Abrigos de animais enfrentam nova crise
Em toda a América do Norte, a falta de profissionais e a pandemia de covid-19 dificultam o auxílio a cães, gatos e coelhos desabrigados.
Buddha, Atlas e Adonis espiam através das grades de um canil no abrigo de animais do Condado de Fulton, localizado em Atlanta, estado da Geórgia, no dia 11 de agosto. O abrigo tem capacidade para receber 120 animais, mas atualmente há 300 acolhidos. É um dos muitos abrigos da América do Norte que está superlotado — consequência de desafios relacionados à pandemia.
Quando Baloo, um grande coelho branco, e seu irmão Elliott foram entregues a um abrigo de animais nos arredores de Montreal, no Canadá, a contagem regressiva começou.
Com poucos recursos financeiros e superlotado, o abrigo comunicou as organizações de resgate que os coelhos seriam sacrificados em três dias, a menos que alguém se voluntariasse para adotá-los. De acordo com Haviva Porter, gestora da Rabbit Rescue Inc., organização sem fins lucrativos com sede em Toronto, o abrigo tinha tantos coelhos que nem estava conseguindo anunciá-los para adoção.
“Este tem sido o pior período em 20 anos de resgates”, Porter conta.
A mesma experiência está sendo vivenciada por equipes de resgate de animais nos Estados Unidos e Canadá. “Passamos por mudanças profundas nos últimos meses”, conta Joe Labiola, diretor do abrigo para animais PAWS Atlanta. Ele explica que o abrigo mal consegue sobreviver.
A agente de campo Mandi Jo Brennan segura um filhote de cachorro resgatado na rua enquanto Paige Fowler realiza o teste de parvovírus. O abrigo verifica a presença do vírus — um patógeno comum, altamente contagioso e potencialmente fatal em filhotes — em todos os cães com menos de seis meses de idade.
Fotos e informações sobre o comportamento de cada cão são exibidas nos canis, para auxiliar a equipe e possíveis adotantes a escolherem um animal. A ficha do King mostra que ele não gosta de compartilhar brinquedos e precisa ir para um lar onde ele seja o único cão. O cão sem raça definida de cinco anos é o queridinho da equipe.
Foi afirmado em vários relatórios que no ano passado, durante os primeiros meses da pandemia, o número de adoções de animais em abrigos foi recorde e que as pessoas que agora voltam ao trabalho presencial e tiram as tão esperadas férias estão abandonando seus animais de estimação adotados para lhes fazer companhia durante o confinamento.
Mas, em larga escala, nenhuma dessas afirmações é verdadeira: em geral, o número de adoções nos Estados Unidos em 2020 foi inferior ao de 2019 — resultado do fato de os abrigos terem acolhido menos animais — e não há indicação de que a devolução de animais adotados durante a pandemia seja “uma tendência”, explica Lindsay Hamrick, diretora de alcance e engajamento de abrigos na Sociedade Humanitária dos Estados Unidos.
A realidade tem mais nuances, ela complementa. Hoje, o número de animais de estimação que precisam de resgate ainda não voltou aos níveis pré-pandemia, mas complicações relacionadas à covid-19 criaram um efeito dominó.
Muitos abrigos para cães, gatos, coelhos e outros animais de estimação foram prejudicados pela falta de profissionais — resultando em operações reduzidas, menor admissão de animais e menos eventos grandes de adoção, explica Holly Sizemore, diretora de missão na Best Friends Animal Society, organização que protege animais desabrigados. E, crucialmente, a pandemia prejudicou elos importantes na cadeia de transporte que leva os animais das ruas para seus novos lares.
Na região do sul de Ontário, de acordo com Porter, na semana em que essa reportagem foi redigida havia 40 abrigos lotados com coelhos domésticos, sem capacidade para receber novos animais. Ela recebe ligações o dia inteiro de pessoas que encontram coelhos abandonados. “Acontece o tempo inteiro e é terrível”, ela conta. “Começo de manhã cedo e vou até meia-noite. São 80 horas de trabalho por semana.”
