Doença fúngica fatal se espalha entre cobras na América do Norte

O patógeno é uma das doenças mais recentes e menos conhecidas que acometem animais silvestres em todo o continente.

Por Jason Bittel
Publicado 27 de dez. de 2021, 07:00 BRT
Timber rattlesnake infected with Ophidiomyces (snake fungal disease)

Ao menos 25 espécies de cobras (na foto, uma cascavel da espécie Crotalus horridus infectada) contraíram a doença.

Foto de Robert Hamilton, Alamy

Em 2008, cientistas encontraram mortas três cascavéis da espécie Sistrurus catenatus, com os rostos inchados e desfigurados, em uma floresta perto de Carlyle, no estado de Illinois, Estados Unidos. Era o nono ano de um programa de monitoramento em longo prazo de espécies ameaçadas e ninguém nunca havia observado nada parecido.

Os rostos dos répteis estavam tão deformados, lembra Matthew Allender que os especialistas pensaram que haviam sido atropeladas.

“Então, coletamos amostras, fizemos diversos testes e foram os primeiros relatos da presença do fungo Ophidiomyces ophiodiicola em cobras livres na natureza”, afirma Allender, veterinário e epidemiologista de animais silvestres da Universidade de Illinois e da organização sem fins lucrativos Chicago Zoological Society, que publicou seus resultados em 2011.

Um parente próximo do fungo O. ophiodiicola, que provavelmente mata ao sobrecarregar o sistema imune da cobra, já havia sido encontrado em uma cobra mantida em cativeiro, mas nunca na natureza. Na década desde as descobertas em Illinois, Allender e seus colegas identificaram o O. ophiodiicola em 25 espécies de serpentes em 19 estados dos Estados Unidos e em territórios canadenses. A enfermidade, por vezes fatal, agora tem um nome comum: doença fúngica das cobras (felizmente, o fungo parece não representar nenhuma ameaça a humanos).

“Acredito que esteja presente por toda parte”, afirma Allender, que detectou o fungo de cobras em locais tão distantes quanto o oeste dos Estados Unidos e em Porto Rico. Embora o fungo talvez não infecte todas as espécies de cobras, “está sendo encontrado em locais cada vez mais remotos”.

Agora, um estudo publicado em julho no periódico Emerging Infectious Diseases indica que o fungo foi identificado em alguns espécimes de cobras mantidos em museus, datados de 1945 e coletados em todos os Estados Unidos.

Rastrear a história da doença pode ser fundamental para determinar o que pode ser feito pelos cientistas para combater a mais recente doença conhecida na fauna silvestre, afirma Jeffrey Lorch, líder do estudo, microbiólogo do Serviço Geológico dos Estados Unidos.

Se houver sido introduzido na América do Norte, “talvez a melhor abordagem seja tentar conter sua propagação”, observa ele. “Por outro lado, se for algo presente no continente há mais tempo, serão necessárias mais informações sobre como ajudar as cobras a enfrentar o próprio patógeno.”

É por isso que ele e seus colegas estão conduzindo análises genéticas do patógeno para identificar se foi introduzido inadvertidamente no continente, como foi o caso do Pseudogymnoascus destructans, o provável fungo europeu que causa a devastadora síndrome do nariz branco em morcegos.

E é preciso pressa. Dentre os 11 mil répteis conhecidos, quase um em cinco está ameaçado de extinção devido a perigos causados pela humanidade, como a destruição de seus habitats e as mudanças climáticas. Se, além disso, surgir uma doença fúngica, muitas espécies simplesmente não conseguirão sobreviver a outro perigo, conta Lorch.

Descoberta em Nova Hampshire

O primeiro sinal evidente do surgimento do fungo ocorreu em 2006, quando especialistas do Departamento de Pesca e Caça de Nova Hampshire notaram que algumas de suas cascavéis ameaçadas de extinção apresentavam crostas e bolhas marrons no pescoço e no rosto.

“Inicialmente, não parecia ser algo muito preocupante”, revela Michael Marchand, biólogo de animais silvestres e supervisor do programa estadual Nongame and Endangered Wildlife.

Mas logo foi encontrado o corpo de uma de suas cascavéis, aparentemente morta devido a uma “infecção fúngica grave na boca”, escreveram ele e seus coautores em um estudo de 2011.

O surto, posteriormente associado à doença fúngica das cobras, acabou dizimando quase metade da população de cascavéis da espécie Crotalus horridus no estado, reduzindo-a de 40 para 19 indivíduos adultos.

“Foi um extermínio, é preocupante”, conta ele.

Felizmente, a população sobreviveu e atualmente alcançou 50 indivíduos, observa Marchand. Não se sabe ao certo como se recuperaram, embora ele acredite que as cobras sobreviventes tenham proporcionado a seus descendentes algum nível de imunidade ao fungo.

Desvendando a doença das cobras

Se as cobras adquiriram imunidade é apenas um dos muitos mistérios pesquisados por Lorch e Allender na última década.

Por exemplo, a equipe revelou que a doença fúngica das cobras é sistêmica, acometendo primeiro a pele e posteriormente causando lesões internas em alguns casos. Mas não são as lesões que causam a morte. Allender acredita que os animais morrem em decorrência de respostas imunes hiperativas.

