Filhote de cachalote ficou com lixo oceânico preso ao corpo por três anos

A sobrevivência de Digit é vital para sua família. A história dela reforça a crise da poluição marítima.

Por Craig Welch
Publicado 11 de jan. de 2019, 12:00 BRST, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Digit, uma jovem baleia cachalote próxima à nação de Dominica, no Mar do Caribe, passou três ...
Digit, uma jovem baleia cachalote próxima à nação de Dominica, no Mar do Caribe, passou três anos com uma corda de pesca mortal presa na base de sua nadadeira caudal, antes de o cientista especialista em cachalotes Shane Gero avistá-la nadando em liberdade em 2018. O calvário de Digit impulsionou Gero a trabalhar mais para garantir a coexistência entre humanos e baleias.
Foto de Brian Skerry

Ao ver as fotos, Shane Gero congelou.

Um fio grosso de corda balançava junto à cauda de uma baleia cachalote jovem, um generoso pedaço de fio de uma rede de pesca, de seis milímetros de espessura. A olhos incautos, a linha podia parecer inofensiva—um laço apertado à base da nadadeira caudal do animal. Mas Gero sabia que aquela corda era assassina.

As fotografias recebidas por e-mail de um colega mostravam a pesada corda puxando a cauda do animal para baixo, o que podia impedi-lo de mergulhar, já que é o método de caça dos cachalotes. Ao longo do crescimento, essa constrição acabaria entrando na carne do animal, estrangulando o tecido feito um garrote. A linha poderia inclusive amputar a cauda, embora provavelmente a infecção ou a fome o abatessem primeiro.

Em casa, em Ottawa, Gero deu um pulo do computador. Chamou a esposa e tentou não chorar.

Digit, a baleia cachalote, não era exatamente uma conhecida, embora Gero conhecesse a família dela havia anos. Todas as primaveras, já havia uma década, o ecologista comportamental canadense abandonava os próprios filhotes para passar meses com essas baleias no Mar do Caribe, próximo à pequena ilha-nação das Índias Ocidentais chamada Dominica. Embora ainda não chegasse aos 40, o professor assistente da Aarhus University, na Dinamarca, vinha rapidamente se tornando o maior especialista em filhotes de cachalotes do mundo. Digit e seus parentes eram seus ilustres objetos de estudo.

Digit quase morreu nessa provação. Muitos outros mamíferos marinhos não sobrevivem aos encontros com lixo oceânico.
Foto de Arun Madisetti, Images Dominica

A própria existência de Digit era significativa. Milhares de cachalotes cruzam os oceanos do mundo. Mas 12 das 16 famílias de baleias que retornavam todos os anos a esse pedacinho do Caribe estavam começando a desaparecer. Cada uma dessas famílias poderia ficar reduzida a um único indivíduo em questão de quinze anos.

Além disso, as famílias dos cachalotes são matrilineares. Os machos adultos são expulsos num determinado momento, cabendo às fêmeas o exclusivo fardo de cuidar dos jovens. Durante anos, a família produzira uma sequência de machos. Três deles—Thumb, Tweak e Enigma—já haviam morrido. Scar desapareceria em breve.

A família precisava de uma fêmea jovem.

Então, a chegada de Digit em 2011 deixou a equipe de pesquisa de Gero em êxtase. A equipe viu Digit desmamar da mãe, Fingers. Vibraram quando ela bateu a cauda em seu primeiro mergulho profundo. Com a chegada de Digit, a família de cachalotes mais estudada do mundo parecia destinada a prosperar.

Foi então que, em 2015, Gero recebeu as imagens.

Leviatãs sociáveis

Na literatura, os cachalotes são bestas destruidoras de navios—monstros de "inexorável maldade", nas furiosas palavras de Ahab, em Moby Dick, de Herman Melville. Na realidade, isso está distante da verdade.

As baleias com os maiores dentes do mundo possuem também os cérebros mais volumosos do reino animal. Essas nômades, com seus mergulhos profundos, dividem o convívio social em clãs, que podem chegar aos milhares. Cada clã conversa em dialeto próprio, utilizando um conjunto único de padrões de sons de estalos. Essas baleias são sociáveis e brincalhonas. Elas rolam e se esfregam umas às outras próximas à superfície. Algumas brincam de esconde-esconde, nadando em círculos em volta dos barcos de pesquisa dos cientistas e rolando de lado para espiar os habitantes. Os cachalotes também são bem curiosos, principalmente para espiar objetos estranhos.