No dia 13 de julho, a organização de Porter conseguiu levar Baloo, Elliott e outros três coelhos para lares adotivos em Ontário. A própria Porter adotou Baloo (ela se refere a ele como um dócil “coelhinho de sofá”), que agora passa os dias deitado na sala de estar dela. “Eu choro ao pensar no que aconteceria se não o tivéssemos tirado de lá”, ela diz.
“Ele é um animalzinho amoroso que não merecia aquela situação.”
Bella, uma cadela sem raça definida, salta para chamar atenção em seu cercado, enquanto outros cães ficam em gaiolas no corredor. O abrigo está cheio a ponto de alojar vários cães em compartimentos concebidos para apenas um, além de manter outros em gaiolas temporárias.
Potes de água para cães recém-lavados...
...e medicamentos ficam em uma sala de preparação no abrigo.
A técnica veterinária Alexandra Day prepara um cão sedado para cirurgia. A equipe médica do abrigo realiza até 20 procedimentos de castração por dia. No país inteiro, listas de espera para estes procedimentos são longas, especialmente nos abrigos em que não há um veterinário na equipe. O resultado é o adiamento de adoções e abrigos lotados.
Um desafio atrás do outro
De acordo com uma pesquisa realizada no mês de agosto pela Best Friends Animal Society, 87% dos 187 abrigos dos Estados Unidos que participaram da pesquisa estão com falta de profissionais, refletindo um problema de nível nacional. Além disso, há uma séria escassez de veterinários nos Estados Unidos, diz Hamrick, observando que “alguns abrigos em áreas rurais sequer possuem veterinários no condado.” Ela conta que, durante a pandemia, procedimentos de castração foram considerados não essenciais em muitas regiões dos Estados Unidos, criando um acúmulo de animais que precisam deste procedimento para que possam ser destinados às famílias.
Uma das razões pelas quais os abrigos estão cheios é que a necessidade de castrações significa que eles não conseguem preparar os animais de forma tão eficiente quanto antes. Labriola, da PAWS Atlanta, afirma que estão sentindo esse problema na pele: “a demanda está excedendo a oferta médica, o que atrasa os processos de adoção.”
Filhote de gato é acolhido em uma área isolada do abrigo, reservada para receber animais doentes.
Os filhotes Seabreeze e Sarah observam o exterior de seu cercado na sala dos gatos, localizada em um trailer atrás do edifício principal do abrigo.
Membro da equipe do abrigo, Chloe Arrington, segura Ladonna, enquanto a técnica Kebreaunna Benn limpa a gaiola de Sierra Leon, um macho de dois anos que acabou de ser adotado.
Processos de adoção mais lentos, estadias mais longas e falta de profissionais têm consequências. A comunidade de abrigos de animais normalmente depende de uma rede de pessoas para sobreviver. Por exemplo, abrigos em áreas rurais, maiores, com poucos recursos e baixas taxas de adoção dependem do encaminhamento de animais para abrigos em melhores condições, localizados em áreas onde as taxas de adoção são altas.
Ao mesmo tempo, é comum que grupos de resgate de raças específicas de cães, como pit bulls ou huskies, ou de espécies específicas (coelhos, por exemplo) recebam animais de abrigos de condados ou cidades, onde eles seriam sacrificados, e os coloquem em lares adotivos.
“A movimentação de animais de comunidades com altas taxas de admissão para comunidades com altas taxas de adoção é fundamental para manter as estatísticas nacionais de níveis de adoção elevadas e as estatísticas de eutanásia baixas”, explica Steve Zeidman, vice-presidente sênior da PetHealth Inc, empresa que rastreia dados de admissão de abrigos em nível nacional. Mas Zeidman afirma que a movimentação de animais entre instituições parece ter “caído significativamente”.
“Se um abrigo costumava enviar 100 cães por semana para outro abrigo, mas agora não pode, e não possui veterinários e profissionais suficientes, ele vai ficar muito sobrecarregado”, esclarece Hamrick. Profissões relacionadas ao bem-estar dos animais já figuram entre os maiores índices de exaustão e fadiga por compaixão, ela comenta.
A PAWS Atlanta atualmente precisa recusar pedidos de transferências de animais provenientes de abrigos que praticam eutanásia, algo que era feito regularmente no passado. “Eles estão tão lotados quanto os outros abrigos, mas temos que recusar porque não há espaço para acolher esses animais. Nada disso acontece exclusivamente no PAWS”, lamenta Labriola. “No momento, este é um desafio em nível nacional.”