Os cientistas já confirmaram que as serpentes espalham a doença por meio do contato umas com as outras, o que significa que espécies que vivem em tocas ou hibernam juntas correm o risco de contaminação. O acasalamento e a cópula também são modos de transmissão. O fungo também pode ser transferido de cobras mães a seus filhotes, afirma Lorch.

O fungo também parece se desenvolver bem em uma ampla variedade de condições de solo e habitats, observa Allender.

“As condições de desenvolvimento do fungo são mais amplas e variadas até mesmo do que a síndrome do nariz branco”, prossegue Allender. O fungo P. destructans dizimou mais de seis milhões de morcegos na América do Norte.

Embora o Ophidiomyces tenha sido encontrado em dezenas de espécies diferentes de ofídios, parece que alguns são acometidas com mais intensidade do que outros. Por exemplo, cientistas registraram taxas de infecção de 80% em algumas populações de cobras d’água da espécie Nerodia sipedon, comenta Allender, embora seus índices de mortalidade sejam relativamente reduzidos. Por outro lado, cascavéis e outras víboras são bastante suscetíveis à infecção e à morte.

Em determinado momento, afirma Allender, a taxa de mortalidade de cascavéis infectadas da espécie Sistrurus catenatus — nativas do nordeste e centro-oeste dos Estados Unidos — alcançou mais de 90%. Embora o surto nessa espécie não tenha reduzido drasticamente a população, em 2021, “ela está aquém do necessário”, prossegue ele.

Razão para otimismo

Os conservacionistas afirmam que ao menos o fungo não parece ser tão terrível em geral às populações de cobras quanto a síndrome do nariz branco ou o fungo quitrídio, Batrachochytrium dendrobatidis, que provocou 100% de mortalidade em algumas populações de anfíbios, sobretudo na América Central.

“Patógenos como o fungo quitrídio e a síndrome do nariz branco surgiram e causaram declínios populacionais imensos em um período muito curto, mas outras doenças avançam muito mais lentamente”, afirma Lorch. A doença fúngica das cobras, segundo ele, “pode ser mais uma doença com efeitos gradativos”.

Por ora, a maior preocupação parece ser com as cobras raras, como a da espécie Drymarchon couper, ameaçada de extinção na Geórgia e na Flórida devido ao avanço da urbanização sobre seu habitat. Essas cobras pretas e iridescentes também dependem de tocas abandonadas por tartarugas-gopher, outra espécie de réptil em declínio, afirma Houston Chandler, diretor de ciências da organização sem fins lucrativos Orianne Society, com sede na Geórgia, especializada na conservação de cobras da espécie D. couper.

Em outras palavras, as cobras dessa espécie já têm problemas demais. Contudo, em algumas regiões do sul da Geórgia, mais da metade das cobras dessa espécie amostradas possuem a doença fúngica das cobras, segundo Chandler. Até agora, os cientistas não registraram nenhum evento de mortalidade em massa nas cobras infectadas.

“Portanto, não é animador, mas também não parece ser uma preocupação imediata de conservação”, observa Chandler.

Encontrando soluções para combater o fungo

Curiosamente, alguns estudos demonstraram que a infecção fúngica altera o comportamento das cobras, conta Steven Price, biólogo conservacionista da Universidade de Kentucky e Explorador da National Geographic especializado em cobras da espécie Regina septemvittata.

Embora ele não possa afirmar ao certo, Price suspeita que as cobras infectadas passam mais tempo ao sol do que cobras não infectadas, talvez para aumentar a temperatura corporal na tentativa de combater o fungo.

Em Nova Hampshire, Marchand e seus colegas verificaram que cascavéis da espécie Crotalus horridus são atraídas por vãos no dossel da floresta, sugerindo que a exposição à luz solar pode manter as cobras saudáveis.

Para determinar isso, Marchand e seus colegas começaram a fazer experiências com a abertura de clareiras na mata em uma tentativa de oferecer às serpentes mais áreas com raios solares.

Da mesma forma, a equipe de Allender vem testando possíveis tratamentos antifúngicos.

Eles concluíram que um fungicida popular de venda livre denominado propriconazol, comumente usado em arbustos e árvores frutíferas, não tem efeito sobre o Ophidiomyces — e, se houver algum efeito, seria o de estimular o crescimento fúngico em experimentos de laboratório, segundo Allender.

Outra opção, a terbinafina, é utilizada para combater o fungo em unhas humanas. Em um estudo de 2017, Allender demonstrou que cobras da espécie Agkistrodon piscivorus colocadas em um tanque nebulizador acumularam concentrações significativas da medicação em seus organismos. Os implantes de terbinafina de absorção lenta também se revelaram eficazes na absorção da medicação pelas cobras.

Se pesquisas adicionais demonstrarem que a terbinafina é capaz de eliminar o O. ophiodiicola, ambos os métodos de absorção podem ser úteis como formas não invasivas e seguras de tratar espécies silvestres venenosas em risco de extinção.

Em geral, não há financiamento suficiente para estudar patógenos de répteis, acrescenta Lorch, em parte porque “as cobras ainda são um grupo da fauna silvestre bastante malvisto, então não há muito interesse público”.

Mas “seria lamentável, depois de décadas, perceber que deveria ter sido investido mais no estudo desta doença”, afirma ele.

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