Exploração do couro do pirarucu da Amazônia para vender botas country nos EUA pode levar espécie à extinção

Quando o pangolim ficou indisponível, vendedores substituíram-no pelo couro desse gigante e icônico peixe brasileiro — tornando ambas as espécies ameaçadas.

Por Rachel Nuwer
Publicado 6 de ago. de 2019, 18:35 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
O pirarucu, encontrado na bacia do Rio Amazonas, é um dos maiores peixes de água doce do mundo. A espécie corre perigo devido à pesca excessiva impulsionada por sua carne e agora, possivelmente, por sua pele para a produção de produtos em couro destinados a consumidores norte-americanos.
Foto de Stephen Álvarez, Nat Geo Image Collection

Pangolins são os únicos mamíferos do mundo que possuem escamas, e esse traço característico contribuiu para que se tornassem o mamífero mais traficado do planeta. Os pangolins são alvos de caçadores ilegais por toda a Ásia e África, principalmente por suas escamas, que são utilizadas como ingrediente na medicina tradicional chinesa. Uma pesquisa indica que centenas de milhares — se não milhões — de pangolins são mortos a cada ano.

Porém, de acordo com um novo relatório publicado no periódico Conservation Science and Practice, as escamas não são o único motivo pelo qual esses animais, que se alimentam de formigas, são tão cobiçados — e nem sempre a Ásia foi o único foco da demanda. Antes de 2000, os Estados Unidos eram um grande importador de pele de pangolim, que era utilizada para fabricar botas country, cintos e carteiras de couro exótico.

Antes do comércio internacional de pangolins ser proibido, produtos em couro, como essas botas, produzidas no México e confiscadas pelo Serviço de Pesca e Vida Silvestre dos Estados Unidos, contribuíram para o declínio da espécie.
Foto de Brent Stirton, Getty, National Geographic

Desde 2017, foi proibido o comércio internacional de todas as oito espécies de pangolim. Os autores do estudo observam que, à medida que os pangolins foram desaparecendo, os importadores norte-americanos começaram a substituir o couro de pangolim pelo couro de pirarucu, um peixe ameaçado da Amazônia e que pode chegar a mais de 2,7 metros de comprimento. Apesar de suas diferenças biológicas, a pele das duas espécies, quando tratada, exibe um padrão em forma de diamante semelhante.

Se essa alteração na demanda pelo couro de pangolim não for controlada, advertem os autores, a exploração excessiva do pirarucu — que já constitui um problema significativo ao longo de toda a área de distribuição do peixe na bacia do Rio Amazonas — pode se tornar um problema ainda mais sério.

“Considerando a enorme popularidade histórica dos pangolins nos EUA, provavelmente o país represente um grande mercado para o pirarucu,” afirma Sarah Heinrich, doutoranda em ciência da conservação na Universidade de Adelaide, na Austrália, e principal autora do estudo que publicou essas descobertas. “O comércio pode ficar fora de controle rapidamente”.

Acredita-se que os pangolins sejam o mamífero mais traficado do mundo, principalmente devido às suas escamas. Não se sabe o número exato de pangolins mortos na Ásia e na África a cada ano.
Foto de Brent Stirton, Getty, National Geographic

Muitos conservacionistas afirmam que o comércio de couro teve uma contribuição insignificante para o declínio dos pangolins e que é irrelevante atualmente. Porém, Dan Challender, pesquisador adjunto de pós-doutorado da Universidade de Oxford, no Reino Unido, especialista em pangolins e que não participou do trabalho em questão, indica que “o comércio de couro de pangolim foi uma ameaça à espécie, com toda certeza”.

A ausência de dados confiáveis sobre o comércio internacional é um obstáculo para quantificar o papel que o comércio de couro desempenhou no declínio histórico dos pangolins. Heirinch tentou superar esse obstáculo analisando registros de comércio legal e ilegal do Serviço de Pesca e Vida Silvestre dos Estados Unidos entre 1999 e 2015. Ela descobriu cerca de 21,4 mil pangolins envolvidos em 163 importações de couro de pangolim, sendo que a maior parte delas ocorreu antes de 2000, quando a comunidade internacional estabeleceu uma regra de exportação zero de pangolins asiáticos. Por outro lado, o pirarucu mostrou uma tendência na direção contrária: dos 130 registros encontrados por Heinrich que envolviam 5,5 mil pirarucus, quase todos ocorreram depois de 2011 e o comércio de couro de pirarucu vem crescendo significativamente desde então.