Proprietários de animais de estimação enfrentam dificuldades
Embora as admissões em abrigos não estejam aumentando no país inteiro, Labriola diz que mais pessoas estão levando animais para a PAWS Atlanta. Ao longo de um período de oito dias, em meados de agosto, oito cães, seis filhotes de gatos e quatro porquinhos-da-índia foram deixados nos portões do abrigo após o horário de expediente. Ele conta que, em épocas normais, “um animal era abandonado no local uma vez por semana ou a cada duas semanas. Era fácil de controlar. Agora, os funcionários não têm certeza do que vão encontrar a cada dia.”
“Estamos localizados em uma comunidade com poucos recursos, duramente atingida pela recessão econômica”, afirma Labriola, acrescentando que ele observou um aumento de pessoas que utilizam o banco de alimentos para animais de estimação do abrigo, o que “mostra que as pessoas estão enfrentando dificuldades para alimentar os animais e que pode ser outra razão pela qual abrem mão deles” — elas não têm condições financeiras para cuidá-los.
Labriola, Hamrick e outros dizem estar preocupados com o vencimento do prazo da moratória nacional de despejos de locatários, no próximo mês. A Sociedade Humanitária dos Estados Unidos estima que até 10 milhões de animais de estimação podem ficar desabrigados à medida que as pessoas perderem suas casas.
Arrington e sua esposa Nikki brincam com seus cães (da esquerda para a direita) Blair, Baleigh, Bronte e Boss, em sua fazenda, nos arredores de Atlanta. Elas adotaram seis cães, um furão, dois coelhos, um gato, um rato e um petauro-do-açúcar.
Bronte, um cão de caça mestiço, salta para beber água da mangueira enquanto Baleigh, uma golden retriever mestiça, investiga algo na grama. Após ter sido dispensada de seu emprego corporativo no ano passado, Arrington assumiu o cargo de coordenadora de redes sociais na LifeLine, empresa que administra o abrigo do Condado de Fulton, para realizar o sonho de trabalhar exclusivamente com animais.
O coelho Siegfried espia o exterior de sua gaiola, na casa das Arrington. Chloe abrigou Siegfried e Roy, outro coelho, no início do ano. Desde então, ela e Nikki decidiram adotá-los.
Os cães das Arrington aguardam no portão da fazenda. Blair, a pit bull blue nose cuja cauda é visível à esquerda, é um cão “fospice” — um termo que mistura “foster” e “hospice”, palavras em inglês para “abrigo” e “casa de repouso”. As Arrington cuidarão dela até o fim de sua vida.
No entanto a oferta de abrigo temporário melhora a situação. O número de animais abrigados nos Estados Unidos em 2020 foi 19% maior do que em 2019, de acordo com Zeidman, que acrescenta que o número de pessoas oferecendo abrigo continua a aumentar.
Depois que Chloe Arrington foi dispensada do seu emprego corporativo no início da pandemia, ela decidiu agir para transformar em realidade seu sonho de trabalhar com resgate de animais. Desde que começou a trabalhar como coordenadora de redes sociais na LifeLine Animal Project, empresa que administra o abrigo do Condado de Fulton, em Atlanta, ela abrigou quatro animais.
“Eu percebi que o rato Remy não sobreviveria no abrigo, por isso levei-o para minha casa”, ela conta. “Agora ele está feliz em seu palácio.” Ela também conta que acolheu Siegfried e Roy, um par de coelhinhos com orelhas caídas, porque os grupos de resgate de coelhos estavam sobrecarregados.
Quanto à Bentley, o lulu-da-pomerânia dourado de um olho só, ela ri quando explica: “eu tentei resistir por muito tempo.” Agora, Bentley e os outros são seus “fracassos de abrigo” — porque, em meio a esta época caótica e frenética, eles encontraram um lar definitivo.
Tati Keita, possível adotante, abraça cão durante um evento no abrigo de Fulton, em 11 de agosto. Muitos abrigos têm realizado menos eventos de adoção desde o início da pandemia, devido às medidas de segurança e à falta de profissionais.