Camelos estão desaparecendo na Índia, ameaçando cultura nômade secular

Vender leite de camelo pode ser uma solução para manter o pastoreio desses animais: o meio de subsistência dos raikas.

Silhueta de camelos contra o sol poente no deserto do Thar, região na fronteira entre a Índia e o Paquistão.

Foto de Matthieu Paley, Nat Geo Image Collection
Por Kalpana Sunder
Publicado 16 de ago. de 2021, 07:00 BRT

CHENNAI, ÍNDIA Seu pai e seu avô foram pastores de camelos, então Bhanwarlal também herdou a ocupação. “Nossos camelos são uma extensão de nossas famílias”, afirma Bhanwarlal, de 35 anos, membro do grupo étnico chamado raika, que acredita ter um chamado divino do deus hindu Shiva para cuidar dos camelos no estado de Rajastão, no noroeste da Índia.

“Nossos filhos convivem com os camelos desde pequenos. Os animais vivem e morrem conosco”, contou ele à National Geographic em entrevista por telefone.

Quando chega a estação seca, Bhanwarlal — que atende apenas pelo nome — e seus companheiros pastores guiam seus rebanhos de ovelhas, cabras e camelos, decorados com sinos tilintantes no pescoço e adornos multicoloridos, por cerca de 1,6 mil quilômetros através do deserto do Thar repleto de acácias a seus pastos de verão. Vestidos com turbantes vermelhos e túnicas brancas, Bhanwarlal e seus antepassados mantém uma vida seminômade há séculos.

Agora, o ritual anual está em risco devido a diversas ameaças, sendo a maior delas o declínio populacional dos camelos. A população total de camelos da Índia — todos eles descendentes de dromedários selvagens — reduziu 37% entre 2012 e 2019, de acordo com a última contagem do 20o Censo Pecuário, publicado em 2019. Estimativas atuais sugerem que restem menos de 200 mil camelos entre as nove raças, e 80% desses animais vivem no Rajastão, onde são criados para fornecer transporte, lã e leite, e também são utilizados para arar os campos.

No entanto a urbanização recente no oeste da Índia trouxe novas estradas e veículos que substituíram os esguios animais de carga — muitas vezes chamados de “navios do deserto” — como principal método de transporte de pessoas e mercadorias. Projetos de irrigação, como o Canal Indira Gandhi, o maior da Índia, provocaram um aumento de propriedades rurais, o que, aliado à instalação de novos parques eólicos e solares, deixou menos espaço aberto para o pasto dos camelos. Os camelos também parecem ter se tornado menos populares: os festivais de camelos, que antes apresentavam música e dança folclórica, barracas de alimentos e de artesanato e muitas vendas de camelos, praticamente desapareceram.

Outro fator que está colocando ainda mais a tradição em risco é o colapso no turismo em meio à pandemia e uma lei estadual de 2015 que proíbe a exportação e venda de camelos machos, que incluiu uma proibição total da venda de carne de camelo (os raikas consideram comer carne de camelo uma profanação de suas crenças religiosas).

A lei foi motivada pelo roubo de camelos dos raikas para contrabandear a outros países, onde há demanda por sua carne, afirma Ilse Köhler-Rollefson, veterinária alemã que fundou a organização sem fins lucrativos Lokhit Pashu-Palak Sansthan em 1996 para proteger os raikas e seus meios de subsistência. Mas essa lei vem despertando polêmica, afirma Roleffson. “Não é prático restringir a venda de animais domésticos, que está intrinsecamente ligada à lucratividade”, explica Rollefson, também exploradora da National Geographic. “É preciso que camelos machos sejam vendidos para que os raikas tenham um sustento.”

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    Os camelos da Índia são descendentes de dromedários selvagens.

    Foto de Matthieu Paley, Nat Geo Image Collection

    Diante desses obstáculos, Bhanwarlal, cuja família mora no vilarejo de Malari, decidiu mandar seus filhos para a escola e incentivá-los a abandonar o pastoreio de camelos.

    “Nosso único sustento restante é a venda de leite de camelo. A menos que sejam concedidos incentivos governamentais, sejam abertas fábricas de laticínios derivados de leite de camelo e seja permitida a venda de camelos machos, estamos condenados”, lamenta ele.

    O departamento de pecuária do Rajastão não respondeu aos pedidos de comentários da National Geographic.

    O próximo superalimento?