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    Digit (esquerda) nada com o filhote Corkscrew e sua mãe Canopener. A baleia adulta parece sempre brincar com os pesquisadores, nadando junto ao barco e deixando um olho para cima para espiar quem está dentro. Canopener chega a fingir mergulhar, esperando, abaixo da superfície, os cientistas andarem com o barco até o ponto onde a viram pela última vez. Daí ela pula sobre a superfície de novo.
    Foto de Brian Skerry

    A própria existência de Digit era significativa. Milhares de cachalotes cruzam os oceanos do mundo. Mas 12 das 16 famílias de baleias que retornavam todos os anos a esse pedacinho do Caribe estavam começando a desaparecer. Cada uma dessas famílias poderia ficar reduzida a um único indivíduo em questão de quinze anos.

    Além disso, as famílias dos cachalotes são matrilineares. Os machos adultos são expulsos num determinado momento, cabendo às fêmeas o exclusivo fardo de cuidar dos jovens. Durante anos, a família produzira uma sequência de machos. Três deles—Thumb, Tweak e Enigma—já haviam morrido. Scar desapareceria em breve.

    A família precisava de uma fêmea jovem.

    Então, a chegada de Digit em 2011 deixou a equipe de pesquisa de Gero em êxtase. A equipe viu Digit desmamar da mãe, Fingers. Vibraram quando ela bateu a cauda em seu primeiro mergulho profundo. Com a chegada de Digit, a família de cachalotes mais estudada do mundo parecia destinada a prosperar.

    Foi então que, em 2015, Gero recebeu as imagens.

    Leviatãs sociáveis

    Na literatura, os cachalotes são bestas destruidoras de navios—monstros de "inexorável maldade", nas furiosas palavras de Ahab, em Moby Dick, de Herman Melville. Na realidade, isso está distante da verdade.

    As baleias com os maiores dentes do mundo possuem também os cérebros mais volumosos do reino animal. Essas nômades, com seus mergulhos profundos, dividem o convívio social em clãs, que podem chegar aos milhares. Cada clã conversa em dialeto próprio, utilizando um conjunto único de padrões de sons de estalos. Essas baleias são sociáveis e brincalhonas. Elas rolam e se esfregam umas às outras próximas à superfície. Algumas brincam de esconde-esconde, nadando em círculos em volta dos barcos de pesquisa dos cientistas e rolando de lado para espiar os habitantes. Os cachalotes também são bem curiosos, principalmente para espiar objetos estranhos.

    "Íamos para a terra buscar comida e, ao voltarmos, ainda víamos os mesmos animais próximos à praia", diz Gero. "Era algo inédito".

    E é por isso que os nomes deles são espirituosos—Gero precisava diferenciá-los, mas não esperava que os veria novamente.

    Assim como com os chimpanzés de Jane Goodall e os gorilas-das-montanhas de Dian Fossey, o acesso íntimo acabou revelando os hábitos e personalidades distintas de cada animal. Com o tempo, Gero começou a enxergar essas baleias enquanto indivíduos.

    Fingers parecia ser quem comandava. Ela costumava transmitir o "coda", quatro estalos que identificavam a família a outras baleias, como um sobrenome. Quando morreu a cria dela, Thumb, Fingers passou a ajudar a criar os filhotes das outras. Ela evitava a presença de pessoas e era conhecida por mergulhos espetaculares, jogando para cima a nadadeira caudal para depois arrebentar mar abaixo.

    "É difícil descrever a beleza do mergulho dela para alguém que não costuma ver centenas de baleias fazendo isso", afirma Gero, cuja pesquisa é realizada por meio do Laboratório de Bioacústica Marinha da Aarhus University. "É como se ela estivesse mostrando o caminho aos outros".

    A sobrinha de Fingers, Pinchy, era a mãe de Scar, cujo conforto junto aos humanos era tamanho que ele viria a ser um astro do setor de turismo da Dominica, em atividades de nados com as baleias. Havia também o débil Quasimodo e a Mysterio, que recebeu esse nome por aparecer raramente.