Durante um período de nove meses em 2017 e 2018, Heinrich também apurou 478 anúncios no eBay de couro de pangolim e de pirarucu oferecidos por vendedores nos EUA, muitos dos quais diziam conseguir enviar o produto a qualquer local do mundo. Com base na análise visual de Heirinch e nas descrições dos vendedores, mais de 65% dos anúncios pareciam autênticos, incluindo 168 que envolviam aproximadamente 476 pangolins e 154 anúncios envolvendo cerca de 2,8 mil pirarucus. Três quartos dos anúncios aparentemente autênticos ou violavam a política do eBay de proibição de venda de pangolim ou possivelmente violavam as regulamentações internacionais e norte-americanas (ou violavam as três).

Diferentemente dos pangolins, o pirarucu pode ser comercializado para outros países se acompanhado da documentação correta e se sua captura não afetar adversamente as populações. No entanto, o eBay proíbe a venda internacional de pirarucu. (Em 2018, o eBay entrou para um grupo de empresas tecnológicas que se esforça para reduzir em 80% a venda online de produtos ilegais de origem silvestre até 2020).

Todo o couro de pirarucu que Heinrich encontrou no eBay era originário do Brasil. Questiona-se o fato de os pirarucus legalmente destinados aos EUA serem explorados de forma sustentável, de acordo com Leandro Castello, ecologista de pesca da Virginia Tech, em Blacksburg, Virgínia, que não participou da nova pesquisa. Ele diz que um número crescente de populações de pirarucu brasileiro está sendo gerido pelas comunidades locais, mas ainda são a exceção.

“Muitas informações sugerem que as populações de pirarucu sofrem com a pesca excessiva e correm perigo na maior parte da bacia do Rio Amazonas”, afirma ele. “Acredito que os EUA deveriam refletir melhor sobre os produtos que podem ser importados”.

 Geralmente, os conservacionistas disparam o alarme apenas quando uma espécie está em declínio acentuado ou em perigo de extinção, mas Heinrich e seus colegas esperam que sua pesquisa ajude a evitar que o pirarucu seja levado a tais extremos pelo comércio. “Não estamos tentando proibir totalmente a comercialização do pirarucu,” diz ela. “O que estamos dizendo é que há um mercado para essa espécie e, se não monitorarmos e intervirmos a tempo, o pirarucu pode acabar se tornando uma espécie ameaçada.”

Existem precedentes para essas preocupações. Em meados da década de 1990, os conservacionistas incentivaram praticantes da medicina tradicional chinesa a substituir o chifre de rinoceronte pelo chifre de antílope-saiga, desencadeando um aumento na caça ilegal que reduziu as populações de antílope-saiga em 97%, de acordo com os pesquisadores. Atualmente, ossos, garras e dentes de tigre estão sendo cada vez mais substituídos por partes do corpo de leões, levando alguns especialistas a suspeitarem que o aumento da caça ilegal de leões na África esteja relacionado à crescente demanda por partes desse mesmo animal na Ásia.

“A pior das hipóteses é que o pirarucu sofra na natureza em consequência das medidas adotadas para proteger os pangolins”, afirma Challender. “Esse estudo de caso demonstra a complexidade de se controlar o comércio da fauna selvagem, principalmente quando ocorre em diferentes continentes, em geografias extensas e em longo prazo".

Nota do editor: Após a publicação da reportagem, a National Geographic Brasil foi procurada por e-mail por João Vitor Campos Silva, representante de um coletivo especialista em manejo do pirarucu que busca conciliar a conservação do peixe com o bem-estar das populações amazônicas. Silva escreveu que a realidade atual do pirarucu é diferente da exposta na reportagem, pois a espécie apresenta alto potencial de ser “explorada sustentavelmente na Amazônia através do manejo comunitário”.

De acordo com o coletivo, o manejo comunitário do pirarucu se tornou um dos modelos de conservação mais bem-sucedidos do mundo e a recuperação da população da espécie chegou a atingir mais de 420% em alguns locais. Além disso, escreve Silva, “o manejo comunitário proporcionou significativa transformação social na Amazônia, melhorando substancialmente a qualidade de vida local por meio da geração de renda, redução da desigualdade de gênero, manutenção cultural e outros benefícios”.

Por fim, o coletivo defende que a exportação de couro de pirarucu para produção de botas de cowboy, entre outros produtos, poderia contribuir fortemente com a conservação da espécie, desde que o couro seja proveniente de áreas legalmente manejadas e comercializado de maneira justa.

 
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