    O leite de camelo está em alta na Índia, considerado por muitos nutricionistas como o próximo superalimento, afirma Dharini Krishnan, nutricionista de Chennai. Possui baixo teor de açúcar, é rico em vitaminas e minerais, como vitamina C e potássio, e é uma alternativa para quem tem intolerância à lactose, explica Krishnan.

    Pesquisadores estudam os possíveis benefícios terapêuticos do leite de camelo à saúde humana, embora esses estudos sejam muito limitados para serem tiradas conclusões. Um estudo com um pequeno grupo de diabéticos do tipo 1 em Bikaner, Rajastão, por exemplo, demonstrou que o leite de camelo pode reduzir a necessidade de insulina.

    Tornar o leite de camelo uma fonte de renda para os pastores de camelos, entretanto, apresenta seus próprios desafios. Para transportar leite de camelo às cidades, é preciso pasteurizá-lo e refrigerá-lo, um processo oneroso, afirma Sumanth Vyas, pesquisador principal do Centro Nacional de Pesquisa sobre Camelos do Conselho Indiano de Pesquisa Agrícola, com sede em Bikaner, Rajastão.

    “Os camelos não são adaptados à produção leiteira, e a comercialização de leite de camelo é difícil devido à logística, pois a oferta e procura estão muito distantes uma da outra”, observa Vyas.

    Tais obstáculos motivaram Rollefson a fundar a Kumbhalgarh Camel Dairy, perto de Jaisalmer, em 2010. A fábrica de laticínios administrada pelos raikas coleta cerca de 500 litros de leite por semana de vários pastores, que ordenham manualmente as fêmeas em pé, permitindo a amamentação dos filhotes do outro lado. O leite é congelado, embalado com gelo e vendido a diversos mercados nas cidades.

    Em 2016, Shrey Kumar tornou-se um dos cofundadores da Aadvik Foods, startup sediada em Délhi, que comercializa leite de camelo proveniente de produtores raikas no Rajastão. A Aadvik começou a vender leite de camelo congelado pela Internet, sendo a primeira empresa da Índia a lançar leite de camelo de marca, bem como leite de camelo em pó. “Nosso objetivo era torná-lo acessível a pessoas de todos os grupos econômicos e foi por isso que começamos a produzir leite de camelo em pó”, conta Kumar. “O leite de camelo é um nicho de mercado, mas ainda está em crescimento.”

    Cooperando com pastores de camelos

    As fábricas de laticínios de camelo se revelaram lucrativas em outros estados próximos, incluindo Gujarat, onde pastores de camelos da região de Kutch estabeleceram parcerias com a Amul, cooperativa de laticínios com sede em Gujarat, que lançou leite de camelo em 2019. Além do leite de camelo, que tem validade de seis meses, a Amul também vende leite de camelo em pó, sorvete e chocolates de leite de camelo.

    Para atender à crescente demanda, entre 60 e 70 pastores de camelos ordenham quase 2 mil camelos, um negócio avaliado entre 40 e 50 milhões de rúpias (aproximadamente entre US$ 538 mil e US$ 673 mil), afirma R.S. Sodhi, diretor administrativo da Amul.

    Ramesh Bhatti, da Sahjeevan Trust, organização sem fins lucrativos que atua na proteção de camelos em Gujarat, afirma que observações informais sugerem que a população de camelos de Gujarat aumentou devido ao crescente interesse pelo leite de camelo, embora não haja censo oficial. “Definitivamente, há demanda por leite de camelo e, no momento, superior ao que podemos atender”, conta Bhatti.

    Ainda assim, o desenvolvimento de uma indústria de laticínios de camelo não é a única solução necessária aos raikas para sua sobrevivência, adverte Vyas.

    Com a lei de 2015 desestabilizando sua principal fonte de renda, eles também precisam de mais acesso a pastagens para seus camelos, mais apoio do governo, por exemplo, na forma de incentivos ao uso de camelos no transporte, promovendo o turismo sustentável com camelos, e da criação de fábricas de laticínios administradas pelo governo.

    “Existem empréstimos bancários para todos os tipos de veículos”, mas quando se trata de apoiar pastores no transporte de suas mercadorias por camelo, “dificilmente há incentivo financeiro”, explica ele.

    Bhanwarlal afirma que a criação de camelos sempre esteve entrelaçada com a cultura raika.

    “É o modo de vida de nossos antepassados e espero que se perpetue”, conta ele. “É uma vocação sagrada e não pode acabar.”

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