    Gero sentia uma proximidade cada vez maior com os cetáceos. "As baleias estavam se tornando parte da minha vida", afirma. "Meus filhos conheciam esses animais pelo nome, ainda que nunca os houvessem conhecido pessoalmente".

    As baleias o levaram a repensar suas opiniões sobre a preservação. Em muitas famílias de cachalotes, os filhotes obtém leite das mães de outros filhotes. Os jovens do Grupo dos Sete somente bebiam o leite das próprias mães. Se os comportamentos e a comunicação eram exclusivas a cada clã ou família, será que isso não sugeriria que a preservação deveria ir além dos números totais da população? Não seria cada clã especial por si só?

    Os cachalotes do Caribe passam por muitas ameaças—poluição, mudanças climáticas, enredamento em equipamentos de pesca, colisões com navios. Morreram tantos membros da família de Digit em anos recentes que a família dela acabou se fundindo com outra, que continha a altamente sociável Canopener, nesta imagem.
    Foto de Brian Skerry

    Em 2011, chegou uma equipe de filmagem, encabeçada por um cineasta que havia coproduzido o drama biográfico de Fossey, Nas Montanhas dos Gorilas. Quando Fingers deu à luz um novo filhote na mesma semana, Gero não teve dúvidas de como batizá-la.

    Chamou o novo filhote de Digit, nome do "costas prateadas" favorito de Fossey. Só depois veio a lembrar o que os humanos fizeram com o gorila de Fossey.

    Desaparecendo

    Antes de chegar a Dominica para a temporada de pesquisa de 2015, Gero só vira os ferimentos de Digit em fotos recebidas no e-mail. Pessoalmente, a situação parecia ainda pior. Antes de ficar presa, a jovem baleia havia acabado de começar a nadar e mergulhar sozinha. A partir dali ela só aparecia com adultos. Estava reservada, em vez de curiosa. Mantinha distância dos barcos e das pessoas.

    "Era como se tentasse dizer 'Tudo isso é culpa de vocês, humanos'", diz Pernell Francis, que trabalhou com Gero.

    Gero podia enxergar a corda cortando a carne dela. E o mais problemático: Digit não conseguia levantar a cauda. A corda criava um efeito de arrasto muito grande. Como ele temia, ela não conseguia mergulhar fundo, o que impedia a caça de lulas.

    A notícia da situação de Digit se espalhou. Ted Cheeseman, que levava clientes para nadar com as baleias, levantou um dinheiro para contratar uma equipe profissional de libertação de animais marinhos. Defensores das baleias falavam em cortar eles mesmos a corda. Gero sabia que isso era muito perigoso.

    "Tem vídeos na Internet em que as pessoas fazem isso, mas é uma sorte muita grande elas mesmas não morrerem", diz Moore. Um resgatador treinado viria a morrer em 2017, ao ser acertado por uma baleia que ele acabara de libertar.

    Uma hora, alguém acabou fazendo algo. O nadador encurtou a corda de Digit, mas não conseguiu cortar o nó. A linha mais curta reduziu o arrasto da cauda de Digit, mas restara um pedaço ainda menor de corda com que os profissionais pudessem trabalhar.

    Acabou que não veio nenhuma equipe de resgate. Cheeseman acabou usando o dinheiro levantado para comprar e guardar equipamentos para resgates futuros. Ele financiou a montagem e treinamento de uma futura equipe de libertação de animais marinhos em Dominica.

    Enquanto isso, Digit emagrecia cada vez mais. Sem conseguir capturar o próprio alimento, ela voltou aos cuidados de Fingers.

    "Era como ver o próprio filho voltar a engatinhar", diz Gero.

    As pessoas se importam

    Uma tarde, em Dominica, um bote se aproximou, de dentro do qual gritou uma mulher: "Ei, Shane, como eu posso ajudar a Digit?" Gero foi pego de surpresa. O problema preocupava até mesmo desconhecidos.

    Naquela noite, Gero jantou no convés de seu barco de pesquisa, sob a luz de uma lanterna de cabeça pendurada. O Grupo dos Sete estava em apuros. Aquela família estava à beira da extinção, reduzida a três baleias: Fingers, Pinchy e Digit. Mas a indagação da desconhecida foi um lembrete de que a história de Digit tinha um poder real.

