesa. 

    Mundialmente, a quantidade de tigres selvagens caiu de 100 mil no início do século 20 para menos de 4 mil atualmente, e os animais vivem hoje em míseros 7% de seu território original.

    Até recentemente, a região do Sundarbans permanecia sendo uma exceção, um ecossistema de importância internacional com os tigres em seu núcleo. O terreno pantanoso e quase impenetrável repelia a maior parte dos intrusos, e autoridades de Bangladesh e do outro lado da fronteira, no segmento indiano do pântano, implementaram medidas para restringir o acesso humano. Com a ajuda dos tigres para espantar madeireiros ilegais e com a mata, por sua vez, oferecendo proteção contra os terríveis ciclones e tempestades brutais do litoral, o Sundarbans alcançara um equilíbrio que atendia às necessidades de seus dependentes.

    Mas anos de piora nas condições de plantio forçaram milhares de fazendeiros desesperados para dentro do Sundarbans, explorando seus recursos abundantes, como o mel, a pesca e os materiais para construção. Com o aumento do potencial de vítimas, os ataques piratas são mais frequentes do que nunca. Novas gangues se formaram, e as antigas incharam. Muitas famílias pobres passaram a separar montantes dedicados aos resgates, caso um de seus familiares seja raptado.

    As pegadas do tigre-de-bengala no mangue trazem arrepios aos bangladeshianos.
    Foto de Md. Akhlas Uddin, Pacific Press/LightRocket via Getty Images

    Para os tigres, caçados e mortos frequentemente em embates com os moradores, a situação se tornou desastrosa. Sua população caiu de 440 indivíduos em 2004 para um pouco mais de cem uma década depois, de acordo com o censo mais recente de Bangladesh, em 2015.

    Seu declínio pode ser uma ameaça para o futuro da região, disse Anwarul Islam, secretário geral da WildTeam, uma ONG internacional de conservação, e professor de zoologia na Universidade de Dhaka. Os tigres, ele disse, há muito preservam os mangues ao manterem as pessoas longe. “Sem os tigres, não haveria um Sundarbans e, mesmo assim, nós os colocamos em uma posição muito grave”.

    Caso o mangue arbóreo de raízes profundas, que forma uma defesa costeira essencial para Bangladesh, quase todo ele de baixa altitude, seja eliminado ou significativamente reduzido, dezenas de milhões de pessoas poderão enfrentar enchentes catastróficas.

    “Todo tipo de perigo”

    Desde que Hafizur Rahman, 62, consegue se lembrar, o interior das matas era uma zona a se evitar. Por muitas vezes, ele vira os resultados sangrentos de tigres que vagueavam pelas margens do rio que separa os arrozais dos fazendeiros da floresta no subdistrito onde cresceu, o Munshiganj, próximo à fronteira com a Índia e a cerca de 240 quilômetros de Dhaka. E por muitas vezes Rahman, um membro do grupo da comunidade local de patrulha dos tigres, testemunhou a força selvagem do animal em primeira mão.  As longas cicatrizes nas suas costas provam seu testemunho quando, em 2011, um tigre matou três idosos de sua vila e depois voltou-se contra ele e outros da equipe de socorro.

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    “Há todo tipo de perigo na mata”, diz Rahman, cuja família ganha a vida catando caranguejos por entre as raízes do mangue. “A partir do momento em que se está lá dentro, o tigre pode lhe matar”.

    De fato, os tigres mataram dezenas de pessoas em um ano no Sundarbans, e Islam disse que apenas a equipe da WildTeam recuperou 75 corpos humanos desde 2008. Desesperados por proteção, os moradores incorporaram os tigres em seus rituais religiosos, tanto hindus quanto islâmicos, rezando ocasionalmente por eles em santuários às margens do mangue e fazendo pactos com os animais. Muitos nativos do Sundarbans acreditam que não comer carne ou mariscos os poupará da ira dos felinos.

    O solo e a água cada vez mais salinizados deterioraram o solo e a produtividade dos cultivos, empurram as pessoas para o domínio dos animais. De acordo com a Associação de Pescadores de Harinagar, há dez anos, havia por volta de 300 barcos de pesca e de catadores de caranguejo na região de Satkhira, a extensão mais ocidental do Sundarbans em Bangladesh. Agora, estima-se haver mais de dois mil. A quantidade de coletores de mel na região também cresceu.