    Embora os humanos gostem de golfinhos e orcas, muitos são incapazes de identificar uma baleia cachalote. Menos ainda entendem toda a gama de ameaças contra essas nômades: poluição, mudanças climáticas, colisões com navios, equipamentos de pesca.

    "Mas as pessoas entendem quando uma mãe cuida de um filho que de repente passa a sofrer de uma lesão crônica", afirma Gero.

    Gero jurou que algo de útil sairia dos ferimentos de Digit.

    Ao longo dos anos seguintes, Gero expandiu o foco da sua pesquisa sobre preservação. Escreveu e palestrou mais. Falou em museus e chegou a mencionar o dilema de Digit durante uma TEDx Talk. Sua equipe e ele mapearam os movimentos de baleias e embarcações e pressionaram o governo a restringir o tráfego dos navios às áreas já evitadas pelas baleias. Gero esperava que isso ajudaria os operadores dos barcos pesqueiros a encontrar locais sem baleias para jogar as redes.

    "Digit mudou inteiramente a perspectiva do nosso projeto", afirma Gero. O comportamento das baleias deixou de ser seu único interesse. Agora, perguntava: "O que podemos fazer para garantir a coexistência de todos nós?"

    Mesmo assim, ele não conseguiu ajudar Digit. Ela ainda não conseguia mergulhar. A carne começava a crescer ao redor da corda, fechando-se sobre ela. Gero acreditava estar assistindo à morte de Digit.

    Milagre

    Então, no primeiro semestre do último ano, ele a viu novamente da proa da Balaena. Dias adentro da temporada em campo de 2018, Digit deu o ar da graça na superfície. Gero soube imediatamente que tudo havia mudado.

    O contorno da coluna de Digit já não era visível. Ela havia ganhado uns quilos. Olhando de perto, Gero enxergava as abrasões e marcas causadas pela corda. A linha em si simplesmente foi embora.

    Alguns meses antes, um colega em Dominica havia lhe enviado e-mail dizendo que ouvira falar que Digit havia perdido a corda. Gero vinha esperançoso desde então, embora cético. Naquele momento, ao verem Digit escorregar para baixo da superfície, a equipe inteira de Gero ficou muda. Digit bateu a cauda e mergulhou. Um grito de alegria explodiu no barco. Digit estava livre depois de três anos.

    Por anos, a pesada corda puxava a cauda de Digit, impedindo o animal de mergulhar fundo à procura de lulas. O nó cortava a carne dela e a fez perder tanto peso que a mãe, Fingers, voltou a cuidar dela. Agora que a corda se foi, Digit (aqui vista na parte inferior) está socializando novamente com Canopener (em cima) e com a cria desta, Corskscrew (com a cauda no alto na água).

    Posteriormente, o cientista e sua equipe viriam a prender um dispositivo de rastreamento às costas de Digit. Ao analisarem os dados do aparelho depois, Gero ficou de boca aberta. Digit estava mergulhando a mais de 900 metros. Comia lulas sem parar. Digit comportava-se feito uma baleia de sete anos saudável.

    Ninguém sabe como ela se libertou. Cheeseman suspeita que a luz do sol, o tempo e a pressão enfraqueceram a linha de Digit até finalmente se quebrar. Moore diz que, caso Digit tenha nadado próximo a alguma rocha ou fenda afiada, a corda já deteriorada pode ter arrebentado. Pode ser até que outras baleias tenham ajudado.

    "Se alguém me dissesse que dois cachalotes tivessem feito cabo-de-guerra com a linha e a arrebentado, eu acreditaria", diz Moore.

    Gero tem outra ideia. Ele viu cicatrizes recentes na cauda de Digit. Suspeita que predadores a tenham atacado e sem querer arrancado o acessório.

    Mas Gero sabe que nunca terá certeza. Até prefere que assim seja.

    "É fácil esquecer que existem milhares de espécies bem perto da gente com mundos ricos e complexos, vivendo suas vidas paralelamente às nossas", diz Gero.

    Uma nova geração de cachalotes do Caribe Oriental nadava livre. E saber disso era o suficiente.

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