    Com menos opções para os fazendeiros, um aumento contínuo da população no Sundarbans e o fato de um único tigre necessitar de 50 quilômetros quadrados para sobreviver, conservacionistas e anciãos temem que os embates entre moradores e tigres se tornarão mais graves.

    “Há muitas pessoas na mata agora” disse Ruhol Amin, um antigo fazendeiro que se tornou coletor de mel em Harinagar, onde a população dobrou de tamanho, para aproximadamente 10 mil pessoas nas últimas duas décadas. “Não acredito que a área seja grande o suficiente para todos nós e os tigres”. Agora, mesmo em campos distantes na calada da noite, vilas que costumavam ser silenciosas vibram com o som das vozes.

    Se essas pessoas fizessem uso apenas dos recursos autorizados, como caranguejos, peixes, folhas de palmeiras e mel, o impacto da crescente infiltração humana poderia ser mais controlável. Mas levados pelo desespero, ganância ou ignorância, uma minoria de recém-chegados não está respeitando as regras. De acordo com um estudo de 2012, cerca de 11 mil cervos axis e cervos-latidores estavam sendo mortos ilegalmente no Sundarbans a cada ano, privando os tigres de uma fonte de alimento crucial.

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    A quantidade de cervos caçados hoje pode ser ainda maior, dizem as autoridades do departamento florestal e, nas raras ocasiões em que os tigres adentram os vilarejos, apresentam-se muitas vezes como bolas emaciadas de pelo e osso. “Hoje” disse Islam, da WildTeam, “a caça de cervos é talvez ainda mais perigosa para o tigre do que a ameaça da caça ao próprio tigre. Sem comida, não há tigres. É muito grave”.

    A bonança dos piratas

    Para as pessoas que enfrentam dificuldades no Sundarbans, sequestros são causas de preocupação tão constantes quanto os felinos famintos.

    “Há apenas 15 dias, eu fui sequestrado” disse Khogan Shana, um pescador de Munshiganj, quando o conheci neste verão. De acordo com Shana, “os piratas perguntaram: ‘Você tem autorização do governo?’ ‘Sim, eu tenho’ eu respondi. Então, perguntaram: ‘Você tem uma autorização pirata? Não? Então pode pagar’. Esse é nosso pesadelo”.

    Por autorização pirata, os fora-da-lei se referem a uma taxa pré-acordada em troca de admissão às áreas abundantes de pesca controladas por eles. Poucos moradores podem pagá-la. Neste caso, Shana foi amarrado com cordas, agredido com pedaços de pau, depois jogado em um buraco enquanto seus quatro companheiros de pesca eram liberados para coletar os resgates para toda a equipe. Dias depois, com o montante transferido através de um sistema de pagamento via celular, Shana foi libertado.

    A maioria dos piratas parece se contentar com o sequestro de reféns, um negócio lucrativo a 200 dólares por pessoa, o equivalente a até um quarto da renda anual de muitos bangladeshianos rurais. No entanto, para um pequeno grupo, foi impossível resistir à possibilidade de suplementar sua renda com a caça de tigres, especialmente com a crescente concorrência no negócio de reféns.

    Em 2016, sete peles de tigre foram confiscadas em Koyra, a leste de Munshiganj, de acordo com a WildTeam, e guardas florestais encontraram outras duas perto de Mongla no ano passado.

    “Não há uma caça ilegal organizada em Bangladesh uma vez que não há demanda local para os produtos derivados” disse Gary Collins, que até recentemente chefiava o projeto BAGH, da USAID em conjunto com a WildTeam, estabelecido para combater o tráfico de animais silvestres e minimizar o confronto entre tigres e pessoas. No entanto, complementou Collins, partes de tigres “valem muito mais na China e, assim, as pessoas decidem experimentar. Com apenas cem tigres restantes, perder apenas um ou dois é gravíssimo”. Uma das táticas preferidas é o envenenamento de uma carcaça de cervo, esperando que um tigre a coma e morra, para depois enterrarem o corpo até que tudo seja decomposto, menos sua preciosa pele e ossos.

    As autoridades dizem ter o problema da pirataria sob controle. “Nossas agências policiais capturaram e mataram diversos deles” disse Habibul Haque Khan, diretor do departamento de meio ambiente de Khulna. “Eles estão muito fracos agora”.

    Mas não é essa a realidade dos moradores das regiões de Khulna e Satkhira. Médicos de vilarejos periféricos dizem atender cada vez mais ferimentos ocasionados por piratas, geralmente de tortura, com o objetivo de apressar os pagamentos de resgate. “Isso é muito mais comum agora. Às vezes, são ferimentos realmente brutais, como queimaduras nos braços e dedos amputados” disse Shivapada Mondol, médico local na região de Munshiganj. “Esses piratas não têm piedade”.

    Em algumas regiões, de acordo com os moradores de diversos vilarejos, os piratas são tão predominantes que estão até consolidando seus negócios, cobrando pagamentos de resgate menores antecipadamente. Enquanto as gangues atacarem apenas aqueles que não provocam resposta governamental (ao contrário de turistas e cientistas, por exemplo), os moradores locais não veem muita esperança de alívio.

    “A lógica dos piratas é ganhar dinheiro de qualquer jeito, com as pessoas, com os tigres, não importa” disse Rafikul Mali, o ex-pirata. “E ninguém os está impedindo”.

    Oficiais do governo negaram comentários sobre as operações antipirataria, mas, publicamente, anunciam a anistia de 2016 como um sucesso. Em troca da entrega de suas armas e barcos, os piratas que não eram suspeitos de estupro ou homicídio foram reintegrados à sociedade. No entanto, conversei com moradores e antigos piratas que disseram que, depois de um tempo, muitos dos fora-da-lei retornaram à vida do crime.

    Embaixadores dos tigres

    Os últimos anos foram fonte de alguma alegria para os defensores dos grandes felinos. Autoridades em Bangladesh parecem haver intensificado o policiamento de delitos relacionados aos tigres, enquanto introduziram incentivos para os moradores protegerem os animais. Como exemplo, moradores que capturarem, mas não matarem um tigre, podem ser recompensados em 600 dólares. Ademais, o sistema de autorização para acesso ao Sundarbans, que custa entre 2,50 e 12 dólares para passes de sete a 30 dias, vem sendo melhor controlado, dizem os pescadores.

    Talvez ainda mais importante, comunidades locais estão cada vez mais assumindo a responsabilidade de proteger seus vizinhos felinos. Através de uma iniciativa da WildTeam, cada morador ao redor do Sundarbans designou um “embaixador dos tigres”, alguém encarregado de contatar as unidades de emergência quando os tigres se aproximarem das moradias das pessoas. Após diversas operações de captura e soltura bem-sucedidas, Islam, da WildTeam, diz que o programa parece estar trazendo resultados.

    Ainda assim, os desafios seguem crescendo. Mesmo com toda sua resistência, há um limite para o que os felinos podem aguentar. “Eles são durões, mas ainda estamos vendo cada vez menos tigres” disse Azad Kobir, funcionário do departamento florestal de Karamanjal, perto de Mongla. Sua base exibe barras de ferro nas janelas, visando manter longe os poucos tigres restantes na área, e o lamurio dos cervos mantidos em jaulas funciona como um sistema de alerta.

    A mudança das condições climáticas, além de forçar as pessoas para dentro do Sundarbans e, consequentemente, alimentar a pirataria, vem reduzindo a disponibilidade da vegetação que sustenta o alimento dos tigres, os cervos, com o aumento do nível do mar levando mais água salgada para o Sundarbans. Enquanto isso, a construção de represas rio acima, no Ganges e em seus afluentes, priva o Sundarbans de água doce.

    Autoridades antipirataria e anti-caça continuam subfinanciadas, resultando em guardas florestais sem combustível suficiente para patrulharem os rios, enfrentando algo que um jornal local diz ser uma operação de caça ilegal de tigres vinculada a políticos locais. E quando a China proceder com sua recém divulgada intenção de suspender a proibição do uso de ossos de tigre na medicina tradicional e em pesquisas médicas, a caça poderá aumentar.

    O tigre-de-bengala pode ser resgatado desta situação, como mostrou o recente sucesso do Nepal com tigres, onde a população do animal dobrou na última década.

    “Quando as pessoas pensam em Bangladesh, elas pensam nos tigres. Eles fazem parte da nossa identidade” disse Islam. “O Camboja perdeu todos os seus tigres, e agora eles percebem o que perderam”. (O último tigre selvagem do Camboja foi documentado em 2007 e, em 2016, seus tigres foram declarados funcionalmente extintos”). “Se também perdermos nossos tigres” ele disse, “veremos que perdemos uma parte de nós”.

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